16 Dezembro 2024
"Na Síria de hoje, a dor das perdas tenta conviver com a felicidade de um país livre do regime", escreve Francesca Mannocchi, jornalista e documentarista italiana, em artigo publicado por La Stampa, 12-12-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
“Não perdoaremos e não esqueceremos”, três dias após a queda de Damasco e a abertura das celas de Sednaya, as forças rebeldes escreveram essa frase no muro da entrada. Poucas horas antes, Ahmad Al-Shara, o ex-Al-Joulani, também havia se pronunciado: “Não perdoaremos aqueles que estavam envolvidos na tortura de detentos no regime anterior”.
Seus homens, os milicianos do Hayat Tahrir al-Sham (HTS), circulam armados pelo perímetro do prédio da prisão que foi o matadouro da Síria por décadas, escoltando os voluntários do Crescente Vermelho Sírio que chegaram recentemente ao local. Quando eles chegam em frente às celas, um dos milicianos, com o rosto coberto, grita para eles: “Onde estão os outros corpos? Diga-nos onde os colocou”. Os voluntários permanecem em silêncio. E o miliciano reitera: “Nós libertamos a Síria, perdemos nossos homens, se vocês não nos disserem onde estão todos os prisioneiros, queimaremos suas aldeias alauítas”. Ele então acena para os jornalistas saírem e continua a tratar com eles a contagem de vivos e mortos.
Desde a manhã de domingo, com a queda e a fuga de Bashar Al-Assad, cujas imagens despedaçadas permanecem nas ruas de Damasco, a encosta ao redor de Sednaya está repleta de pais e mães, famílias desesperadas em busca de uma prova, uma testemunha, uma notícia que as alivie do vazio deixado por aqueles que desaparecem.
Lá dentro, diante dos registros em parte intactos e em parte rasgados, os parentes dos prisioneiros procuram um sinal de vida de seus entes queridos. Como Umm Bashir, que veio de Idlib para procurar seu filho, que desapareceu em 2013. Ela se pergunta por que tantos jovens morreram, por que não há nenhum vestígio deles entre os sobreviventes ou os mortos.
Dentro da prisão, há aqueles que ainda estão procurando por salas subterrâneas, câmaras secretas que dizem existem nos subterrâneos, tudo ao redor fala dessa busca, os pisos quebrados, os bueiros cavados, mas até ontem nenhuma nova entrada, nenhum novo porão, foi encontrado.
No andar de baixo, um homem martela uma parede. Ele grita em desespero, apesar de todos ao seu redor lhe dizerem que não pode haver nada entre as paredes, ele martela e grita. Ele não tem notícias de seu filho há 13 anos.
Ammar Abbara está na sala com algumas famílias, sentado no chão, examinando páginas e páginas escritas à mão. Ele se qualifica como advogado e está ali, diz ele, para preservar os documentos, as provas de abuso e das torturas, os nomes e sobrenomes dos detidos. Ele está preocupado porque cada sala, cada cela, contém provas cruciais que correm o risco de serem destruídas. Ele aponta para o lado de fora, onde as mulheres estão acendendo fogueiras para se aquecer usando pilhas de papel, presumivelmente coletadas do chão de Sednaya, e aponta também para um homem que desce a colina carregando dois sacos plásticos cheios de papel: “Cada linha encontrada aqui deveria servir para fazer justiça, para dar um enterro aos mortos, um nome e um sobrenome aos culpados, uma certeza para as famílias dos desaparecidos”. Não há hoje uma pessoa nas ruas da Síria liberada pelo regime que não tenha uma história pessoal, ou próxima a ela, para compartilhar sobre um desaparecimento. Durante anos, dezenas de milhares de pessoas desapareceram sem explicação, levadas de suas casas porque os serviços secretos haviam recebido informações sobre elas, arrancadas de seus empregos ou das salas de aula universitárias. De acordo com a Syrian Network for Human Rights (Snhr), o regime de Assad prendeu cerca de 136.000 pessoas entre 2011 e 2024, 96.000 das quais são consideradas “desaparecidas à força”. Esse número inclui mais de 2.300 crianças e mais de 5.740 mulheres.
Abu Bashir mora em Damasco, seus filhos fugiram para a Turquia no início da guerra, ele os convenceu a evitar o alistamento militar, mas também porque o mais novo, que na época tinha 26 anos, ficou dois meses na prisão Far Falestin da capital. Ele trabalhava em uma casa de câmbio e alguém havia contado a outra pessoa, na longa cadeia de delação clássica dos regimes, que parte do dinheiro que ele havia trocado tinha ido parar nos bolsos do Exército Livre da Síria, os rebeldes.
O filho de Abu Bashir foi preso às 3h da madrugada e levado. Desde então, seu pai diz ter morrido 58 vezes, o número de dias que o separou do filho antes de subornar um guarda carcerário para recuperá-lo e fazê-lo fugir para a Turquia. Ontem ele chegou a Sednaya para acompanhar seus vizinhos, em busca de notícias sobre um primo de Daraa. Sobre as prisões de Assad, ele diz apenas: “Eu vivi rezando para nunca ver uma, e também vivi pedindo a mim mesmo para nunca trair ou dar informações sobre alguém”. Portanto, desde a revolução e depois da guerra, ele saiu bem pouco de casa e viveu na esperança de que um dia veria seus filhos novamente.
Na Síria de hoje, a dor das perdas tenta conviver com a felicidade de um país livre do regime. O teste de amanhã são as negociações entre as facções. E hoje, para os grupos armados, é o momento do jogo de forças. Ontem, para o líder do Hts, Ahmad Al-Shara, foi mais uma rodada de encontros.
Dessa vez, com os líderes das facções do Sul, entre os quais Ahmed Al-Awdah. Após o encontro, a Southern Operation Room divulgou uma declaração afirmando que havia se encontrado com “o irmão Ahmed Al-Shara, um passo importante na unificação dos esforços dos revolucionários sob uma liderança central que preserve os direitos de todos e garanta a participação de cada pessoa no país”. Um passo importante, porque enquanto as forças do Hts estavam presas em Homs, foi justamente Al-Awdah e suas tropas que apareceram em Daraa, correram para Damasco e lhe roubaram a cena, entrando na capital.
Conforme relata o Long War Journal, a coalizão da Sala de Operações do Sul, embora formada recentemente, é composta por grupos armados que existem desde o início da guerra civil, “a maioria dos quais fez parte do processo de reconciliação liderado pela Rússia em 2018, que integrou grupos rebeldes armados ao 4º e 5º Corpo apoiados pela Rússia. Com base nesse acordo, os grupos rebeldes mantiveram suas armas leves, mas as instituições estatais voltaram a cidades como Daraa”.
Um dos grupos que se reconciliou e agora faz parte da Sala de Operações do Sul é a 8ª Brigada, anteriormente conhecida como Juventude das Forças Sunna. Um grupo que primeiro protegeu os protestos contra o regime, depois se alinhou com os russos até ficar sob o controle da inteligência militar síria. Quando viram o progresso militar do Hts, os líderes da Sala de Operações do Sul decidiram pragmaticamente embarcar no carro do novo vencedor, de modo que Al-Awdah, que até recentemente era “o homem da Rússia no sul da Síria”, agora se senta ao lado de Ahmad Al-Shara, prometendo cooperação para a nova Síria Livre.
Como sempre acontece, devido à regra de ouro que faz do inimigo do inimigo um amigo, hoje as forças de oposição estão tentando se unir, ou pelo menos mostrar-se unidas, para fins de declarações e câmeras.
Mas é improvável que aqueles que mantiveram o controle sobre a parte sul do país o abandonem facilmente, ou que o ex-Joulani possa realmente confiar em quem colaborou por muito tempo com o regime e sua inteligência. Serão os próximos meses a dizer se a vantagem recíproca de hoje formará a Síria unificada de amanhã.
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Os condenados de Sednaya. Artigo de Francesca Mannocchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU