04 Novembro 2024
"Ouvir as Escrituras e o nome de Davi sendo usados ainda hoje para lançar uma vingança massacrante contra os “inimigos” é profanar o nome daquele 'rebento de Jessé'", escreve a teóloga e biblista italiana Rosanna Virgili, professora do Instituto Teologico Marchigiano, vinculado à Pontifícia Universidade Lateranense, em artigo publicado por Vita Pastorale, 01-11-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Alguém escreve nos jornais que em Gaza e Beirute se repetiu um novo sucesso de Josué, o ‘ministro’ daquele ‘servo do Senhor’ que foi Moisés. Os caminhos da manipulação das Escrituras, em vez de se reduzirem, estão se multiplicando. Cabe se lamentar e ficar assombrados com isso. Aqueles que, como os cristãos, conhecem e admiram os feitos e as palavras do “filho de Davi” - ou seja, de Jesus - não podem deixar de ficar abismados ao ouvir como as guerras criminosas e/ou legitimadas atualmente em curso estão sendo travadas em nome de seu ancestral exemplar ou em nome de Josué e de suas santas batalhas.
Quem era Josué? Um homem que teve um relacionamento privilegiado com Moisés em virtude de sua fidelidade e estreita colaboração com o grande “libertador” de Israel. E enquanto todos os israelitas que haviam fugido do Egito encontraram a morte no deserto, enquanto Moisés, seu irmão Arão e sua irmã Miriam também morreram antes de poderem ver a promessa de Deus ser cumprida, Josué, filho de Num, juntamente com Calebe, foram os únicos a entrar no deserto. E com eles, é claro, os filhos e netos que haviam nascido dos refugiados ao longo do caminho. Esses eram os invasores da terra de Canaã.
Entre o Josué bíblico e o Josué israelense de hoje, há uma bela diferença! Aquele se apresentava na condução de um bando de pessoas famintas e esfarrapadas, armadas apenas pela Morada de Deus, caminhando à frente de um “exército” de despossuídos e nômades; o de hoje se move com um aparato bélico fornecido pelo país mais poderoso do mundo.
Mas vamos ao Davi, cujo uso arbitrário do nome atinge limites indignos. O ponto de um inteiro sistema de mísseis israelense ter sido batizado de “Estilingue de Davi”. Um sistema de defesa aérea e de mísseis completo, de médio e longo alcance, com ampla cobertura contra ameaças de mísseis. O pobre Davi deve estar se revirando em seu túmulo! Na verdade, ele era um rapaz que amava seu povo a ponto de se intrometer na batalha que o rei Saul e seu filho Jônatas estavam travando para defender, das artimanhas dos filisteus, as regiões que haviam ocupado. Os filisteus estavam armados com espadas e carros de ferro, enquanto entre os israelitas apenas Saul e seu filho tinham armaduras e espadas. E foi assim que Davi quis defender Israel do gigante Golias: com cinco pedras de rio atiradas por um estilingue. E quando o rei Saul quis “armá-lo” com sua armadura e espada, Davi não conseguia andar. O antigo progenitor de Jesus foi um homem que não deu vazão à sua raiva e ao seu desejo de vingança quando Abigail lhe implorou que não fizesse justiça por si mesmo; pelo contrário, deteve os quatrocentos homens que havia incitado à vingança (cf. 2Sm 25).
Ouvir as Escrituras e o nome de Davi sendo usados ainda hoje para lançar uma vingança massacrante contra os “inimigos” é profanar o nome daquele “rebento de Jessé”. A comparação do comportamento do atual governo de Israel não se encaixa de forma alguma com Davi, muito menos com Josué, mas sim com Lameque, que disse às suas esposas: “porque eu matei um homem por me ferir, e um jovem por me pisar. Porque sete vezes Caim será castigado; mas Lameque setenta vezes sete” (Gênesis 4,23-24). Eu gostaria de fazer um apelo a todos os/as biblistas judeus e cristãos, e a todos os sacerdotes católicos que fazem homilias para oferecer uma compreensão das passagens do Primeiro Testamento, para que deem razão a Davi, que retribuiu àqueles que tentavam matá-lo - o rei Saul - curando seu coração com o som doce e ferido da cítara.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“O estilingue de Davi”. Artigo de Rosanna Virgili - Instituto Humanitas Unisinos - IHU