25 Outubro 2024
“Ele nos amou” é o título da nova encíclica de Bergoglio dedicada à devoção religiosa do “Coração de Jesus”, na qual o Papa recolhe e faz a sua parte do ensinamento da Igreja sobre o assunto, incluindo o dos seus antecessores no pontificado Ao longo de 46 páginas, Francisco também coloca a espiritualidade em diálogo com a vida social e os dilemas do presente.
O artigo é de Washington Uranga, jornalista, professor e pesquisador de comunicação, publicado por Página12, 25-10-2024.
“Ele nos amou” é o título em espanhol (“Dilexit nos”, em latim) da quarta encíclica de Francisco, um documento de 46 páginas em 5 capítulos e 220 parágrafos, sobre “o amor humano e divino do coração de Jesus Cristo, datado no Vaticano em 24 de outubro de 2024, décimo segundo do meu Pontificado”. É uma reflexão de natureza expressamente espiritual e religiosa em que Jorge Bergoglio retoma a devoção católica popular ao Coração de Jesus para reivindicar essa manifestação, para ponderá-la na tradição da Igreja, destacando as contribuições de teólogos e filósofos, mas também dos seus antecessores no pontificado, especialmente daquele que hoje é reconhecido como São João Paulo II.
Designado pelos seus críticos como “excessivamente social”, o Papa revela neste texto a sua marca devocional. Algo que também é dito explicitamente num dos parágrafos das conclusões. “O que está expresso neste documento permite-nos descobrir que o que está escrito nas encíclicas sociais Laudato si’ e Fratelli tutti não é alheio ao nosso encontro com o amor de Jesus Cristo, pois bebendo desse amor nos tornamos capazes de tecer fraternidade laços, de reconhecer a dignidade de cada ser humano e de cuidar juntos da nossa casa comum” (217), Bergoglio agora argumenta como uma resposta indireta àqueles que apontam o acima exposto.
Mas, ao mesmo tempo, sob o título “A missão de fazer o mundo se apaixonar”, Francisco lembra que na ação “missionária” da Igreja deve ser construída também “uma sociedade de justiça, de paz e de fraternidade” (206). Sem abandonar o estilo de “diálogo” permanente com a vida cotidiana que Francisco ainda mantém neste texto de perfil claramente espiritual, o Papa recorda que “hoje tudo se compra e se paga, e parece que o sentido da dignidade de uma pessoa depende de coisas que Eles são alcançados com o poder do dinheiro”. Por isso, diz ele, “só precisamos acumular, consumir e nos distrair, prisioneiros de um sistema degradante que não nos permite olhar além das nossas necessidades imediatas e mesquinhas”. E argumenta que “o amor de Cristo está fora dessa engrenagem perversa e só ele pode nos libertar daquela febre onde não há mais espaço para o amor gratuito” (208).
Na parte inicial da encíclica, Francisco justifica o sentido do documento divulgado para coincidir com o encerramento das sessões do “sínodo da sinodalidade” que reuniu bispos, religiosos e religiosas, leigos e leigas de toda Roma para três semanas pelo mundo para debater questões que compõem a vida da comunidade católica. Francisco sustenta que “neste mundo líquido é necessário voltar a falar do coração, apontar onde cada pessoa, de todos os tipos e condições, faz a sua síntese; ali onde os seres concretos têm a fonte e a raiz de todos os seus outros poderes, convicções, paixões, escolhas” (9).
Sem perder de vista, afirma o Papa, “nos movemos em sociedades de consumidores seriados que vivem o dia a dia e dominados pelos ritmos e ruídos da tecnologia, sem muita paciência para realizar os processos que a interioridade exige”. Razão pela qual, continua argumentando, “na sociedade atual o ser humano ‘corre o risco de perder o seu centro, o centro de si mesmo’”.
“Há falta de coração”, reflete Bergoglio, porque “o homem contemporâneo muitas vezes se vê perturbado, dividido, quase privado de um princípio interior que gera unidade e harmonia no seu ser e nas suas ações. Modelos comportamentais bastante difundidos, infelizmente, exasperam a sua dimensão racional-tecnológica ou, pelo contrário, a sua dimensão instintiva.” E Francisco continua dizendo que “é preciso que todas as ações sejam colocadas sob o ‘domínio político’ do coração, para que a agressividade e os desejos obsessivos sejam acalmados no bem maior que o coração lhes oferece e na força que ele tem contra os males”.(13).
Há também espaço para lembrar que “no tempo da inteligência artificial não podemos esquecer que a poesia e o amor são necessários para salvar o que é humano”. E recorrendo a exemplos do cotidiano, talvez memórias da sua própria infância na Argentina, Bergoglio diz que “o que nenhum algoritmo conseguirá abrigar será, por exemplo, aquele momento da infância que é lembrado com ternura e que, mesmo que o os anos passam "Isso continua acontecendo em todos os cantos do planeta. Francisco destaca que “eu poderia citar milhares de pequenos detalhes que sustentam a biografia de cada um: fazer sorrisos com uma piada, traçar um desenho contra a luz de uma janela, jogar a primeira partida de futebol com uma bola de trapo, cuidar de minhocas em um caixa de sapatos, secar uma flor entre as páginas de um livro, cuidar de um passarinho que caiu do ninho, fazer um pedido ao arrancar as folhas de uma margarida. Conclui que “todos esses pequenos detalhes, o ordinário-extraordinário, nunca poderão estar entre os algoritmos. Porque o garfo, as piadas, a janela, a bola, a caixa de sapato, o livro, o pássaro, a flor... são sustentados pela ternura que fica guardada nas lembranças do coração” (20).
Voltando-se para o nível dos conflitos no mundo, Francisco diz ainda que “vendo como acontecem novas guerras, com a cumplicidade, tolerância ou indiferença de outros países, ou com meras lutas de poder em torno de interesses parciais, podemos pensar que a sociedade mundial está a perder a sua coração". “ Bastaria olhar e ouvir as mulheres idosas – das diferentes partes em conflito – cativas destes conflitos devastadores” e – sublinha – “é de partir o coração vê-las chorar pelos seus netos assassinados, ou ouvi-las desejar pela própria morte porque ficaram sem a casa onde moram”. O recurso de dizer que a culpa é dos outros não resolve este vergonhoso drama. Ver as avós chorarem sem que isso se torne intolerável é sinal de um mundo sem coração” (22), expressa em jeito de reclamação.
Há também palavras sobre o “pecado” e o seu caráter “social”, e também sobre o valor e a importância de pedir perdão. Para Francisco, a cada pecado individual pode ser atribuído “o caráter de pecado social” porque constitui sempre “uma agressão direta ao próximo” (183) que muitas vezes “acaba por consolidar uma estrutura de pecado” e que, inserida numa “mentalidade dominante que considera normal ou racional o que nada mais é do que egoísmo e indiferença”, pode ser definido como “alienação social” (183).
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'Dilexit nos'. Uma reflexão sobre o amor humano, que não descura a dimensão social. Artigo de Washington Uranga - Instituto Humanitas Unisinos - IHU