30 Novembro 2024
Um encontro por acaso entre o escritor Milton Hatoum e o cineasta Marcelo Gomes, há mais de 10 anos, selou a parceria que resultou no filme Retrato de um Certo Oriente. Como recorda Gomes, em entrevista a Neusa Barbosa, em São Paulo, a admiração era mútua. Bastou cada um dizer “adoro sua literatura, adoro seu cinema” e a conversa deslanchou.
A informação é de Neusa Barbosa, publicada por Cineweb, 20-11-2024.
Nessa mesma conversa, o cineasta propôs adaptar o livro "Relato de um Certo Oriente" - que seu próprio autor considerava “infilmável”, devido à grande quantidade de personagens, ali retratados por fluxos de consciência, descritos por um narrador que só se descobre quem é no final. Era justamente o interesse pela alteridade e pela memória, dois temas constantes em sua cinematografia desde o primeiro longa, Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), o que motivava Gomes. “Sempre imaginei como teria sido esse encontro entre libaneses e indígenas, esse encontro inusitado e fascinante que o livro retrata”, aponta. O livro, como se recorda, acompanha uma comunidade libanesa radicada em Manaus, uma história parecida com a do próprio Hatoum.
Mas, desde o princípio, o cineasta não pretendia uma adaptação, como faz questão de frisar. “O filme é inspirado no livro, não uma adaptação”. Prova disso está em que o filme se limita apenas a alguns personagens do livro, imaginando seu passado antes do deslocamento para o Brasil e criando sequências novas para personagens indígenas, traduzindo melhor na tela o choque cultural entre as populações nativas e os imigrantes do Oriente Médio. Segundo o diretor, o motivo está na própria necessidade de uma atualização da história. “O livro foi publicado em 1978. Mas, fazendo o filme hoje, como deixar de fora a questão da terra na Amazônia?” Gomes ressalta, nesse aspecto, “a importância de construir um lugar para a utopia”. E completa: “Havia um mundo novo para ser construído e aí era importante o papel dos indígenas. Havia que construir o choque cultural com o outro, que é diferente, e aprender com o outro quem é você”.
Gomes iniciou a roteirização sozinho, incorporando depois Maria Camargo - que já havia atuado na adaptação de duas obras de Hatoum, Dois Irmãos (que resultou numa minissérie) e O Rio do Desejo (um filme para cinema). Mas houve muitas dificuldades no caminho da produção, a maior delas ter sido atravessada pela pandemia. Isto levou a que as filmagens, iniciadas em Belém, sofressem uma interrupção, em 2020, e só fossem retomadas um ano e meio depois. Um dos atores libaneses, Zakaria Kaakour, ficou impedido de voltar ao seu país, pelas restrições de viagens da época, permanecendo hospedado na casa de Gomes, no Recife, por três meses. Os outros dois atores libaneses, Charbel Kamel e Wafa’a Celine Halawi, por terem também nacionalidade francesa, conseguiram viajar para a França.
Gomes destaca a importância desse elenco libanês, selecionado por entrevistas online, e que confere ao filme uma autenticidade que foi admirada em Roterdã, em janeiro, onde o filme teve sua première mundial, mas também acarretou dificuldades linguísticas no set. O cineasta conta que primeiro os diálogos foram traduzidos para o inglês. Depois ensaiavam. O último ensaio era já em árabe, uma língua que domina mais da metade do filme. Nos primeiros dias, Gomes mantinha um tradutor no set para poder acompanhar. Mas depois, ele conta que já sabia o que estavam dizendo “apenas pelo olhar”. Na pandemia, os atores estudaram português e, segundo Gomes, adquiriram um bom domínio de nossa língua, evidenciando a afinidade poliglota de um povo que se exprime normalmente em dois idiomas, árabe e francês.
A interrupção das filmagens pela pandemia causou, evidentemente, uma crise, por estouro do orçamento previsto. Por isso, foi necessário encontrar outros parceiros, como Ibermedia, Globo Filmes, e outros. A parte ambientada no Líbano não poderia, por questões de segurança, ser filmada naquele país. Mediante a entrada de outro parceiro, a Itália foi o destino escolhido para essas sequências, que estão no início do filme.
A opção pelo preto-e-branco também se explica a partir de algumas intenções para o filme. “A Amazônia é exuberante de florestas e água, mas representa para eles também o medo, o impenetrável. O preto-e-branco dá essa densidade dramática”. E há também a ligação explícita com o tema da memória. “Desde o começo eu quis tirar a cor. As memórias deles são escritas por fotografias. Então, no filme, os olhares substituem os fluxos de consciência. E essa é também uma homenagem à própria fotografia”.
Se no enredo a motivação da vinda dos irmãos Emilie (Wafa’a Celine Halawi) e Émile (Zakaria Kaakour) para o Brasil decorre de uma guerra, o próprio lançamento do filme vem sendo obstaculizado por outra. Gomes conta que o filme tem uma distribuidora no Oriente Médio e já deveria ter sido lançado nos cinemas no Líbano. Mas a atual invasão do país por Israel impediu essa estreia. A atriz Wafa’a Celine Halawi, por sua vez, veio para o Festival do Rio, em outubro, indo depois para Huelva, na Espanha, representando o filme. Por conta da guerra, ainda não conseguiu voltar para Beirute.
Gomes, por sua vez, enquanto acompanha o lançamento brasileiro de Retrato de um Certo Oriente, tem dois novos trabalhos saindo do forno. Um deles é o documentário Criaturas da Mente, sobre a vida e obra do neurocientista Sidarta Ribeiro, que abre o 57º Festival de Brasília, no dia 30 de novembro. O outro é a minissérie Máscaras de Oxigênio Não Cairão Automaticamente, para a HBO, que aborda as histórias de comissários de voo que, em plena explosão da AIDS, nos anos 1980, contrabandeavam AZT, o único medicamento com alguma eficácia então conhecido e cuja venda era proibida no Brasil.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Marcelo Gomes expande a ponte entre o Líbano e a Amazônia em “Retrato de um Certo Oriente” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU