07 Novembro 2024
"Se a Segurança era somente causa de desgaste político e valia a pena sacrificar parte do suposto poder em benefício da divisão de responsabilidades com a União, hoje, associar-se ao discurso hegemônico e às práticas usuais das corporações policiais tornou-se um ativo político na guerra contra a democracia e os direitos humanos", escreve Luiz Eduardo Soares e Manuel Domingos Neto, em artigo publicado por A Terra é Redonda, 04-11-2024.
Luiz Eduardo Soares é antropólogo, cientista político e escritor. Ex-secretário nacional de segurança pública. Autor, entre outros livros, de Desmilitarizar: segurança pública e direitos humanos. (Boitempo)
Manuel Domingos Neto é professor aposentado da UFC, ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED). Autor, entre outros livros de O que fazer com o militar — Anotações para uma nova Defesa Nacional (Gabinete de Leitura)
Hoje, associar-se ao discurso hegemônico e às práticas usuais das corporações policiais tornou-se um ativo político na guerra contra a democracia e os direitos humanos
1.
Na quinta-feira passada (31.10.2024), deu-se uma reunião marcada há 21 anos. A convite de Lula, governadores e o ministro da Justiça encontraram-se no Planalto para discutir a Segurança Pública. Essa reunião foi agendada e postergada, depois cancelada, no início do primeiro mandato de Lula, em 2003. O atraso de 21 anos diz muito sobre as dificuldades de enfrentar o problema.
Em 2001, Lula presidia o Instituto Cidadania e era pré-candidato a presidente. Um grupo de trabalho formulou, então, seu programa de Segurança Pública. Profissionais de origens, experiências e perspectivas variadas debateram em audiências públicas, visitas e seminários. A proposição resultante foi entregue por Lula às casas congressuais e ao ministro da Justiça em 27 de fevereiro de 2002.
No ambiente ouriçado de hoje, é difícil imaginar que o então líder da oposição ao governo FHC fosse respeitosamente recebido por dirigentes da situação, todos valorizando a qualidade da proposta.
A edição do jornal O globo em 28.02.2002 destacava: “Tucanos elogiam plano anticrime do PT”. O ministro da Justiça, Aloysio Nunes Ferreira, admitiu adotar medidas. “Não posso deixar de louvar essa iniciativa”, afirmou o presidente do Senado, Ramez Tebet. “Este documento é até agora o mais sério e completo sobre segurança pública já elaborado e apresentado à sociedade”, disse Aécio Neves, presidente da Câmara.
Com debilidades decorrentes, sobretudo, da falta de dados internos às corporações, a iniciativa mudou o debate. Descartou clichês e bordões puídos. Agentes públicos não mais arguiriam o “sempre foi assim”. Parecia chegar ao cabo a reatividade inercial e a falta de crítica aos padrões estabelecidos. Tornar-se-iam necessários diagnósticos e planejamento para a ação pública, que passaria a ser avaliada para que erros fossem monitorados e corrigidos.
O Plano não idealizava a racionalidade técnica e apontava para ajustes de instituições públicas às determinações constitucionais. A democracia seria reforçada. Visava-se o controle da chamada criminalidade, da brutalidade letal das polícias e do sistema de Justiça criminal, do racismo e do viés de classe que encarcera jovens pobres e negros, reproduzindo iniquidades e violências. Instituições refratárias à soberania popular seriam contidas.
Lula venceu as eleições. Em janeiro de 2003, o novo secretário nacional de Segurança Pública[i] e seus colegas tocariam o programa — aperfeiçoado com a ajuda de voluntários de distintas especializações e regiões, graças ao apoio da Firjan.
Era fundamental a adesão dos 27 governadores à tese central, a criação do SUSP, sistema único de segurança pública, inspirado na arquitetura do SUS. Em junho, o endosso unânime foi obtido. O presidente convidou os governadores para celebrar o “pacto pela paz”, como o projeto foi batizado, perante autoridades dos três poderes. A proposta seria entregue ao Congresso, posto que demandava alteração constitucional. Havia otimismo. Lula detinha respaldo popular e o consenso dos governadores fortalecia a proposta.
Os governadores não acataram por entusiasmo com uma segurança cidadã, afinada com os direitos humanos. A negociação individualizada mostrara que lhes interessava dividir o desgaste político com o governo federal. Uma reestruturação que importasse em compartilhamentos e deslocamento de autoridade para a União seria bem-vinda. A insegurança era fonte inesgotável de fragilização política. O acatamento era pragmático e lógico.
Paralelamente, o governo federal encarava o dilema: valeria a pena assumir mais responsabilidades em área tão desgastante? Dizia Leonel Brizola: chamar para si a segurança é abraçar afogado. Por que, então, o secretário nacional de segurança visitaria todos os governadores? A missão espinhosa foi testemunhada pelas mídias locais. Talvez porque não fosse crível o êxito da jornada quixotesca.
O governo federal viu-se subitamente com a batata quente na mão. Como deter a iniciativa evitando constrangimentos? A resposta fica para outro momento. O gabinete presidencial estipulara data para a reunião que seria suspensa. O passar do tempo silenciaria o “pacto pela paz”. O secretário foi afastado e o plano, engavetado. O governo investiu em prisões matutinas espetaculares de suspeitos de colarinho branco.
2.
Mas a semente do SUSP fora lançada. Cedo ou tarde, por exigência histórica, resultaria em algo. Diante de crises, projetos embolorados, devidamente lustrados, circulariam na praça. O SUSP renasceu com sotaque diferente e inegável legitimidade e coerência quando Tarso Genro foi ministro da Justiça. Seu projeto nacional de segurança com cidadania (Pronasci) incorporava elementos do SUSP, especialmente sua face preventiva. Mas Tarso passou, assim como a reativação indireta do SUSP.
Veio o golpe parlamentar contra Dilma Rousseff. A dramaticidade da insegurança pública crescia e a história aprontou ironia oblíqua, típica das tragédias: coube a Temer ressuscitar o SUSP e criar o ministério da Segurança previsto no plano original, de 2002 (por sugestão de Lula, então candidato, foi convertido em secretaria com status ministerial).
Mas a repetição deu-se como farsa: o SUSP, aprovado pelo Congresso em 2018, foi promulgado para não funcionar. Baseava-se em legislação infraconstitucional. Destinava-se a fazer crer em comprometimento dos governantes com mudanças profundas na Segurança. As novas regras jamais seriam aplicadas porque gerariam conflitos federativos; calculadamente, não tratavam de processos decisórios, de definição da autoridade coordenadora de ações. Tampouco foi casual que a ouvidoria fosse estabelecida como uma agência desprovida de poder.
A vida prosseguiu e o país foi empurrado à beira do abismo neofascista. Os golpistas instrumentalizaram as instituições armadas. A gigantesca e ativa “família militar” açambarcou os contingentes policiais de todas as esferas da União. Escapamos por um triz com a vitória de Lula, em 2022.
Retornando ao Planalto, Lula encontrou-se novamente com a dramática insegurança pública. Durante meses, flertou com o SUSP, reinscrevendo a necessidade de coordenação nacional no centro da agenda. Mas temeu mostrar a nudez do rei: o SUSP infraconstitucional colidiria com a Carta. Só fazia sentido ressuscitá-lo se figurasse na Constituição.
Finalmente, o ministro Ricardo Lewandowski, intimorato, pronunciou palavras banidas do léxico governamental: afirmou que para tratar da Segurança Pública caberia reformar a Carta. Realizou-se, enfim, a reunião marcada há 21 anos.
Neste interregno, regredimos de uma democracia limitada e contraditória para uma institucionalidade deteriorada. A sociedade viu-se acossada pela difusão de valores antidemocráticos, pelo ativismo reacionário de organismos do Estado e por organizações à margem da lei.
3.
A PEC apresentada por Ricardo Lewandowski, embora menos ambiciosa, contém elementos fundamentais da proposta original. Aponta para o estabelecimento de uma coordenação nacional das estratégias da Segurança. Pressupõe uma linha de autoridade indispensável, mesmo que isso não seja enfatizado no discurso público. Enfrenta problema real: a refratariedade das corporações policiais, verdadeiros enclaves institucionais, à autoridade civil e política.
Mesmo que a aparência sugira o contrário, especialmente quando governadores de direita aplaudem práticas policiais condenáveis, o fato é que os executivos estaduais não comandam as organizações policiais. A ampla autonomia viabilizou-se com a omissão do Ministério Público, que deveria exercer o controle externo das polícias, e ameaça o Estado democrático, como demonstramos insistentemente em artigos, livros e entrevistas.
Integrantes de corporações armadas se alinham ostensivamente à extrema direita. Firmam-se como atores independentes, negando a hierarquia e as determinações constitucionais. Os enclaves corporativos instauram poderes rebeldes na medida em que se atribuem autoridade alheia à soberania popular e às mediações institucionais.
Esse quadro ruinoso é mais visível nas Forças Armadas. Comandantes se apresentam impunemente como representantes de um “poder moderador” e condicionam autoridades constituídas. Buscam respaldo no que nomeiam “família militar”, cuja composição inclui componentes das corporações policiais.
A PEC do ministro Ricardo Lewandowski possibilita restringir a disfuncionalidade da segurança pública; oferece amparo mínimo para o enfrentamento da criminalidade e da corrosão da autoridade fundada nos princípios democráticos. Propondo a coordenação nacional, enseja a possibilidade de reduzir o insulamento dos baronatos armados, organizados com ou sem máscara institucional (sob a forma de milícias).
O ministro e o presidente devem saber que a proposta não será aprovada. Mas enseja sinalização importante: tira o governo da defensiva e, pela primeira vez em muitos anos, aponta rumo para deter a barafunda institucional que impede o Estado de garantir segurança à cidadania. Livra a autoridade federal de exibir impotência e de absorver pautas conservadoras de governadores. No mais, deixa com a oposição o ônus da defesa do status quo.
A reação dos governadores tende a ser inversa a de 21 atrás anos porque a luta ideológica se interpôs ao velho cálculo de utilidade. Se a Segurança era somente causa de desgaste político e valia a pena sacrificar parte do suposto poder em benefício da divisão de responsabilidades com a União, hoje, associar-se ao discurso hegemônico e às práticas usuais das corporações policiais tornou-se um ativo político na guerra contra a democracia e os direitos humanos.
Há muito a ponderar. Por exemplo: a omissão na iniciativa governamental quanto à ouvidoria e ao papel do MP. Mas cabe saudar a coragem política, mesmo moderada, quando ela retorna à cena.
Falta aplicar essa disposição à Defesa Nacional. As Forças Armadas persistem essencialmente voltadas para o controle da sociedade e nunca abdicaram de se imiscuir na Segurança Pública.
[i] Luiz Eduardo Soares, membro do citado grupo de trabalho e coautor deste artigo.
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Segurança pública — 21 anos depois. Artigo de Luiz Eduardo Soares e Manuel Domingos Neto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU