11 Janeiro 2025
"A vida humana palestina não tem muito valor para a maioria dos judeus israelenses, muito menos depois de 7 de outubro, e muito menos quando se trata dos habitantes de Gaza, quase todos definidos pelo atual governo israelense como terroristas do Hamas".
O artigo é de Moshe Zuckermann, publicado por Overton Magazine, com tradução para a o italiano de Sveva Haertter e Helena Janeczek, e reproduzido por Il manifesto, 08-01-2025. A tradução para o português é de Luisa Rabolini.
Moshe Zuckermann é um sociólogo israelense-alemão e professor emérito de história e filosofia na Universidade de Tel Aviv. Ele é autor de livros sobre o conflito no Oriente Médio, entre os quais Israels Schicksal. Wie der Zionismus seinen Untergang betreibt (O destino de Israel. Como o sionismo carrega seu próprio declínio). Faz parte do grupo de estudiosos da história do Holocausto, de estudos judaicos e de estudos do Oriente Médio que em 2021 elaborou a “Declaração de Jerusalém”.
O publicitário Gideon Levy me precedeu. Em um recente editorial intitulado Auschwitz. Haag.
Netanyahu, no jornal Haaretz, abordou um tópico ao qual eu também queria me referir em meu editorial. Portanto, começarei citando Levy.
“O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu”, escreve, “não viajará para a Polônia no próximo mês para a cerimônia principal do 80º aniversário da libertação do campo de extermínio de Auschwitz, por medo de ser preso com base no mandado emitido contra ele pelo Tribunal Penal Internacional em Haia.
Essa amarga e não muito sutil ironia da história proporciona um roteiro surreal que era quase inimaginável antes: imaginem o primeiro-ministro aterrissando em Cracóvia, chegando à entrada principal de Auschwitz e sendo preso pela polícia polonesa no portão, sob a placa Arbeit macht frei”.
Ele continua: “O fato de que, de todos os lugares do mundo, Auschwitz seja o primeiro lugar que Netanyahu teme ir grita ao simbolismo, além da justiça histórica”. Levy destaca plasticamente: “Uma cerimônia comemorativa do 80º aniversário da libertação de Auschwitz, os líderes mundiais marcham em silêncio, os últimos sobreviventes vivos marcham ao seu lado, e o lugar do primeiro-ministro do Estado surgido das cinzas do Holocausto está vazio. Está vazio porque seu Estado se tornou um pária e porque ele é procurado pelo mais respeitado tribunal que julga criminosos de guerra”. Levy conclui: “Netanyahu não estará em Auschwitz porque é procurado por crimes de guerra”.
Esse “evento” é de fato paradigmático. Mas, independentemente do fato de que cerca de metade da população israelense espera o fim político de Netanyahu, de que muitos também esperam que, ao final do processo, ele acabe na cadeia e de que, embora ele tenha cometido tantos crimes (mesmo dentro de Israel), é possível entender o ódio contra ele (e sua família), o próprio Netanyahu é apenas um personagem secundário naquilo de que fala Gideon Levy.
As pessoas de baixo escalão muitas vezes são cinicamente culpadas por erros e crimes que foram causados ou iniciados “acima” na respectiva ordem hierárquica. Com uma referência sarcástica à hierarquia militar, o slogan de culpar o “guarda na entrada do acampamento militar” ganhou força em Israel.
Mas a situação é diferente quando se condena uma prática social ou política pela qual, no entanto, uma comunidade inteira não pode ser penalizada (como se tornou possível e foi realizado por acordo internacional com o boicote ao estado do apartheid sul-africano). Nesse caso, o respectivo chefe de estado ou outras autoridades de alto escalão são chamados à responsabilidade como representantes simbólicos de toda a coletividade. Ao condenar Netanyahu, Israel é condenado.
Isso deve ser enfatizado porque a responsabilidade ministerial por crimes de guerra recai sobre as instituições governantes, mas geralmente é de natureza mais abstrata. Em vez disso, a barbárie (física) do crime ocorre “no campo”. Como governante, Netanyahu tem responsabilidade pela política que delineou e organizou e, portanto, pelas orientações militares resultantes da guerra atual.
Embora ele sempre se recuse a assumir qualquer responsabilidade, especialmente pelo desastre de 7 de outubro, não são necessariamente suas as instruções que geraram os crimes de guerra concretos. Algo mais deve aqui ser considerado. Porque o que se viu nas operações da Idf na Faixa de Gaza no ano passado é uma brutalização extrema das tropas de combate em ação, cujos crimes de guerra se acumularam/estão se acumulando a tal ponto que logo se começou a falar de um genocídio contra a população civil da Faixa de Gaza.
O debate sobre considerar de fato isso um genocídio, dever ser deixado para outra instância; a disputa que eclodiu apenas desvia a atenção da substância - da barbarização vistosa do exército israelense e de sua atividade bélica. Basta se focar no acúmulo de crimes de guerra para perceber que algo se desenrolou nessa guerra que vai muito além da pessoa de Netanyahu.
Tornou-se norma uma prática de combate que transformou em “natural” um número inconcebível de civis mortos e feridos, entre eles principalmente mulheres, crianças e pessoas idosas, além de uma monstruosa devastação da infraestrutura e destruição das instalações civis vitais.
🇵🇸🇮🇱 Soldados das FDI fazem troça de crianças palestinas que perderam a mãe num bombardeamento israelita. O TPI, adstrito à ONU, está analisando milhares de vídeos que provam a intenção de perpetrar um genocídio em Gaza por parte de Telavive. pic.twitter.com/IOlmxyixe9
— geopol•pt (@GeopolPt) January 9, 2025
Recentemente, escrevi em um artigo sobre a pesquisa do Dr. Lee Mordechai, da Universidade Hebraica de Jerusalém, que a acusação de cometer crimes de guerra já está comprovada há tempo e que ninguém mais poderá alegar que não sabia. O fato de a grande mídia esconder da população do país os relatos da barbárie praticada em seu nome, que praticamente a mascaram, não pode ser aceito como explicação para o silêncio público sobre os crimes - quem quer saber pode desencavar informações. É claro que é preciso querer saber. Até mesmo a “justificação” dos crimes de guerra contra os judeus israelenses cometidos pelo pogrom de 7 de outubro não tem uma base aceitável quando se recusa a legitimidade de colocar o exército a serviço de impulsos coletivos de vingança e represália. A morte de crianças por um exército (como “dano colateral”) não pode ser uma “reparação” por um erro sofrido. Muito menos se seus efeitos atingirem uma desproporção tão impressionante.
O que se destaca mais do que qualquer outra coisa é o gosto, o sadismo e o prazer perverso dos soldados em causar danos a outros, em um massacre que não mostra sinais de querer terminar. O 7 de outubro foi degradado a uma licença para a destruição excessiva e o cancelamento de vidas humanas sem nenhum remorso. Em nenhuma guerra os soldados em campo foram apóstolos da humanidade. Brecht já cantava na Ópera dos Três vinténs que “os soldados habitam nos canhões” e geralmente transformam seus inimigos em “carne moída”.
Isso se torna especialmente terrível para a população civil inimiga quando os bombardeiros modernos são utilizados em massa. Mas o que no campo de batalha pode ser explicado pela lógica interna do que sempre foi a guerra em sua essência - a legitimidade concedida à completa desinibição de matar e devastar as condições materiais de vida - faz estremecer quando se descobre que uma coletividade inteira apoia os crimes de seu exército nacional.
Aquele pouco que a população israelense ficou sabendo do horror da realidade de Gaza foi (e ainda é hoje) rejeitado com terrível indiferença como não verdade, como exagero, como propaganda pérfida do outro lado, ou racionalizado de forma leviana, culpando os próprios habitantes de Gaza pelos crimes de guerra (“foram eles que começaram”) ou declarando-se abertamente incapaz de sentir compaixão por eles.
Tanto o embrutecimento dos soldados quanto a indiferença da população civil israelense decorrem de uma desumanização dos palestinos que vem ocorrendo incessantemente há tempo. 57 anos de ocupação bárbara e o persistente apagamento do conflito israelense-palestino da agenda política de Israel e do mundo (deliberadamente realizada principalmente por Netanyahu) mostraram seu efeito inevitável. A vida humana palestina não tem muito valor para a maioria dos judeus israelenses, muito menos depois de 7 de outubro, e muito menos quando se trata dos habitantes de Gaza, quase todos definidos pelo atual governo israelense como terroristas do Hamas.
Uma equiparação da catástrofe de Gaza com Auschwitz não é sustentável - Gideon Levy também a rejeita em seu editorial. Mas essa não é a questão. Por tempo demais a política israelense instrumentalizou a singularidade de Auschwitz para fins políticos heterônomos. Nenhuma lição pode ser tirada do Holocausto, nem mesmo do postulado ideológico de como fosse necessário criar um “refúgio para o povo judeu”, como agora já deveria ter se tornado evidente.
Na verdade, do Holocausto, quando muito poder-se-ia extrair como mensagem abstrata apenas o princípio orientador de uma sociedade empenhada em minimizar, se não tornar impossível, que seres humanos continuem a produzir vítimas humanas. Isso poderia ser o que Walter Benjamin quis dizer com o “fraco poder messiânico” atribuído a cada geração atual em relação às gerações passadas.
E é exatamente nisso que se manifesta a horrenda traição que Israel (não apenas agora, mas ora com uma desmedida pessoalmente escolhida) cometida contra a memória de Auschwitz. E é exatamente aí que reside o medo do símbolo de que o primeiro-ministro israelense não comparecerá à cerimônia de comemoração do 80º aniversário da libertação de Auschwitz porque deve temer ser preso como aquele criminoso de guerra que é como representante de Israel.
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Israel e a traição da memória de Auschwitz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU