À espera do balanço das águas. Destaques da Semana

Arte: Marcelo Zanotti | IHU

Por: Cristina Guerini | 09 Novembro 2024

O mundo amanheceu mais sombrio após o resultado das eleições norte-americanas. Não podemos, no entanto, deixar de esperar pela aurora futura, apesar das muitas dúvidas que pairam sobre o novo mandato de Donald Trump na Casa Branca e diante um cenário mundial ainda mais complexo. O novo governo dos Estados Unidos, ao que tudo indica, vai dobrar a aposta do negacionismo e colocar o mundo em um transe climático ainda mais profundo. A guerra comercial vai se intensificar e deve haver uma virada no xadrez geopolítico mundial, além de um fortalecimento da extrema-direita. Ainda, cerca de 11 milhões de migrantes estão na mira e sob cerco com o risco de serem banidos. A este cenário, soma-se o futuro das guerras e da América Latina. Enquanto o Brasil aguarda os desdobramentos internacionais, o governo Lula ataca os mais pobres com a proposta do ajuste fiscal antipopular. Esses e outros assuntos nos Destaques da Semana do IHU.

Confira os Destaques da Semana na versão em áudio.

Acima de tudo, esperança

Em cada pequeno gesto, encontrar a esperança. Assim, o Editorial do National Catholic Reporter conclama a todos a se tornarem “agentes de mudança e testemunhas do amor”. O texto ainda sublinha: “suportaremos Donald Trump e seus bajuladores. Seu tempo passará. Infelizmente, ele causará danos significativos. No entanto, podemos, de fato, devemos, limitar esses danos por meio de nossa determinação incessante. Como testemunhas ativas de justiça e misericórdia, transformaremos a escuridão em luz e a fraqueza em força para nós mesmos e para os outros. Cada ato de amor, cada gesto de gentileza e cura constrói a nação que, por enquanto, parece nos iludir”. Com esse convite, começamos a desdobrar os impactos que devem se seguir após a eleição do 48º presidente dos Estados Unidos.

A volta do capitalismo autoritário

O retorno de Donald Trump à Casa Branca “é o sintoma mórbido de um país que ainda está para repetir, sob a forma de uma farsa cruel, a sua grande guerra civil”, salienta a historiadora Sylvie Laurent. Para ela, “prometer a restauração do capitalismo autoritário concedendo imunidade aos poderosos e aos seus dependentes, caso sejam homens e brancos, é fazer parte da longa história do país que garantiu acesso exclusivo a recursos e propriedades aos descendentes dos europeus”. Mais do que isso, é o poder que ele carrega em suas mãos. “Trump está agora totalmente preparado para capturar o Estado e implementar políticas reacionárias que apenas foram sugeridas durante o seu primeiro mandato. Agora está armado com quadros, milhares de potenciais funcionários públicos, intelectuais, financiadores e uma parte significativa da classe capitalista, que convergem para a ideia de estabelecer uma contrarrevolução profunda graças a um Estado autoritário”, adverte a pesquisadora. Em sua nova estada em Washington, Trump não deve enfrentar à “desigualdade, o rentismo ou guerra – três marcas cruciais de um império decadente”.

Sol do apocalipse

Trump venceu de lavada e deve consolidar os Estados Unidos como uma democracia negacionista, galvanizando esta era da desinformação. Muitas são as promessas de campanha que colocam um fim à agenda climática. Está prevista a segunda saída dos EUA do Acordo de Paris (fato que aconteceu durante seu primeiro mandato) e o desmantelamento da Inflation Reduction Act (IRA), uma lei que se tornou o programa de investimento em políticas climáticas do país. Duas decisões que podem acrescentar 4 gigatoneladas adicionais de CO2 na atmosfera até 2030. Além disso, são esperados um aumento da dificuldade de consenso nas negociações climáticas, o incentivo maciço os combustíveis fósseis e a revogação de normas ambientais. É um contexto que deixa uma tarefa hercúlea para os outros países diante ao agravamento da crise climática, que recrudesce a cada semana, haja vista a severidade dos furacões, as enchentes da Espanha, no Sul do Brasil ou na Indonésia.

Jogo de poder

Um poder absoluto jamais visto na mão do presidente da maior potência mundial. Sob o efeito do slogan MAGA – Make America Great Again, o magnata volta à cena com o Poder Legislativo e om o Poder Judiciário ao seu lado, por conta também das manobras durante sua presidência para ter uma maioria absoluta conservadora no Supremo. Não é só isso: com a intensificação das zonas de conflito, ele detém um poder maior ainda de barganha internacional. Para o historiador e analista político Steven Forti, isto é uma ameaça à democracia.  

Xadrez geopolítico

Enquanto nos perguntamos como Trump conseguiu fazer isso novamente, o mundo fica em suspenso. “Finalmente, chega para os europeus em geral e para os alemães em particular a ‘hora da verdade’: ou eles assumem de fato, não de boca, a necessidade de ter uma política externa e de defesa comum efetiva, botando a mão no bolso para gastar em defesa, tornando-se menos dependentes do ‘guarda-chuva’ de proteção dos americanos, ou vão ter de ceder frente aos russos na Ucrânia”, alertou Rubens Ricupero. As mudanças geopolíticas também devem afetar a China, país que Trump tem como inimigo na sua guerra comercial. América Latina e Brasil também devem ser atingidos. As peças sobre o tabuleiro devem se movimentar a partir de janeiro de 2025.

Cristãos trumpistas

O apoio dos cristãos a Trump é uma incógnita. Seis em cada dez cristãos votaram no candidato republicano. Sob a égide da nova guarda católica conservadora, como falamos por aqui há alguns dias, muitos líderes católicos silenciaram diante da política do ódio. E, o voto dos fiéis brancos da Igreja Católica foram cooptados pelo discurso de Donald Trump. Um cristianismo conservador que usa uma imagem deturpada do evangelho de Jesus para promover a morte e não a vida em todas as suas formas, como Ele ensinou. A escolha de Trump deve levar a polarização ainda maior na igreja estadunidense. 

Vice

Se na eleição anterior o escolhido para a vice-presidência era um sujeito moderado, que parecia tentar encontrar um equilíbrio, J.D. Vance tem um perfil extremista e radical, assim como seu colega de chapa. Vance, que está no primeiro mandado como senador, passou de crítico a apoiador de Trump, tendo se convertido ao catolicismo conservador dos EUA em 2019. Ele é uma figura central para a grande aliança conservadora-tradicionalista que impulsionou e deu o tom às eleições norte-americanas. Esse perfil de eleitor ainda desvela a estratégia machista por trás da campanha.

Guerra

A tendência de uma aproximação de Trump com Vladimir Putin, que são publicamente próximos, parece cada dia mais forte. O que colocaria um fim à guerra na Ucrânia, que deve perder o apoio militar dos EUA e da OTAN, saindo com uma grande derrota no conflito. Amigo próximo de Israel, fruto de uma obsessão evangélica com o estado judaico, sua presidência deve piorar a situação de Gaza e arrastar o Líbano para uma guerra ainda mais sangrenta. O genro do presidente eleito, Jared Kushner sugeriu, em fevereiro de 2024, que "Israel" deveria "transferir" os palestinos de Gaza para o Deserto do Naqab (Negev) e aproveitar o "potencial econômico" do enclave palestino. O desejo de um Oriente Médio pacificado parece que vai ficar só na miragem.  

O fim do sonho americano

Acabou o sonho de milhões de migrantes que abandonaram seus países em busca de uma vida melhor. Muitos morrem no deserto. Aos que chegaram e estão sem documentos, fica a promessa: expulsão. Cerca de 11 milhões de migrantes estão sob risco agora. Além disso, Trump pretende fechar a fronteira com o México, piorando a situação dos latinos que se arriscam par entrar nos Estados Unidos.

Arrocho

Voltando ao Brasil... mal acabaram as eleições municipais e a semana vai terminando conturbada. Era para ter sido encaminhado ao Congresso o projeto de lei que prevê cortes no orçamento federal no ano que vem, mas ele ainda estava em discussão. Surpreendeu a todos uma contundente fala do presidente Lula sobre o ajuste fiscal. Em entrevista, ele falou que conhece o mercado e o apoio incondicional da mídia à Faria Lima, e perguntou se o Congresso aceitaria um pacto para reduzir as emendas e se os empresários aceitariam reduzir seus subsídios. A proposta que está sendo discutida junto com os ministros no Planalto, claro, quer arrochar os investimentos que atingem diretamente os mais pobres. Saúde, Educação e Previdência estão na mira de Fernando Haddad e Simone Tebet. Nos aproximamos de mais um retrocesso, que pode ser revertido com a sua ajuda. Convidamos você a assinar o Manifesto Contra o Pacote Antipopular.

Melhorou

Enfim, a taxa de desmatamento caiu. Tivemos a maior queda da taxa de desmatamento, em 2024, na Amazônia, dos últimos 15 anos: 31%. Com isso, derrubamos também as emissões de gases de efeito estufa em 12%, mas o rebanho bovino continua sendo um problema, pois lidera as emissões. São sinais de que o Brasil pode fazer ainda mais e a crise climática não arrefeceu. Mais de um milhão de brasileiros estão ameaçados pelo aumento do nível do mar e a mudança da corrente do Atlântico deve colapsar a Amazônia, o ciclo da água e o Planeta.

Espiritualidade cocacolizada

Após uma década de pontificado, Francisco finalmente visitou a Universidade Gregoriana, em Roma. Em um longo discurso, o papa pontuou inquietantes questões e falou sobre a missão de uma universidade católica, alertando que este não de ver um espaço para vender a espiritualidade como se fosse uma Coca-Cola. “Da mesma forma que em uma universidade, a visão e a consciência do objetivo impedem a ‘coca-colização’ da pesquisa e do ensino que levaria à ‘coca-colização’ espiritual. Infelizmente, são muitos os discípulos da ‘coca-cola espiritual’!”, enfatizou Bergoglio. E, diante da lógica do mundo em guerra, perguntou à plateia: “O que estamos dispostos a perder diante dos desafios que enfrentamos? O mundo está em chamas, a loucura da guerra cobre toda esperança com a sombra da morte. O que podemos fazer? O que podemos esperar?”, indagou.

Negro espírito

Hoje, encerramos nosso resumo da semana com uma mensagem de esperança para os tempos de inquietação que vivemos. O texto, de autoria de nosso colega Guilherme Tenher Rodrigues, é inspirado na canção Wade in the water. Segundo o autor, a reflexão é “uma tentativa de refletir para além dos escaninhos acadêmicos e trazer à superfície o clamor espiritual como um caminho fértil para esta conjuntura”.

Wade in the water, children... God's gonna trouble the water

('Filhos, entrem na água... Deus agitará as águas', em tradução livre)

O resultado das eleições nos EUA revelou uma sociedade moribunda, que perdeu a capacidade de oxigenar sua diversidade, seus ideais, seus valores e suas crenças. A política estadunidense tornou-se uma poça d'água, uma ambiência anaeróbica, sem novidade ou ânimo – apenas a fétida receita racista, capitalista e supremacista, com suas políticas de ódio a todos (compatriotas e estrangeiros) e sua economia de morte (guerras como vetor de acumulação).

Especula-se que o clássico spiritual "Wade in the Water", entoado por séculos por milhares de escravos levados às terras estadunidenses, sintetizava uma imensidão de significados históricos e religiosos: Wade in the water – atravessem a água; purifiquem-se nas águas caudalosas e infinitas da potência divina e, na mensagem da abolicionista Harriet Tubman, libertem-se dos cães raivosos que vos farejam e que vos acorrentam para servir a este sistema lúgubre.

A esperança e a resiliência carregadas por esta canção mantiveram-se vivas no coração de milhares de pessoas vítimas do sistema racial e capitalista norte-americano. Hoje, mais do que nunca, é preciso orar e entoar vigorosamente: Deus agitará as águas; Ele intercederá! A mudança há de vir; a salvação chegará”.

Guilherme Tenher Rodrigues

Desejamos uma boa semana a todos e todas!