26 Outubro 2024
“Não nos é permitida nem a resignação nem a indiferença diante da paixão palestina, nem podemos ignorar o drama vivido pela própria população de Israel, uma grande parte da qual gostaria de se distanciar da cumplicidade com as políticas genocidas de seu próprio governo, enquanto o próprio povo judeu da Diáspora está envolvido em uma contradição que o coloca em risco em sua relação com as nações em que vivem.”
Publicamos aqui uma mensagem introdutória e a carta-manifesto escrita pelo jornalista e ex-senador italiano Raniero La Valle e assinada por diversas outras autoridades e estudiosos italianos. A carta foi publicada por Chiesa di Tutti, Chiesa dei Poveri, 24-10-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Caros amigos,
Eu gostaria de lhes informar sobre uma iniciativa que diz respeito à tragédia em curso na Palestina e no Oriente Próximo. Trata-se de uma carta que gostaríamos de dirigir aos Judeus da Diáspora.
Estamos todos consternados ao ver o nível extremo a que chegou a destruição da população e do território de Gaza, assim como a caça aos palestinos considerados indóceis ou terroristas, tanto na Cisjordânia quanto no Líbano e no Irã, com grave risco para a própria paz mundial.
Mas não é menor a consternação pela aquiescência do mundo diante dessa tragédia e pela nossa impotência para fazer qualquer coisa para pôr um fim nisso. Porém, sentimos fortemente que não nos é permitida nem a resignação nem a indiferença diante da paixão palestina, nem podemos ignorar o drama vivido pela própria população de Israel, uma grande parte da qual gostaria de se distanciar da cumplicidade com as políticas genocidas de seu próprio governo, enquanto o próprio povo judeu da Diáspora está envolvido em uma contradição que o coloca em risco em sua relação com as nações em que vivem.
Parece-nos, portanto, que essa crise não envolve apenas israelenses e palestinos, mas também todos nós, judeus e não judeus, devido ao entrelaçamento muito estreito entre as nossas histórias e aos laços de fraternidade e de amizade que, especialmente depois do Holocausto, conseguimos reestabelecer entre nós.
O nosso envolvimento nessa tragédia também é determinado pelo fato de ela não afetar diretamente apenas os dois povos em luta nem ser apenas um evento de alcance local, mas ela investe também contra todos os povos e os Estados, e tem um alcance de caráter mundial. Se esse conflito não se resolver e deixar para trás dois povos irremediavelmente inimigos, cujo impulso vital seja a destruição um do outro, todos os outros povos, assim, poderiam cair na mesma síndrome de aniquilação recíproca, de tal forma que a unidade da família humana estaria rompida, e o mundo não poderia subsistir.
Esta carta gostaria de promover um diálogo fecundo, não contaminado por extremismos e preconceitos.
Raniero La Valle
* * *
Caríssimos Judeus da Diáspora,
Escrevemos a vocês para lhes compartilhar uma dupla angústia que cresce em nós desde aquele 7 de outubro de 2023, quando uma brutal ação dos palestinos do Hamas massacrou um grande número de judeus de Israel e muitos não israelenses às margens da Faixa de Gaza.
Junto com a dor pelas vítimas e com a execração pela brutalidade da agressão, a primeira dessas angústias teve origem na percepção de que as consequências daquela ação, com todo o mal que trazia consigo, recairiam sobre toda a população de Gaza e sobre o povo palestino como tal, onde quer que estivesse situado, nos territórios colonizados da Cisjordânia assim como nos países vizinhos.
A outra angústia surgiu e cresceu ao longo do tempo a partir da consideração de que as consequências da implacável retaliação empreendida pelos judeus das Forças de Defesa de Israel, com todo o mal que traz consigo, recairão sobre todo o povo judeu, seja privando de toda a segurança, apesar de toda possível defesa, os cidadãos do Estado de Israel, seja pondo em risco, com resultados imprevisíveis, o povo judeu da Diáspora como tal.
A essa dupla angústia, acrescenta-se aquela em relação ao que pode acontecer devido à ampliação do conflito ao Líbano e ao Irã, e em relação às consequências que podem derivar disso para todo o Oriente Médio e para a paz residual do mundo. O que nos une diante desses eventos é a nossa condição de terceiridade, que nos faz estar do mesmo lado de vocês, tanto diante das atuais condutas do Estado de Israel, que cheira a genocídio, quanto diante das reações violentas e ilegítimas de seus antagonistas, quanto ainda diante da responsabilidade que todos temos em relação à “questão palestina”.
O nosso envolvimento nessa tragédia também é determinado pelo fato de ela não afetar diretamente apenas os dois povos em luta nem ser apenas um evento de alcance local, mas ela investe contra todos os povos e os Estados, e tem um alcance de caráter mundial. Se esse conflito não se resolver e deixar para trás dois povos irremediavelmente inimigos, cujo impulso vital seja a destruição um do outro, todos os outros povos, assim, poderiam cair na mesma síndrome de aniquilação recíproca, de tal forma que a unidade da família humana estaria rompida, e o mundo não poderia subsistir.
Por isso, e não apenas pelas muitas outras razões de que poderiam ser mencionadas, nós sentimos que o problema de vocês é nosso e lhes escrevemos não para lhes dar avisos e conselhos que não temos a autoridade para lhes dar e para os quais vocês poderiam não encontrar nenhuma razão para acolher, mas sim porque estamos convencidos de que, juntos, devemos assumir esse desafio e, juntos, imaginar e buscar sua solução no nível efetivo e político. Se estamos, como se diz, em uma “mudança de época”, todos nós, contemporâneos, somos responsáveis e autores dela.
Outra razão para fazer isso, sem que isso signifique uma interferência em uma questão que é apenas de vocês, é o fato de que, como nós entendemos e é de conhecimento comum, na raiz desse terrível caso, existe uma realidade de fato que não é apenas do Estado de Israel, que em mais de 70 anos não conseguiu encontrar uma solução para o problema da relação na mesma terra com um grande número de residentes que têm outra origem, história, língua, religião e cultura, mas também, e cada vez mais, um problema nosso; e isso devido às correntes migratórias, regulares e irregulares, que afluem aos nossos Estados e às quais as nossas políticas parecem incapazes de encarar.
A diferença está no fato de que, enquanto os Judeus são os “outros” que chegaram para substituir uma população já existente, os nossos Estados são a população existente à qual se somam os “outros” que chegam cada vez mais numerosos, provocando inevitáveis mudanças nela. Se os nossos Estados enfrentassem o problema da relação com os migrantes com a preocupação predominante de uma “identidade” e invariância a ser preservada, o risco seria de viver a “questão migratória” com a mesma angústia com que o Estado de Israel desde o início advertiu sobre a “questão palestina”.
E seria uma catástrofe se nós quiséssemos defender a “nação” e os valores nacionais, indo muito além do fechamento das fronteiras e dos portos, de uma forma correspondente à peremptoriedade com que o Estado de Israel reivindica e tutela sua própria identidade em sua Lei fundamental. Tal Lei, adotada por iniciativa do primeiro-ministro Netanyahu, mas com a oposição do presidente de Israel, Reuven Rivlin, no dia 19 de julho de 2018, como se sabe, define Israel como o “Estado-Nação do Povo Judeu”, a Terra de Israel (várias vezes identificada em Israel com a terra que se estende do mar ao Jordão) como “a pátria histórica do povo judeu em que o Estado de Israel se assentou” e “Jerusalém íntegra e indivisa” como a capital de Israel.
Pode-se objetar que a identidade que torna o povo judeu tão típico e coeso é muito mais forte e mais historicamente experimentada do que aquela que une os cidadãos dos nossos Estados, que estão agora incluídos em sociedades largamente multiétnicas e pluralistas, legitimadas por ordenamentos democráticos, ao contrário do Estado de Israel, em que a referida Lei fundamental reserva os direitos de natureza política “exclusivamente ao povo judeu”.
Mas, se houver a recusa de compreender a “diferença judaica” na especificidade racial, que foi usada como fundamento da perversão do antissemitismo (“raciais” era como eram chamadas as leis que o promoveram), deve-se procurar em outro lugar o cimento dessa unidade e especificidade do povo ao qual vocês pertencem; e nós o encontramos na história de Israel, na sua fé, na sua referência à tradição bíblica e talmúdica (“a Lei e os Profetas”!) e na solidariedade na dor determinada pela experiência e pela memória das perseguições sofridas.
Mas, então, de novo, descobrimos o quanto temos em comum e como também é nosso o problema das políticas e da figura atuais do Estado de Israel.
Acima de tudo, parece-nos que a referência à fé e à tradição religiosa de Israel abre um espaço fecundo de alteridade entre vocês, povo judeu da Diáspora, e os seus irmãos judeus do Estado de Israel. De fato, nos dois casos, essa relação parece diferente. Mesmo os cidadãos não crentes da sociedade israelense, em grande parte secularizada (de um modo não muito diferente das outras sociedades do Ocidente), referem-se a ela e professam-lhe fidelidade como fundamento e garantia do Estado, que desde a origem optou por estabelecer nela sua própria legitimação; de fato, ela é implicitamente reconhecida pela comunidade internacional que atualmente se refere a Israel como o “Estado judeu”.
Isso, porém, envolve uma leitura do patrimônio espiritual do judaísmo em termos temporais e políticos, nem sempre prudentes, que distorcem o significado da fé judaica aos olhos dos observadores externos e que, nos momentos de crise, são acentuados pelos governantes de Israel para defenderem suas escolhas e obterem uma espécie de inquestionabilidade de suas políticas, descarregando o peso das reservas e das críticas que lhes são dirigidas sobre o antissemitismo.
O dano desse uso instrumental dos tesouros do judaísmo nos pareceu ampliado durante essa crise, devido ao uso frequente feito pelo primeiro-ministro Netanyahu, reivindicando uma filiação de suas escolhas diretamente dos mandamentos de Moisés e dos gestos de Josué, estabelecendo uma continuidade de fato entre as ações destrutivas de hoje e os extermínios de ontem dos povos vencidos por Israel na épica conquista da Terra Prometida, interpretando sectariamente o efeito da presença de Israel no “mapa” do mundo em termos de bênção e de maldição, apresentando o Estado de Israel sob a forma de um messianismo realizado e rompendo com a comunidade das Nações em uma contraposição renovada entre Judeus e “Gentios”.
Essa linha de governo se manifestou rotulando a organização que une as Nações, a ONU, como um “pântano de antissemitismo”, não poupando a vida de seus agentes humanitários, atacando seus militares em missão de paz, declarando como persona non grata seu máximo representante e desdenhando os pronunciamentos, as advertências e as acusações de seus órgãos institucionais e judiciários.
Estamos particularmente horrorizados, e parece blasfema a prática de matar os inimigos um por um e prometer matá-los todos invocando o nome de Deus, tendo como recompensa a luz e o entusiástico consenso de Biden.
Queremos lhes salientar que é muito diferente o testemunho dos valores do judaísmo e da fé de Israel que emana do vasto mundo dos Judeus da Diáspora. Entre vocês, também há crentes e não crentes e, sem dúvida, é razão de enriquecimento para todos a presença e a integração dos Judeus da Diáspora nas nossas sociedades seculares e na construção de democracias autênticas.
Mas, se levarmos em conta a rica variedade de posições expressadas no seio do judaísmo, vemos que uma grande parte dos sábios de Israel e do judaísmo rabínico rejeitaram no passado – e também rejeita hoje em uma notável medida – uma interpretação do messianismo em sentido político e mundano, professando como reservada a Deus a implementação das promessas messiânicas. Jurou “não forçar o fim”, dissociou-se de uma versão do sionismo em seu perverso entrelaçamento com o Estado, reivindica o valor da vida judaica “no diferimento” da redenção e no exílio, lê o livro sagrado de uma forma não fundamentalista e tem palavras de vida sobre muitas outras coisas.
Por isso, do nosso ponto de vista, seria grande a importância de um crescimento do diálogo e do debate entre o mundo da Diáspora e os judeus do Estado de Israel, em vista de uma mudança e de uma retificação dos erros cometidos (denunciados até pelos Estados Unidos), e também a fim de uma contenção e de um antídoto ao monstro ressurgente do antissemitismo ou, como também foi chamado por renomados judeus, ao “suicídio de Israel”.
A segunda realidade chamada em causa pela referência à fé e à tradição bíblica de Israel é a do Ocidente, que não por acaso é colocado, a partir de um lugar comum cujo verdadeiro alcance muitos ignoram, na filiação da tradição “judaico-cristã”.
Se isso for verdade, surge um problema muito grave para nós, para além das opções de fé de cada um. Pertence a essa nossa tradição uma palavra de Jesus dita à mulher samaritana junto ao poço de Jacó, transmitida pelo Evangelho de João, que afirma: “A salvação vem dos judeus”. A nossa experiência atual e a tragédia de Gaza insinuam que, em vez disso, deles virão a perdição e o fim.
O problema consiste no fato de ou abandonarmos como infundada e não confiável a predição de Jesus (mas então todo o Evangelho cai) ou a situação atual é invertida, e essa profecia se traduz em um feliz prenúncio de outro futuro e em uma tarefa a cumprir.
Na história da cristandade, durante muito tempo esta segunda hipótese foi descartada (“os pérfidos judeus”!), mas, no nosso tempo, ocorreu a inversão, como demonstram a reforma da liturgia, a fé expressada no documento Nostra aetate do Concílio Vaticano II, o diálogo ecumênico e judaico-cristão, o reconhecimento dos judeus como “nossos irmãos mais velhos”, segundo a expressão de Paulo VI, o documento de Abu Dhabi e a Fratres omnes do Papa Francisco, assim como, no mundo secular, a conversão é atestada pelo arrependimento e pela condenação universal da Shoá junto com a honra e o preconceito favorável reservado aos judeus contra todo antissemitismo.
Soma-se a isso, por parte da historiografia científica e da hermenêutica cristã, uma leitura não servil da Bíblia (a literal seria, segundo os teólogos católicos, um “suicídio do pensamento”), que não considera “históricos” os livros “históricos” do Antigo Testamento, escritos muitos séculos depois dos fatos narrados e que, por isso, não atestam fatos que realmente ocorreram.
Isso significa libertar o povo judeu da suposta origem de um crime fundador e até mesmo de um passado de decretos de extermínio e de massacres de povos inteiros (muitos dos quais nem sequer existiam na época), encomendados por um improvável Deus violento, por sua vez posteriormente morto no Filho, e apagar toda a parafernália ideológica sobre a qual foi historicamente fundamentada a perseguição antissemita. Do outro lado de um passado de crimes fundadores e messianismos letais, há muitas realizações genocidas e colonizações de assentamento do Ocidente “civilizador”, como na “descoberta” e na conquista da América, na chamada América “latina”, na África, não só do Sul, na Oceania e em outros lugares.
Uma vez restabelecido o horizonte de atuação, abre-se a possibilidade de uma aliança de todos os sujeitos defensores da paz com os judeus da Diáspora por um diálogo com o atual Estado de Israel, a busca de uma solução e a construção de uma alternativa relativa não apenas a Israel e aos palestinos, mas também à paz e à própria unidade mundo.
Seria uma presunção e também o reflexo de uma mentalidade hegemônica estabelecer os termos dessa solução, que só podem surgir de uma busca comum e da invenção da história. Contudo, pode-se afirmar com um grau suficiente de certeza que uma solução só pode residir em uma reconciliação entre israelenses e palestinos, e não vir apenas de artifícios políticos e diplomáticos.
Para a construção de uma alternativa, é preciso abandonar agora a enganosa solução dos dois Estados, mesmo onde nunca foi possível e desejável no passado, e a ficção de negociações ordenadas, na realidade, a confirmar e a preservar a situação tal como ela é, como foi defendido também em um diálogo entre duas culturas diferentes, como o diálogo entre Ilan Pappé e Noam Chomski.
Resta a solução do Estado único, mas, então, ela deve ser construída por meio de uma reforma da figura de Estado vigente, uma reforma que, portanto, diz respeito não só ao Estado de Israel, no qual a identidade étnico-religiosa levada ao extremo deu origem a uma regime de dominação e de guerra, mas também à própria forma de Estado moderno, tal como foi se estabelecendo nos Estados existentes, que, em seu conjunto já globalizado, apresentam-se como um amontoado de soberanias em competição, senão até em luta entre si, que elegeram como último (e muitas vezes também primeiro) juiz entre eles a guerra.
O Estado que responde à nova realidade de uma comunidade mundial pluralista e multicultural deverá, antes, construir a si mesmo em uma pluralidade de ordenamentos jurídicos que interajam entre si, estabeleçam a paz como soberana, assegurem a igualdade, reconheçam não só como negócio individual e “privado”, mas também social e significativo para todos, as culturas, as religiões e as tradições diferentes, e abram as fronteiras e os portos à livre circulação não só das economias e das mercadorias, mas também das pessoas e dos povos.
Poderíamos até pensar que, na nova “aldeia global”, em relação aos organismos que correspondem aos três poderes competentes nas pelas relações internas dos Estados – legislativo, executivo e judiciário –, se poderia acrescentar outro órgão, o da diplomacia, com poderes de conselho e de controle sobre as relações exteriores e as escolhas internacionais do Estado, a partir da escolha constitucionalmente vinculante da paz, da salvaguarda da criação e da dignidade das criaturas.
Assim como se poderia pensar em um desenvolvimento do direito que chegue a abolir e a punir a figura do “Inimigo”; e isso não só na Europa, quando, até mesmo no Império Otomano, judeus e muçulmanos viveram juntos pacificamente durante séculos, sem sombra de antissemitismo.
Isto é o que gostaríamos de dizer aos judeus que convivem conosco, nossos vizinhos, concidadãos, irmãs e irmãos nesta época nova.
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Carta ao povo judeu da Diáspora - Instituto Humanitas Unisinos - IHU