07 Janeiro 2025
"O apelo à justiça e à esperança, como em The Cure at Troy, pode servir como um aviso aos líderes políticos e às nações: a história nos ensina que a mudança só é possível quando se imagina um futuro diferente".
O artigo é de Antonio Spadaro, jesuíta e ex-diretor da revista La Civiltà Cattolica, publicado por Repubblica, 06-01-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Os versos de grandes escritores, como o irlandês Heaney, ganhador do Prêmio Nobel, ensinam que as feridas de um presente “quebrado” só podem ser curadas com a capacidade de recompor os pedaços. E a alma.
Algumas vezes podemos ter deixado cair algo das mãos: um objeto, um enfeite de cerâmica, um celular. Um vidro trincado é um sinal e um símbolo de que o mundo não é mais como era antes. Quando algo se quebra, a vida se interrompe. E isso nos entristece. Recolhemos os pedaços, como um quebra-cabeça que, no entanto, não convida à brincadeira, à curiosidade, mas apenas ao arrependimento e ao desejo de entender se há algo a ser feito, se há um remédio, um reparo. O conserto não é fácil, requer paciência, decisão e esperança.
A crença de que as coisas podem ser reparadas é muito mais forte do que a crença de que as coisas podem ser “consertadas”. Buscar os “reparos” nos faz perceber que não se trata apenas de uma operação complicada, técnica e provisória: reparar contém o sentido de uma ameaça evitada, de um equilíbrio recuperado, que é a única “justiça” praticável. No cristianismo, a própria ressurreição não é o conserto de uma vida que se quebrou, mas sua reparação, depois que a morte a destruiu: Qui mortem nostram moriendo destruxit, et vitam resurgendo reparavit, canta o Prefácio da Páscoa.
Quando falamos hoje de uma guerra mundial “em pedaços”, os pedaços não são aqueles de um quebra-cabeça, mas aqueles de um mundo que se quebrou. Não apenas está lascado, arranhado, mas realmente quebrado. Ele se quebrou em pedaços. Então, o mundo pode ser reparado? As respostas podem ser duas: não ou sim. A primeira gera os andaimes do pensamento apocalíptico, do fanatismo, do terrorismo kamikaze e do pessimismo radical: o mundo se quebrou e não pode ser consertado, portanto, vamos chutá-lo para longe o mais rápido possível. A segunda resposta, aquela que acredita na reparação, gera a diplomacia do alfaiate que costura, a paciência, o pensamento que evoca e invoca uma salvação possível. O logos quebrado (ou seja, a lógica e a linguagem) pode gerar um silêncio mudo, ou um grito, uma invocação, uma mediação que reflete sobre a realidade histórica para compreendê-la e buscar os “reparos”.
Um intérprete lúcido dessa corrida foi Seamus Heaney. Em algumas de suas palestras proferidas em Oxford entre 1989 e 1994, o conceito de “reparação” (redress) emerge significativamente: “A imaginação poética se propõe a reparar tudo o que foi errado e doloroso nas condições atuais”, escreve ele. Assim, é capaz de responder à dor, à perda e à desarmonia do mundo.
Sua visão deve ser entendida à luz do contexto histórico em que ele viveu e escreveu. Nascido na Irlanda do Norte em 1939, Heaney cresceu em um território marcado pelas divisões religiosas e políticas que resultaram nos Troubles, o conflito que dividiu católicos e protestantes de 1969 até a década de 1990. Essa ruptura permeia suas obras e sua reflexão. Em coletâneas como North, Heaney explora tanto a antiga violência representada pelos rituais nórdicos, quanto as feridas contemporâneas do conflito na Irlanda do Norte. Aqui, a poesia se torna um meio de entender e talvez lenir as feridas da história, transformando o horror e a dor em palavras que possam oferecer significado e catarse. Em The Tollund Man (contida em Wintering Out), Heaney descreve a descoberta de corpos da Idade do Ferro nos territórios da Dinamarca, comparando-os aos mortos contemporâneos da violência sectária: “Um dia irei a Aarhus / Para ver sua cabeça marrom-turfa, / As vagens suaves de suas pálpebras, / Seu gorro de pele pontudo”. Essas linhas evocam uma continuidade de sofrimento entre o passado e o presente, sugerindo que a poesia pode explorar a dor comum da história humana. O ganhador do Prêmio Nobel frequentemente recorre ao mito e à história, reconfigurando a realidade, sugerindo que a poesia pode oferecer uma sua leitura alternativa e restauradora. Na coletânea Station Island (1984), por exemplo, ele reelabora experiências pessoais e coletivas por meio das lentes da peregrinação cristã e do diálogo com os fantasmas do passado.
A reparação nunca é uma negação da história ou da realidade, não é um “ajuste” das coisas, nem uma anestesia, mas uma maneira de reconfigurar a experiência por meio da inspiração e da arte. Heaney nos leva a acreditar que a poesia pode oferecer equilíbrio, ordem e beleza em um mundo marcado pelo caos e pela violência. Em The Cure at Troy (1990), uma reescrita do mito grego de Filoctetes, de Sófocles, Heaney apresenta uma visão do reparo que abraça a esperança e a mudança social. “A história diz: Não espere Deste lado do túmulo./ Mas então, uma vez na vida / A tão esperada onda de justiça / pode surgir,/ e a esperança e a história rimam.”. É nessas linhas que Heaney expressa sua consciência de como sua inspiração poética pode dar voz à reparação, usando sua “squat pen” (pena tosca) para rimar as palavras “history” e “hope”.
Assim, a poesia se torna um ato ético, capaz de reparar as divisões por meio da palavra e da visão. E não, não se trata de uma caneta fina e pontiaguda, mas de uma caneta-tinteiro grossa o suficiente para ser segurada pela mão de um lavrador, como se fosse uma pá. O apelo à justiça e à esperança, como em The Cure at Troy, pode servir como um aviso aos líderes políticos e às nações: a história nos ensina que a mudança só é possível quando se imagina um futuro diferente. É singular e esclarecedor que um líder mundial de nosso tempo, como o Papa Francisco, atribua o nome de “poeta” àqueles que, no mundo, atuam e se esforçam para construir a sociedade: são “poetas sociais”, como ele repete com frequência aos chamados movimentos populares. E, portanto, é verdade que “neste tempo de crise da ordem mundial, de guerra e grandes polarizações, de paradigmas rígidos, de graves desafios climáticos e econômicos, precisamos da genialidade de uma nova linguagem, de histórias e imagens poderosas, de escritores, poetas, artistas”, escreve o Papa.
Precisamos, como escreve Heaney, daquele “gole da água da fonte de conhecimento transformado” que é a poesia, salvação do apocalipse e reparação do mundo.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A poesia que repara o mundo. Artigo de Antonio Spadaro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU