08 Novembro 2024
"O que o resultado das eleições norte-americanas tem a dizer para o Brasil? Do ponto de vista econômico, vários analistas acreditam que não vá ter grandes impactos, embora, do ponto de vista político, o campo da extrema-direita brasileira esteja muito esperançoso, já prevendo a volta de Bolsonaro nas próximas eleições, mesmo tendo sido condenado pelo Tribunal Superior Eleitoral. Para além de Bolsonaro, o resultado das eleições municipais também aponta para um perfil mais alinhado com as pautas do centro, da direita e da extrema-direita no Brasil. Como em outros países, a dificuldade das esquerdas em dialogar com os eleitores, sobretudo com a jovem geração, também é grande no país. Há uma espécie de cegueira, que impede as lideranças de enxergarem. Mas, para além da cegueira dos partidos políticos mais progressistas, o que é mais preocupante é o não desejo, por parte de muitos, de pensar a política, ou o alinhar-se com a ideologia de extrema-direita, como que numa espécie de adoecimento do discernimento", escreve Geraldo Luiz De Mori, SJ, professor e pesquisador no Departamento de Teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, em artigo publicado por FAJE.
“Tiveste, ó rei, uma visão. Era uma estátua. […] Estavas olhando, quando uma pedra, sem intervenção de mão alguma, destacou-se e veio bater na estátua, nos pés de ferro e argila, e os triturou” (Dn 2,31-35).
Gabriel Garcia Márquez publicou, em 1981, a obra Crônica de uma morte anunciada, que conta a história do jornalista Santiago Nasar morto pelos irmãos Vicario. Todos sabiam de antemão que a morte aconteceria, mas ninguém fez nada para impedi-la. Essa trama se presta bem para uma primeira leitura dos resultados das eleições presidenciais norte-americanas, além de oferecer algumas pistas para entender por que isso aconteceu.
A imagem da “morte anunciada”, presente na obra de García Márquez, tem como referência, para sua associação com o que acaba de acontecer nas eleições norte-americanas, o movimento que subjaz à escolha do presidente eleito. Trata-se da consolidação de uma extrema-direita que se coloca contra os direitos das minorias, é negacionista com relação às mudanças climáticas, promove discursos extremamente belicosos com relação a quem pensa contra ela, tidos como inimigos a serem eliminados.
Todo o pontificado do Papa Francisco é um esforço gigantesco para reconstruir o “nós”, que é justamente o que está em jogo na política, que é a arte de buscar o bem comum. Essa busca não é, porém, evidente, e os conflitos sempre podem surgir, pois os interesses que movem as pessoas na sociedade são distintos, e muitas vezes opostos e até mesmo conflitantes. A história é cheia de exemplos que mostram o fracasso na busca da construção do “nós” coletivo, mas ela também possui muitos momentos que podem ser vistos como bem-sucedidos, não porque tenham resolvido todos os conflitos, mas porque conseguiram oferecer o melhor e o que era possível para os vários grupos e atores sociais.
Várias análises estão sendo feitas sobre o resultado das eleições, algumas muito catastrofistas, outras mais matizadas e, é claro, para quem apoia o presidente eleito, as análises são otimistas. Não é o caso aqui de tecer prognósticos, mas é importante recordar que com esse resultado, um modelo de política parece cada vez mais seduzir eleitores, não só nos Estados Unidos, mas em muitas partes do mundo. Identificado como de extrema-direita, ou, em muitos casos, como próximo do fascismo, esse tipo de política apela para o afeto, e no afeto, busca explorar o que suscita medo ou frustração nos eleitores.
Num mundo cada vez mais urbano, que privilegia o indivíduo e seus desejos, aos quais pretende satisfazer com os produtos oferecidos pelo mercado, eclode continuamente a frustração, pois é impossível oferecer a todos tudo o que a sociedade de consumo propõe como vida realizada ou feliz. Frustrado, o indivíduo é muitas vezes tentado a ver como responsável por seu fracasso o outro, muitas vezes identificado com os que parecem continuamente ameaçar o que ele já conquistou. No caso norte-americano, mas também europeu, a ameaça vem de fora, do estrangeiro, do migrante. Em outros contextos, como o brasileiro, a ameaça encontra-se dentro, ela é identificada em muitos casos com os jovens que ingressaram na universidade pública por conta da política de cotas. Mas além dessa frustração que diz respeito às disputas por lugares no mundo do trabalho ou por mais reconhecimento na sociedade, existe também o medo relacionado às questões levantadas por outra busca do indivíduo pós-moderno: a de sua identidade afetivo-sexual. Como ele se caracteriza pelo desejo, no campo da sexualidade ele vê possibilidades diversas de realizá-lo e de conceber sua própria identidade afetivo-sexual. Vistas por muitos como ameaça à “família”, base da sociedade, essas novas identidades dão lugar a lutas por reconhecimento, mas também suscitam reações contrárias, que vão reafirmar os modelos tidos como “normativos”. Não por acaso, uma das pautas da extrema-direita é a família, em geral, a heteronormativa, sem contar toda a luta contra o aborto. Essas pautas ganham a adesão de muitos eleitores que se dizem cristãos, no campo protestante e católico.
O que o resultado das eleições norte-americanas tem a dizer para o Brasil? Do ponto de vista econômico, vários analistas acreditam que não vá ter grandes impactos, embora, do ponto de vista político, o campo da extrema-direita brasileira esteja muito esperançoso, já prevendo a volta de Bolsonaro nas próximas eleições, mesmo tendo sido condenado pelo Tribunal Superior Eleitoral. Para além de Bolsonaro, o resultado das eleições municipais também aponta para um perfil mais alinhado com as pautas do centro, da direita e da extrema-direita no Brasil. Como em outros países, a dificuldade das esquerdas em dialogar com os eleitores, sobretudo com a jovem geração, também é grande no país. Há uma espécie de cegueira, que impede as lideranças de enxergarem. Mas, para além da cegueira dos partidos políticos mais progressistas, o que é mais preocupante é o não desejo, por parte de muitos, de pensar a política, ou o alinhar-se com a ideologia de extrema-direita, como que numa espécie de adoecimento do discernimento.
Voltando ao título do livro de García Márquez, a morte anunciada não é certamente a do presidente eleito e tampouco a da ideologia de extrema-direita que lhe dá sustentação. A morte anunciada, em parte, é a do ideal da democracia, que deveria assegurar a liberdade de expressão, condições iguais de inserção nos distintos campos da vida social e de trabalho, participação nas diversas instâncias da vida pública. Ela pode também ser a morte do que prometem as novas lideranças dos sistemas autoritários de extrema-direita que ganham a adesão de tantas mentes e corações, ou seja, ao invés da paz e da igualdade de oportunidades, uma guerra que envolve o mundo inteiro, porque já começou no interior mesmo das comunidades a partir das quais a política deve se expressar.
Trump prometeu acabar com a guerra na Ucrânia 24hs depois de assumir a presidência. Vários analistas acreditam que mesmo a guerra no Oriente Médio poderá conhecer arrefecimento, pois foi Trump quem retirou as tropas dos EUA do Afeganistão, o que lhe valeu certa simpatia do mundo islâmico, e pode ser um indício de que, mais do que promover a guerra, ele poderá trazer a paz. Não se pode ainda prever o que vai acontecer. A história dos impérios mostra que o convencimento pela força pode resolver por um tempo o conflito, mas que, de fato, a guerra só acaba quando há real esforço de paz, que supõe caminhos de reconciliação, desejo de caminhar juntos e colaborar. Os discursos da extrema-direita, inclusive da que o elegeu, não possuem essa característica. Em todos os países onde ela tem crescido, o oponente é um inimigo a ser eliminado. Nesse sentido, se houver avanços no caminho da paz, certamente será um benefício para a humanidade, mas, ainda retomando o título da obra de García Márquez, a morte anunciada pode ser justamente a de todo intento de busca de paz, acirrando-se a guerra.
O caminho sinodal percorrido pela Igreja nos últimos anos propõe como solução para todo conflito e oposição, a escuta atenta, acolhedora e paciente do outro. Essa escuta não significa necessariamente estar de acordo com tudo o que o outro pensa e acredita, sobretudo se vai contra todos os princípios da fé e do respeito à dignidade humana. Mas ela é necessária assim mesmo, para que seja possível a interlocução, ou, como diz o Papa, para estabelecer “pontes” que assegurem e promovam a passagem de um lado ao outro, não se deixando seduzir pela ilusão dos muros que interrompem o acesso ao outro. Oxalá os resultados do percurso sinodal possam fecundar os processos internos da Igreja para que ela possa oferecer o que tem de melhor para o mundo, sendo, como diz a Constituição Lumen gentium, o sacramento da unidade entre os seres humanos e deles com Deus (LG 1).
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Crônica de uma morte anunciada. Artigo de Geraldo De Mori - Instituto Humanitas Unisinos - IHU