27 Novembro 2024
Em seu livro: “Counting Feminicide: Data Feminism in Action” a professora do MIT lança luz sobre as “ativistas feministas dos dados’. “Elas têm uma função reparadora e transformadora: coletam dados para construir um mundo no qual o feminicídio não existirá mais e poderemos parar de contar.”
“Contar nunca é um gesto neutro, é um ato profundamente político”, escreve a professora do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, Catherine D'Ignazio, em seu livro Counting Feminicide: Data Feminism in Action e é por isso que perguntar de onde vêm os dados sobre os feminicídios faz parte do percurso para eliminar a violência de gênero.
A entrevista é de Elisabetta Moro, publicada por Domani, 25-11-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Na Itália, não existe um banco de dados institucional que monitore publicamente os feminicídios realizados no país. O Ministério do Interior publica um relatório semanal com as mulheres mortas “em âmbito familiar e afetivo”, mas não usa a palavra feminicídio, ao contrário do Istat, que publica um relatório sobre o tema todos os anos. Como não existe uma definição legislativa de feminicídio na Itália, o ISTAT tenta - mas reconhece que ainda não dispõe de todos os dados necessários - seguir os 53 parâmetros estabelecidos pela ONU em 2022 que permitem entender, em nível global, quando uma mulher foi morta por ser mulher.
Até o momento, porém, o registro público que monitora os feminicídios na Itália, que disponibiliza para todos informações como idade da vítima, origem, presença de filhos ou deficiência e outras, é o banco de dados do Osservatorio Femminicidi Lesbicidi Transcidi do movimento feminista Non Una Di Meno, um registro não institucional nascido de baixo.
Não se trata de um fato incomum: Catherine D'Ignazio, em seu livro, lança luz sobre as atividades das “ativistas feministas dos dados” que, especialmente na América do Sul, mas também no Canadá e nos Estados Unidos, coletam dados sobre feminicídios, dando origem a práticas de ciência de dados de profundo valor ético e político. “Entrevistamos grupos que estão ativos há décadas, desde os anos 1970, quando recortavam artigos de jornal à mão”, relata, “depois, desde 2015, com o surgimento do Ni una menos, uma maior alfabetização sobre os dados e disponibilidade de ferramentas tecnológicas, aumentaram, houve um boca a boca. Mas essa é uma prática feminista de longa data.”
No livro, você fala sobre “dados faltantes”, por um lado, e “contra-dados”, pelo outro, o que entende?
Dados faltantes são dados de importância social e política para a população que as instituições negligenciam, apesar da demanda para que sejam coletados e disponibilizados. Outras vezes, os dados existem, mas são de baixa qualidade ou parciais, ou mostram sinais de manipulação para fins políticos. Esse é um dos principais motivos pelos quais as ativistas iniciam seus projetos de contagem dos feminicídios.
Os contra-dados são, portanto, dados produzidos por indivíduos ou grupos da sociedade civil independentes das instituições. As ativistas não veem esse trabalho como sua responsabilidade, mas produzem esses contra-dados para destacar o problema e pedir às instituições que lidem com ele, para fornecer um quadro completo do que está acontecendo. Esses são dados que desafiam os sistemas de poder e muitas vezes diferem daqueles institucionais. Os dados sobre feminicídios no México que María Salguero vem coletando desde 2016, por exemplo, são regularmente mais do que o dobro dos dados publicados pelo governo federal mexicano.
Por que os dados sobre os feminicídios são muitas vezes dados faltantes?
Há vários fatores. Alguns estão ligados à falta de uma legislação: pode ser que o conceito de feminicídio não tenha sido codificado, como acontece também nos Estados Unidos e no Canadá, ou tenha sido codificado de forma parcial. Ou pode haver um problema de falta de aplicação da lei, como é o caso de muitos países latino-americanos onde há uma formulação legislativa de feminicídio, mas a coleta adequada de informações e a classificação das mortes não são implementadas. Pode ser que os órgãos de aplicação da lei não sejam treinados sobre o significado de “feminicídio”, que os preconceitos condicionem a forma como os casos são processados e documentados, que haja erros ou adulterações. As mídias também desempenham um papel importante, pois muitas vezes relatam os assassinatos de forma sensacionalista, sem enquadrá-los em um fenômeno sistêmico e dando mais peso a certos casos do que a outros. Por fim, há casos em que as famílias não querem denunciar, talvez por medo legítimo de represálias, especialmente em países onde a violência está ligada ao tráfico de drogas. As ativistas feministas, por um lado, trabalham com os dados, mas, por outro lado, de alguma forma tomam distância deles.
Elas reconhecem que há poder em ter números significativo sobre o tema. Elas se perguntam como usar esses dados de forma criativa para lidar com a desigualdade de gênero a partir de uma perspectiva interseccional, levando em conta, portanto, como ela se cruza com a raça, a justiça econômica e assim por diante. Elas tentam usá-los estrategicamente para chamar a atenção para o problema, para iniciar conversas com as instituições, para serem chamadas à mesa quando as políticas sobre a violência contra a mulher são discutidas. No entanto, nos disseram repetidamente: “não somos números”. As ativistas sabem que existe o risco de que a vida das mulheres desapareça entre as contagens e os dados. Essa é uma tensão que não pode ser resolvida sem manter esses dois lados juntos. Por um lado, enfatizam o fenômeno estrutural com as contagens, as porcentagens e os gráficos; por outro lado, centram o foco da atenção na humanidade e a comunidade da pessoa que nos foi tirada.
No livro, você fala sobre uma abordagem de tipo reparador/transformador dos dados. Em que consiste?
Com base nas entrevistas realizadas, o livro tenta teorizar uma abordagem de ciência de dados com uma função reparadora e transformadora. A função reparadora diz respeito ao curto prazo e coloca os dados a serviço da reposição dos direitos e da dignidade das pessoas afetadas, para limitar os danos sofridos.
Nos EUA, o Sovereign Bodies Institute literalmente usa seus dados para ajudar as famílias afetadas, comprar comida para elas e sustentá-las durante o processo. A parte transformadora, por sua vez, tem a ver com o longo prazo: coletam dados para construir um mundo no qual o feminicídio não existirá mais e poderemos parar de contar.
Que diferenças você observou entre os ativistas de dados e os cientistas de dados tradicionais?
Há muitos pontos de contato: as ativistas feministas são muito rigorosas, buscam a verdade e passam muito tempo verificando detalhes, assim como os cientistas de dados. Por outro lado, a prática tradicional da ciência de dados gosta de se considerar “neutra” e objetiva, enquanto o ativismo feminista de dados não é, porque coloca a ciência de dados a serviço das mulheres, da dignidade das mulheres e da igualdade de gênero, para criar um impacto político. Fiquei impressionada com a maneira como elas insistem em humanizar seus dados e isso certamente não é algo ensinado nos cursos de análise de dados. Algumas veem seus bancos de dados como memoriais, falam sobre eles como espaços sagrados de memória e resistência. Elas defendem uma espécie de justiça da memória porque sabem que essas mulheres correm o risco de serem esquecidas.
No livro, de fato, você fala de um trabalho altamente carregado de emoções.
Sempre tento lembrar que os dados não aparecem por mágica, as ativistas documentam cada caso de violência, copiam e colam os detalhes brutais um a um em suas planilhas. Elas geralmente tentam comparar várias fontes, portanto, precisam ler muitos artigos para cada caso. É um trabalho desgastante. Alguns projetos são interrompidos justamente porque é psicologicamente exaustivo estar cercado de violência o tempo todo. Outros grupos encontram estratégias de autocuidado e de cuidado coletivo. Mas, é interessante notar, isso também é visto como parte integrante de seu trabalho. Um capítulo do livro é dedicado a um estudo de caso para coprojetar com as ativistas uma tecnologia de aprendizado de máquina para ajudar seu trabalho. Tentamos projetar um sistema para reduzir sua carga emocional, mas elas se opuseram à automação completa da entrada de dados, falando justamente sobre a importância do componente humano de testemunho e cuidado das pessoas.
Em uma época de hiperprodução e comercialização de dados, o que os cientistas de dados podem aprender com essas práticas feministas?
No mundo da análise de dados, muitas vezes se pergunta como podemos colocar a prática da ciência de dados a serviço do bem-estar e da justiça social. Acho que é possível encontrar uma resposta observando o trabalho das pessoas que estão efetivamente fazendo isso no campo. Sua abordagem reparadora/transformadora pode ser útil em outras áreas, como a insegurança habitacional, a justiça ambiental e a poluição ambiental. Mas espero que esse livro possa falar ao mundo da ciência de dados como um todo, lembrando-nos de que existem métodos mais éticos de trabalhar com os dados, com maior impacto político, e mais humanos.
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“Contar é um ato político. Dados sobre feminicídios podem mudar a sociedade”. Entrevista com Catherine D'Ignazio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU