27 Setembro 2024
Os jesuítas admitem aos membros de um grupo espiritual a “conduta inadequada” de um jesuíta, pedem perdão e confirmam que ele foi simplesmente afastado.
A reportagem é de Raquel Ejerique, publicada por Religión Digital, 27-09-2024.
Os membros do autoproclamado “O Grupo”, uma comunidade espiritual da Companhia de Jesus para catequese, retiros e orações em Madri, receberam na última segunda-feira uma carta em papel timbrado da sua organização. Nele, os guias espirituais lhes contavam que os boatos que ouviram e perguntaram eram verdadeiros: o conhecido padre J.M. havia sido denunciado no passado por abusos enquanto ali era religioso, quando teve contato permanente com centenas de crianças, jovens e adultos, muitos dos quais acompanhou em retiros e sozinhos.
“Em 2015, o então Provincial da Companhia de Jesus recebeu duas denúncias contra J.M. por comportamento inadequado no âmbito do acompanhamento espiritual durante o seu período como sacerdote da Comunidade dos Grupos Católicos de Loyola – como também é conhecida esta comunidade sediada no Bairro Salamanca. Posteriormente, foram recebidos quatro novos depoimentos”, diz a carta, à qual elDiario.es teve acesso.
Os acontecimentos relatados foram anteriores a 2009, ano em que os religiosos abandonaram esta comunidade, e afetaram menores, mas também adultos. O que a Companhia de Jesus fez? Na carta recentemente enviada, datada de 23 deste mês, o grupo de oração explica que em 2015 foi aberta uma investigação “que culminou num Decreto Canônico com medidas para 5 anos”.
Entre as medidas estava “a proibição explícita de J.M. de atividades pastorais com menores, também de participação em atividades dos Grupos de Loyola, bem como de qualquer acompanhamento espiritual”. O elDiario.es perguntou para qual obra o religioso foi transferido, sem ter obtido resposta específica. Dos adultos, embora também tenham sido relatados abusos ou “comportamento inapropriado”, eles não foram especificamente separados.
Um segredo aberto
É o caso de Miguel (nome fictício, pois prefere não ser identificado), membro da comunidade nos anos em que J.M. orientou jovens: “Aconteceu-me quando já era estudante universitário, maior de idade, no início dos anos 2000, durante o retiro, acompanhei-o individualmente em dias de silêncio. Em algumas sessões ele me abraçou de uma forma incomum, respirava em mim como se estivesse ofegante. Ele colocou a mão sob minha camisa e começou a apalpar minhas costas. Além disso, foram dias de silêncio, em que não é permitido falar, então o contexto era muito favorável para alguém assim”.
Naquela época, os religiosos não haviam sido oficialmente denunciados às autoridades eclesiásticas e tinham rédea solta em todas essas sessões, embora fosse um segredo aberto. “Muitos sabiam disso”, diz Miguel. “Na verdade, lembro que contei a um religioso e ele não fez absolutamente nada, realmente não houve consequências”.
Na carta enviada à sua comunidade, os jesuítas admitem que em 2021 o caso foi revisto e tudo permaneceu igual, apesar de a consciência social sobre os abusos ser maior, as reclamações públicas multiplicarem-se e o Vaticano ter solicitado mais controlos. “As medidas foram revistas e hoje mantém-se a proibição pastoral e o acompanhamento de menores, bem como a participação em atividades e solicita-se que o contato mantido seja pessoal e não apostólico”. Quando questionada sobre o que significa quando permite o contato pessoal ou onde ele está agora, a empresa não dá uma resposta concreta.
Tanto o recente plano da Igreja contra os abusos como o protocolo específico da Companhia de Jesus, publicado online, exigem ajuda para denunciar ou compensar as vítimas de várias formas, inclusive financeiramente. Segundo o ofício, “em um dos casos a Companhia de Jesus facilitou o pedido de reparação da vítima”. Do resto, nada se sabe. Os jesuítas também não responderam a questões específicas a este respeito.
A carta também traz as palavras textuais do atual Provincial, dirigente da Companhia desde 2023, nas quais pede perdão e justifica as ações da organização: “Embora esta revelação e a sombra que ela representa doam agora, não anula muito do que na vida de J. também tem sido a dedicação, o serviço e a vontade de acertar na hora de compartilhar o evangelho. Como atual provincial de J., em nome da Companhia de Jesus peço perdão, como fizemos naquela época com as vítimas”, relata a carta.
Mostra também que o agressor assumiu implicitamente a culpa: “De acordo com a vontade manifestada pelos denunciantes, J.M. nunca conheceu a origem das acusações, mas demonstrou desde o primeiro momento uma vontade firme de rever a sua conduta passada e a profunda raiz deste comportamento, o que envolveu um processo de revisão pessoal”.
Com isso e tudo mais, ele não foi expulso da Igreja nem denunciado e continua sua vida espiritual sem maiores consequências públicas ou jurídicas. “Em todos os momentos foram atendidos os desejos das vítimas, no que diz respeito ao anonimato, e aos processos de reparação quando o solicitaram. Mas não nos cabe dar mais informações sobre o assunto”, concluem de forma genérica fontes oficiais dos jesuítas.
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