27 Setembro 2024
O ideal de democracia é constantemente ostentado para legitimar a gestão menos democrática possível da comunidade mundial.
O artigo é de Carlo Rovelli, professor no Centro de Física Teórica da Universidade de Marseille, na França, e diretor do grupo de pesquisa em gravidade quântica do Centro de Física Teórica de Luminy, publicado por Corriere della Sera de 25-09-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Ao longo da história da humanidade, surgiram ideais poderosos, capazes de capturar aspirações e sonhos, entusiasmar e mobilizar gerações, para a criação de um mundo que parecia melhor. Foram palavras em torno das quais quase se agregou o melhor da humanidade.
Muitas vezes, esses ideais e essas palavras conseguiram contribuir para mudar o mundo, oferecendo à humanidade uma força extraordinária de libertação. Esses mesmos ideais, no decorrer da história, foram depois seguidamente usados para oprimir, para manter o domínio, muitas vezes criando miséria e sofrimento. A força progressiva que permitiu que esses ideais melhorassem o mundo e levassem novas estruturas ao poder, muitas vezes evoluiu para uma forma de legitimação ideológica que o novo poder usou para se manter e oprimir. Aqui vão alguns exemplos, tomados aqui e ali na história.
Nos séculos em que se espalhou no Império Romano, o cristianismo trouxe consigo uma forte carga social: o reconhecimento da humanidade e da dignidade dos fracos. Séculos mais tarde, o mesmo cristianismo, agora firmemente no poder, serviria como cobertura ideológica graças a ideais como a difusão da verdade e da caridade cristãs, ou a salvação das almas, para justificar o direito dos europeus de subjugar e destruir vastas populações não cristãs nas Américas com extrema violência. Na China, o confucionismo nasceu como um estrondoso rompimento da exclusividade do poder da corte: pela primeira vez, qualquer pessoa poderia se tornar um homem de letras, um erudito, por meio do estudo e do respeito. Dessa forma, qualquer pessoa poderia ter acesso, por mérito, aos degraus mais altos das escadas hierárquicas. Depois de ser adotado, rejeitado, depois buscado e, finalmente, adotado novamente como ideologia pelo poder imperial, o confucionismo se tornou a ética que legitimaria a hierarquia social e o próprio poder imperial: de progressista, se transformou em conservador.
Na formação da civilização na Idade Média europeia, os ideais de honra e lealdade estruturaram e teceram a vida social do continente, tornando-a mais civilizada, mas depois se tornaram instrumentos de legitimação ideológica da aristocracia, que se considerou a portadora da civilização. Em 1789, a Assembleia Nacional Francesa votou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. “Os homens nascem e permanecem livres e iguais nos direitos”. É o universalismo da Revolução Francesa, ao qual o mundo moderno deve muito. Nasceu como um ato político revolucionário contra o poder opressivo da aristocracia do Antigo Regime. Mobilizou a população francesa, os “citoyens”, os “cidadãos”, contra essa opressão e construiu uma sociedade nova e mais igualitária. Dois séculos depois, o universalismo francês é denunciado pela descolonização como instrumento opressivo de legitimação do colonialismo.
Durante o século XIX, nacionalismo e ideia de pátria foram forças ideais que arrastam gerações a se rebelarem contra os poderes opressivos estabelecidos e a construírem as nações modernas. Mazzini e Garibaldi os personificaram na Itália. “Ou criamos a Itália ou morremos”, “A pátria antes de nós mesmos”, foram generosos incitamentos para colaborar pelo bem comum. O mesmo nacionalismo evoluiu rapidamente para o fascismo na Itália, na Espanha e na Alemanha, com resultados catastróficos bem conhecidos. O ideal de liberdade, a bandeira da resistência na Itália e a luta contra o totalitarismo nazifascista e, algumas décadas mais tarde, ideal máximo de minha geração e de sua pequena revolução cultural, se transformou em algumas décadas depois na ideia mercantil da liberdade de cuidar apenas de si mesmos e não pagar impostos. Ao longo do século XIX, um profundo anseio por justiça social se encarnou nos ideais do socialismo e do comunismo. O comunismo chegou ao poder na Rússia devido a uma grande união idealista pela construção de uma sociedade justa e de um “novo homem”, melhor. Em pouco tempo, esses mesmos ideais foram usados para reprimir duramente o dissenso interno e nas áreas do mundo controladas pelo poder soviético.
E hoje? Hoje, o ideal de democracia, com seu sistema de direitos associado, como liberdade de expressão, liberdade de imprensa, liberdades individuais, etc., orgulho dos países ocidentais, tornou-se o novo argumento para legitimar o poder armado e o domínio político de poucas nações sobre as muitas outras, e para atacar ou conter com armas qualquer um que não se curve ao domínio político desse pequeno grupo de nações. O ideal de democracia é constantemente ostentado para legitimar a gestão menos democrática possível da comunidade mundial.
Tudo isso não tira valor às grandes palavras que representaram e ainda representam os grandes ideais da humanidade: fraternidade, justiça, liberdade, igualdade, democracia, socialismo, comunismo, pátria, honra, fidelidade e muitas outras. Mas essas considerações devem, creio eu, nos conscientizar da complexidade das nossas relações políticas e culturais e, espero, nos tornar um pouco menos tolos na repetição, como papagaios, do nome de algum grande ideal, sem nos perguntarmos como ele é usado. Ou, pelo menos, um pouco mais espertos em enxergar a hipocrisia. Aquela dos cristãos que se apoderaram das Américas para a glória de Cristo, aquela da Europa que subjugou o mundo para levar a luz de seus valores universais, aquela dos expurgos do stalinismo realizados em nome do bem da coletividade. E, certamente não menos importante, a da atual ostentação de palavras como Democracia e Liberdade, a fim de dar uma hipócrita justificativa ideológica à agressiva defesa armada do que resta do domínio econômico sobre o mundo, herdeiro do colonialismo, do pequeno grupo dos países hoje mais ricos.
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A parábola dos ideais. Artigo de Carlo Rovelli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU