18 Novembro 2024
O artigo é do Papa Francisco, extraído do livro 'A esperança nunca desilude' (Mensageiro), conversa entre o Papa e Hernán Reyes Alcaide, publicado por Religión Digital, 17-11-2024.
Reitero aqui que “é absolutamente necessário que as causas que provocam a emigração sejam abordadas nos países de origem”. Necessitamos que os programas implementados com este propósito garantam que, nas áreas afetadas pela instabilidade e pelas injustiças mais graves, haja espaço para um desenvolvimento autêntico que promova o bem de todas as populações, especialmente das crianças, esperança da humanidade.
Se quisermos resolver um problema que nos afeta a todos, devemos fazê-lo com uma integração dos países de envio, trânsito, destino e regresso dos migrantes. Perante este desafio, nenhum país pode ficar sozinho e ninguém pode pensar em abordar a questão isoladamente através de legislação mais restritiva e repressiva, por vezes aprovada sob a pressão do medo ou em busca de ganhos eleitorais.
Pelo contrário, tal como vemos que há uma globalização da indiferença (EG 54), devemos responder com a globalização da caridade e da cooperação, para que as condições dos emigrantes sejam humanizadas.
Pensemos nos exemplos recentes que vimos na Europa. A ferida ainda aberta que é a guerra na Ucrânia fez com que milhares de pessoas abandonassem as suas casas, especialmente durante os primeiros meses do conflito. Mas também testemunhámos o acolhimento irrestrito de muitos países fronteiriços, como foi o caso da Polônia. Algo semelhante aconteceu no Oriente Médio, onde as portas abertas de países como a Jordânia ou o Líbano continuam a ser a salvação para milhões de pessoas que fogem dos conflitos na região: penso especialmente naqueles que deixam Gaza no meio da fome que atingiu a Palestina, irmãos confrontados com a dificuldade de levar alimentos e ajuda para o seu território. O que está a acontecer em Gaza, que segundo alguns especialistas parece ter as características de um genocídio, deve ser cuidadosamente investigado para determinar se se enquadra na definição técnica mantida por juristas e organizações internacionais.
Devemos envolver os países de origem dos maiores fluxos migratórios num novo ciclo virtuoso de crescimento económico e de paz que inclua todo o planeta. Para que a migração seja uma decisão verdadeiramente livre, é necessário esforçar-se por garantir a todos a participação igualitária no bem comum, o respeito pelos direitos fundamentais e o acesso ao desenvolvimento humano integral. Só se este piso mínimo for garantido em todas as nações do mundo poderemos dizer que aqueles que migram o fazem livremente e poderemos pensar numa solução verdadeiramente abrangente para a questão. Penso especialmente nos jovens, que ao emigrarem provocam muitas vezes uma dupla fratura nas suas comunidades de origem: uma porque perdem os elementos mais prósperos e empreendedores e outra porque as famílias se desfazem.
Para chegarmos a este cenário, porém, devemos ter como passo preliminar fundamental que acabem os termos desiguais de comércio entre os diferentes países do mundo. Instalou-se uma certa ficção nas ligações entre muitos países que parece dar conta de uma suposta troca comercial, mas trata-se apenas de uma transação entre subsidiárias que saqueiam os territórios dos países pobres e enviam os seus produtos e royalties às empresas-mãe nos países desenvolvidos. Por exemplo, vêm à mente sectores ligados à exploração dos recursos naturais do subsolo. São as veias abertas destes territórios.
Quando ouvimos este ou aquele líder queixar-se dos fluxos migratórios provenientes de África para a Europa, quantos desses mesmos líderes se interrogam sobre o neocolonialismo que ainda hoje existe em muitas nações africanas?
Lembro-me que na minha viagem à República Democrática do Congo em 2023 abordei o problema do saque atual de algumas nações: "Há um slogan que brota do inconsciente de tantas culturas e de tantas pessoas: “África está a ser explorada”, e isso é terrível. Após o colonialismo político, foi desencadeado um “colonialismo econômico” igualmente escravizador. Assim, este país, abundantemente depredado, não consegue beneficiar suficientemente dos seus imensos recursos: chegou-se ao paradoxo de que os frutos da sua própria terra a tornam “estrangeira” para os seus habitantes. "O veneno da ganância sangrou seus diamantes.
Já sabemos que a “teoria trickle-down” não funciona nem na economia de um país em si, nem no concerto das nações. Devemos apoiar os países das periferias, em muitos casos os de origem das migrações, para neutralizar as práticas neocolonizadoras que procuram perpetuar as assimetrias.
Uma vez que o mundo possa avançar em acordos para promover o desenvolvimento local daqueles que de outra forma acabariam por migrar, é importante que os seus governantes, chamados a exercer a boa política, atuem de forma transparente, honesta, de mente aberta e ao serviço de todos, especialmente dos mais vulneráveis.
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Francisco sugere investigar “cuidadosamente” se ocorreu um “genocídio” em Gaza - Instituto Humanitas Unisinos - IHU