A luta social se funde na luta pela vida em um processo de resistência capaz de reconfigurar inclusive o que reconhecemos com ciência, alargando as fronteiras da academia para além do lobby do agronegócio e da indústria química de agrotóxicos
De um lado, o lobby que patrocina a “ciência” para produzir pesquisas que atendem aos interesses privados e do capital. De outro, a figura do Jeca Tatu, que está intrinsecamente ligado à proteção da terra e da vida. Há centenas de pesquisas no Brasil que não têm o rigor científico questionado porque são bancadas pelo grande capital. “Não questionam o rigor científico de pesquisas realizadas pelas universidades públicas por bolsistas pagos pelas empresas privadas para provarem que o uso de agrotóxicos e pesticidas não fazem mal para a saúde do povo e para o meio ambiente”, adverte a doutora em Serviço Social Letícia Chimini. “Absurdos como esses sempre foram vistos com neutralidade, por serem revestidos de um rigor científico. [...] De toda a forma, na pesquisa e na ciência não existe neutralidade”, assevera.
A pesquisadora, que já foi camponesa e é militante social, acredita que a ciência de verdade tem como missão “dar visibilidade para os processos de resistência ao capital, com pesquisas acadêmicas e rigor científico como mais uma forma de resistir e colocar luz sobre processos que possam contribuir com formas de sociabilidade que não tenham como objetivo somente o lucro em detrimento ao futuro da humanidade”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, a entrevistada, que acaba de lançar A questão agrária no capitalismo dependente: elementos da questão social e a resistência do campesinato brasileiro (Editora Appris, 2024), comenta a importância do campesinato como forma de objeção ao sistema predatório do agronegócio: “se a reforma agrária ainda não saiu da pauta da sociedade brasileira, é pela força de mobilização dos movimentos sociais do campo”. Letícia salienta que “terra e território sempre foram uma questão e assim será enquanto não houver uma reforma agrária popular, a regularização fundiária de territórios camponeses e quilombolas e a demarcação das terras indígenas”. Na medida em que “70% das terras agricultáveis está sob domínio do agronegócio e 30% das terras agricultáveis é produzida pela agricultura familiar e camponesa, mais de 70% da comida consumida no Brasil, é produzida por quem tem menos terra e menor acesso aos recursos, créditos e insumos disponíveis”, pontua a professora.
Letícia Chimini (Foto: Alexandre Garcia | Brasil de Fato)
Letícia Chimini é doutora em Serviço Social pela PUCRS, mestre em Desenvolvimento Regional e graduada em Serviço Social pela Universidade de Santa Cruz do Sul/RS. Trabalhou como extencionista rural na produção agroecológica e em cooperativas de habitação rural, como Coordenadora do Centro da Juventude Restinga (AMURT-AMURTEL) e contribuiu nas mídias Brasil de Fato RS e Rede Soberania. Presta assessoria e consultoria junto aos movimentos sociais populares, na mobilização, organização coletiva e formação. Pesquisa questão agrária, gênero e meio ambiente, mediados pela questão social.
IHU – Por que a questão da terra, da garantia do acesso à terra, é uma das principais questões brasileiras?
Letícia Chimini – No Brasil é uma questão porque nunca aconteceu uma divisão das terras, ao contrário, houve intencionalidade do Estado brasileiro em concentrá-la para um uma minoria privilegiada. Terra e território sempre foram uma questão e assim será enquanto não houver uma reforma agrária popular, a regularização fundiária de territórios camponeses e quilombolas e a demarcação das terras indígenas. 70% das terras agricultáveis está sob domínio do agronegócio e 30% das terras agricultáveis é produzida pela agricultura familiar e camponesa. Sobre essa fatia menor, há que se fazer duas observações: a primeira é que há ainda grande parte da produção realizada pela agricultura familiar, inserida nos processos produtivos controlados pelo capital internacional, nos sistemas integrados de produção, como o fumo, o frango, o leite, suínos, entre outros. A segunda, é que mais de 70% da comida consumida no Brasil, é produzida por quem tem menos terra e menor acesso aos recursos, créditos e insumos disponíveis.
Embora as análises da pesquisa iniciem a partir da década de 1960, o processo de industrialização toma força após a crise de 1929, que impactou de forma substantiva o modelo econômico da política “Café com Leite”, predominante e dependente da produção monocultora do café, que privilegiava as elites agrário-exportadoras de café, produtora de gado leiteiro e demais produções com destino de exportação. Todavia, as burguesias não disputam entre elas.
A natureza contraditória do capital no bojo do desenvolvimento desigual e combinado da economia capitalista, Trotsky (2007) aponta que “o desenvolvimento de uma nação historicamente atrasada induz, forçosamente, que se confundam nela, de uma maneira característica, as distintas fases do processo histórico”. Ou seja, “o padrão de acumulação interna e externa de cada burguesia serve para definir seu lugar no processo de composição internacional do Capital, em que determinantes particulares do processo de acumulação” em cada território “serve como fundamento do processo de acumulação de capital como um todo, cuja força motriz está centrada na força de trabalho da classe trabalhadora”.
Marx (1982) desvelou a essencialidade da construção de um exército industrial de reserva, como força motriz para subordinação real do trabalho ao capital. Para isso, se faz fundamental a supressão dos meios de trabalho e de subsistência dos Trabalhadores e, sendo a terra e território um modo de vida e de trabalho, expropriar a terra dos povos originários e tradicionais é condição elementar para o subjugo de toda a classe trabalhadora. Atentando para a conformação sócio-histórica, é possível ver a relação do êxodo rural com o processo de industrialização no Brasil, com destaque a partir da década de 1930, após a crise do capital de 1929 e com mais força a partir da década de 1960, sob a batuta violenta dos militares.
Santos Neto (2015) afirma que o desenvolvimento desigual e combinado não está posto apenas na relação com um mercado externo, mas também no mercado interno. Por conseguinte, as economias centrais desenvolvem formas de minimizar os efeitos deletérios dessa desigualdade para que ela não se constitua em “um instrumento de intensificação das contraposições internas de determinadas frações de sua burguesia”. Assim sendo, o desenvolvimento desigual e combinado fornece, de forma articulada, a garantia para que os interesses das distintas frações da burguesia sejam garantidos de forma a não prejudicar os interesses particulares das frações de cada segmento da burguesia nacional e internacional, servindo aos propósitos da acumulação capitalista na periferia do sistema.
Nesse ínterim, desterritorializar a população que vivia no rural brasileiro para ser força de trabalho nas cidades é o elemento que amalgama as desigualdades estruturais e remetem à essência das manifestações da questão social nos dias atuais. Dessas manifestações, destacamos a violência histórica contra os povos originários, uma questão atemporal no Brasil. Atualmente há vários conflitos agrários em várias partes do país, com destaque para o oeste do Paraná, o Mato Grosso do Sul, o norte do Rio Grande do Sul, em Alagoas, na Amazônia, dentre outras regiões, é a realidade concreta. O braço armado do agronegócio (agromilícias) e do Estado continuam combatendo o povo indígena, principalmente quando se colocam em processos de retomadas de seus territórios ancestrais.
Essa contextualização se faz importante, pois contribui com elementos que permitem compreender o lugar essencial que a força de trabalho desempenha para a acumulação do excedente da produção agroexportadora, desde a mão de obra forçada e escravizada, até o processo de industrialização no Brasil, sem que o agronegócio perdesse a hegemonia política e econômica.
IHU – Em que sentido a luta pela terra se converte politicamente em luta pela vida, seja para os campesinos, seja para os povos indígenas e o que implica compreender o campesinato como sujeito político?
Letícia Chimini – Quanto mais o povo se organiza para lutar coletivamente, maior é a violência que o Estado e as milícias, a serviço do capital, utilizam para combatê-las e vimos isso na questão acima, com recorte sobre os povos indígenas em processo de retomada de seus territórios ancestrais (Tekohas) que são unidade da luta dos povos originários. As ligas camponesas também refletem essa realidade da luta que é respondida com violência pelo braço armado do Estado.
Araújo (2012) faz uma análise sobre o campesinato, enquanto força coletiva de pressão e mobilização social, com ênfase na segunda metade da década de 1950, quando surgiram as Ligas Camponesas e os Sindicatos de Trabalhadores Rurais. Na história brasileira, as ligas camponesas incluíram a questão agrária na pauta da sociedade brasileira em um período em que as ideias socialistas se espalhavam pelo mundo. Essa mobilização colocou o campesinato em evidência na questão agrária nacional, como sujeito político coletivo e que evidenciou as graves manifestações da questão social no campo no âmbito do capitalismo contemporâneo. Até os dias atuais, se a reforma agrária ainda não saiu da pauta da sociedade brasileira, é pela força de mobilização dos movimentos sociais do campo.
Porém, em se tratando das Ligas Camponesas, em período em que o socialismo avançava territorialmente, essas ideias socialistas aliadas ao povo organizado exigiram respostas do Estado e da elite brasileira. A resposta veio através de uma ditadura civil-militar para implementar os planos das elites hegemônicas no território brasileiro e essas ditaduras estenderam-se pelos demais países, ligando a história da América Latina.
Territorialmente, a terra, é constitutiva do capital na América Latina e, por isso, faz parte o desmatamento da Amazônia e o desflorestamento das unidades federativas dos países que compõem a Bacia Amazônica como estratégia para garantir a expansão do capital e o acesso à terra para uso nos moldes capitalistas. Esse território tem sido fator importante, também, para conservar o preço das terras de interesse do capital, visto que, na lógica da oferta e demanda, o aumento da demanda por terra aumentaria seu preço para aquisição, conforme elucida-nos Michelotti (2019).
A reprodução do capital necessita avançar constantemente e o faz sobre trabalhadores livres, através da ocupação de território, mas não sem resistência. Sobre os trabalhadores rurais, foi necessário organizar a exploração associada com a expropriação dos recursos naturais, de forma singular, para desenvolver o capitalismo no campo, apoderando-se da força de trabalho, dos recursos naturais e dos territórios, ou seja, a terra é elemento constitutivo do capitalismo na América Latina (DIAS; MARTINI, 2021), assim como a força de trabalho camponesa é constitutiva da produção de valor no território, conforme já havia afirmado Traspadini (2016).
A luta pela terra e território se dá com o povo organizado em coletivos, movimentos sociais e sindicais. A força da sua organização é a força coletiva com consciência de classe e poder de mobilização. Os números falam por si, o Brasil é o país que mais mata militante Social e Ambiental porque o povo organizado coloca obstáculos para o avanço do Capital.
Outrossim, há segmentos do povo brasileiro que a própria existência é símbolo de resistência, como os povos indígenas, a juventude negra e periférica, os campesinos e campesinas que travam disputas no território em que vivem e trabalham, confrontando os lucros bilionários de megaprojetos “de energias renováveis” com seus modos de subsistência e o direito de viver e de existir.
A luta social se funde na luta pela vida em um processo de resistência porque o Estado não as quer, o sistema capitalista não as quer, a não ser que possam ser exploradas. Se um povo não pode ser explorado, lembremos do exército industrial de reserva, não gera mais valia, não serve para o capital, e em contexto de criminalização dos pobres e dos militantes sociais, para o Estado se tornam um peso.
Há muitas formas de se matar a militância e as resistências. Não é só bala que mata, há muitos processos que precisam ser vencidos, como a luta contra a fome, para que as comunidades, movimentos sociais e sindicais continuem resistindo e avancem. Enquanto estiverem vivos e vivas, continuarão fazendo suas lutas e denunciando as injustiças estruturais, pois a luta pela terra e território é a luta pela vida.
IHU – Seu mais recente livro é intitulado A questão agrária no capitalismo dependente: elementos da questão social e a resistência do campesinato brasileiro. Poderia falar, em linhas gerais, do que se trata o livro e como ele foi construído?
Letícia Chimini – Em linhas gerais, faço uma pesquisa, que inicia no mestrado e tem continuidade no doutorado, cuja pesquisa apresentada e seu desenvolvimento convergem para o tema da questão agrária no Brasil e a atuação do campesinato nos processos de resistência, sendo delimitado pela atuação do campesinato, frente ao avanço do capital, entre os anos de 1960 e 2020. O objetivo é o de compreender os processos de resistência do campesinato frente ao acirramento do capital a fim de contribuir com elucidações para a superação do sistema econômico hegemônico no Brasil. A construção se deu a partir do seguinte problema: como vêm se constituindo os processos de resistência do campesinato no enfrentamento ao avanço do capital no campo brasileiro?
Para dar visibilidade aos processos emancipatórios que corroboram com a emancipação humana na América Latina, as reflexões que contribuem com a temática são também mobilizadoras desta. As questões suleadoras [1] dão sustentabilidade e servem para o aprofundamento, para a compreensão da produção e da reprodução do capital nas economias dependentes e das implicações na questão agrária, com as quais, no acirramento das desigualdades e nos processos de resistência do campesinato brasileiro, o Serviço Social tem o dever de contribuir. São elas: como o capital se relaciona com a terra nas economias dependentes? Como se conforma a questão agrária brasileira? Como se insere o Serviço Social na questão agrária brasileira? E, por fim, como o campesinato vem se constituindo enquanto força contra-hegemônica frente ao avanço do capital no Brasil?
Por fim, em referência ao embasamento filosófico utilizado, o materialismo histórico e dialético aponta para o método que deve ser utilizado, como forma que dá coesão entre a teoria e a prática e para os vários desvelamentos e resultados desta pesquisa, que têm total implicação com o objeto, que, ao mesmo tempo, é o sujeito desta da pesquisa.
IHU – Poderia falar um pouco de sua trajetória, explicando porquê sua obra é feita, digamos assim, com um pé na luta, na militância, e outro na academia? Como ser fiel à própria história sem perder de vista o rigor científico?
Letícia Chimini – É importante colocar que esse livro não fala da minha história pessoal, mas sim, que essa escritora já foi camponesa, é pesquisadora e militante social, professora na graduação e pós-graduação e técnica, assistente social, que articula as políticas sociais na proteção de defensores e defensoras dos direitos humanos, enquanto política pública, em um programa federal (PPDDH).
Quando iniciei as atividades no Movimento dos Pequenos Agricultores – MPA em 2006, recém-formada em Serviço Social, cuja formação muito pouco ou nada perpassara pelo contexto rural, fomos chamados a intervir após o ato de suicídio da Dona Eva, agricultora do interior do município de Vale do Sol/RS. Naquele momento, ainda não conseguia compreender os motivos que levavam as famílias a permanecerem em um sistema integrado que lhes trazia sofrimento, causando, inclusive, a morte. As intervenções que se seguiram após o ato suicídio da Dona Eva estavam relacionadas com as denúncias aos órgãos competentes, Ministério Público e organizações de defesa dos direitos humanos.
Ali ratifiquei que o Serviço Social tem lado, o lado da classe trabalhadora e compreendi que precisava avançar nos estudos sobre a exploração e expropriação do campesinato na dinâmica capitalista e me propus a fazer mestrado e doutorado, justamente para trazer o rigor científico para compreender os processos da luta de classes, com atenção para a questão agrária. Todavia, foi atuando junto ao MPA que a perspectiva histórica, dialética e crítica, se adensou. Essa perspectiva estimulou as reflexões sobre a importância de desvendar a realidade e seus recursos sociais, e como essa construção poderia contribuir para a emancipação social.
Agora, a pergunta é pertinente e necessária e deve repercutir sobre as centenas de pesquisas que temos no Brasil, com categorias, conceitos e teorias que viram verdadeiros “modismos” e que por serem realizadas por sujeitos cuja atividade central é somente ser acadêmico ou acadêmica, não há o questionamento, por exemplo, sobre pesquisas sobre empregadas domésticas sem conhecer a sua realidade, pesquisas que se dão inteiramente sobre livros que falam daquelas realidades, sem a presença do sujeito, ou do objeto da pesquisa. Não questionam o rigor científico de pesquisas realizadas pelas universidades públicas por bolsistas pagos pelas empresas privadas para provarem que o uso de agrotóxicos e pesticidas não fazem mal para a saúde do povo e para o meio ambiente. Ou que a monocultura do eucalipto não degrada a terra. Absurdos como esses sempre foram vistos com neutralidade, por serem revestidos de um rigor científico.
Há centenas dessas, inclusive a universidade foi um espaço que serviu para a comprovação científica que aponta para o moderno em detrimento ao atrasado, com ênfase no período da pesquisa (1960). Que caracterizou como moderno e tecnológico o que era apresentado pelo capital, e atrasado o que resiste a ele, como a figura do Jeca Tatu, atribuído ao camponês que resistia à Revolução Verde. Nesse sentido, sobre as dimensões que compõem um arquétipo de desenvolvimento, Dallabrida (2010, p. 156) salienta que a “concepção de uma sociedade não é alheia à sua estrutura social, tampouco a formulação de uma política de desenvolvimento e sua implantação é concebível sem que seja contemplado o embate ideológico”.
De toda a forma, na pesquisa e na ciência não existe neutralidade. O pesquisador não é apartado da pesquisa, ele é parte. Cabe ressaltar que até a década de 1990, o perfil dos estudantes da pós-graduação era o homem branco, das classes abastadas, como o filho do fazendeiro que tinha cota na universidade. Delfim Neto, corrobora com esse perfil e do alto de seu rigor teórico afirmou, em plena luta das empregadas domésticas por melhores condições de trabalho e de vida, na luta por direitos trabalhistas, que “quem teve esse animal teve, quem não teve até então, não teria mais”.
É possível pesquisar os dados documentais, empíricos, bibliográficos sobre “a história que a história não conta” (fazendo memória ao samba enredo da Estação Primeira de Mangueira, de 2019) porque a história foi contada pelos vencedores, pelo poder hegemônico. Assim sendo, dar visibilidade para os processos de resistência ao capital, com pesquisas acadêmicas e rigor científico é mais uma forma de resistir e colocar luz sobre processos que possam contribuir com formas de sociabilidade que não tenham como objetivo somente o lucro em detrimento ao futuro da humanidade.
Dar visibilidade para os processos de resistência ao capital, com pesquisas acadêmicas e rigor científico é mais uma forma de resistir e colocar luz sobre processos que possam contribuir com formas de sociabilidade que não tenham como objetivo somente o lucro em detrimento ao futuro da humanidade – Letícia Chimini
Outrossim, compreendo que a criminalização dos movimentos sociais passa, também, por descredibilizar seus militantes nos espaços que ocupam, inclusive dentro da academia. Agora, não há como perder de vista o rigor científico se existe um rigor na coleta de dados, com as teorias que embasam os dados empíricos, com metodologia de coleta e análise de dados. O rigor científico adotado foi justamente para confrontar a pecha dada pela Academia aos processos coletivos de luta do povo. A outorga de luta panfletária era dada a cada argumento levantado para os processos desiguais. Todavia isso fala de uma construção orgânica, de uma práxis construída no cotidiano da luta campesina e que corrobora com totalidade da classe trabalhadora. Creio que ser militante social não reduz a qualidade da pesquisa ou o rigor científico, ao contrário. A partir da luta de classes e tendo a teoria social de Marx como base filosófica para as análises sobre a sociabilidade do capital, a realidade concreta é a contraprova da teoria.
IHU – O que é e como se caracteriza o capitalismo dependente e como o capitalismo dependente se liga à questão agrária no caso brasileiro?
Letícia Chimini – Creio que essa pergunta dá seguimento à primeira pergunta e que foi elaborada a partir das análises da Teoria Marxista da Dependência. Cabe salientar duas questões importantes. A primeira é que a TMD não é outro marxismo, e sim a Lei Geral de Acumulação Capitalista, com suas leis tendenciais, atenta às particularidades da América Latina. A segunda é que a TMD tem como mobilizador de suas primeiras análises, fazer contraposição às teorias da CEPAL, que afirmava que aquele processo de desenvolvimentismo da época tiraria o Brasil da condição de subdesenvolvido.
Coube aos teóricos da TMD, esses intelectuais e militantes da classe trabalhadora, que, inclusive, se encontravam exilados fora do Brasil no período da Ditadura Militar para não serem torturados e mortos, elaborar e provar, com rigor científico, que o subdesenvolvimento não era uma etapa anterior ao desenvolvimento, mas sim a condição dada pelas economias centrais aos países periféricos de capitalismo dependente.
Esse lugar de subdesenvolvimento vai suprir várias situações, inclusive as saídas para as crises do próprio capital, cujas leis tendências alocadas na busca constante pelo crescimento do lucro perpassa a questão da terra e do território, por meio da expropriação do campesinato, em toda a sua diversidade, da exploração dos recursos naturais, pela composição da força de trabalho para a superexploração e por conseguinte, para concentração e centralização de capital.
A condição de dependência dos países periféricos é gerada por asserções econômicas que dominam a trama política e que, por consequência, engendram a condição servil, colocando os países na condição de subdesenvolvimento. O fim do colonialismo formal, com independência política formal dos países, “deu lugar a novas formas de dominação dos países periféricos do capitalismo, pelos do centro, pelo imperialismo”, criando as bases políticas dos Estados e para a construção de democracias que chegaram a proliferar, especialmente, no segundo pós-guerra (SADER, 2010, p. 18).
O capitalismo na América Latina se desenvolveu dentro do contexto da expansão e evolução do capitalismo mundial. Em função disso, assumiu formas específicas que, sem negar as leis gerais do movimento do sistema; configuram no continente tipos específicos de capitalismo dependente, cujo caráter e modo de funcionamento são intrinsecamente conectados à dinâmica que assume historicamente o capitalismo nos países centrais (BAMBIRRA, 2013, p. 33).
Abordamos ligeiramente sobre esse processo, atentando para o desenvolvimento desigual e combinado, na primeira pergunta que você fez sobre a questão da terra ser uma das principais questões brasileiras. Nesse sentido, reforço que a dependência é econômica e política e isso dá a dimensão da expressão da dinâmica do desenvolvimento do capitalismo, que transversaliza todos os segmentos da sociedade. Assim, “o processo de produção que se estabelece no que se denomina países atrasados deve ser entendido como expressão de uma dinâmica do desenvolvimento do capitalismo, que no momento de sua expansão subsume todos os elementos da nova sociedade aos ditames do capital. Está dado, desse modo, o processo em que a história engole a história para produzir outra história: a história do subdesenvolvimento da América Latina na história do desenvolvimento do capitalismo mundial” (PAIVA; ROCHA; CARRARO, 2010, p. 150).
Na disputa de poder da luta de classes, os países de economia dependente colocam-se enquanto coadjuvantes, atuando na oferta de matérias-primas, inclusive, tendo a sua referência econômica vinculada à produção primária. Como exemplo dessa afirmação, trazemos os Estados Unidos, que é o maior produtor de milho do mundo, utilizado para a produção de etanol, porém nunca teve a sua identificação econômica referenciada por tal atividade. O efeito do intercâmbio desigual e combinado, nas economias dependentes, na medida em que coloca obstáculos ao ganho de mais lucros, direciona para a extração de mais força de trabalho daquilo que já era excedente.
A visto disso, as trocas desiguais mantêm a condição para um desenvolvimento desigual, porém combinado com o capitalismo global, “variando formas avançadas com modalidades retrógradas” (RAO, 2010 apud KATZ, 2020, p. 43). Segundo Marini (2000, p. 125) “compreende-se que nestas circunstâncias a atividade produtiva se baseia, sobretudo, no uso intensivo e extensivo da força de trabalho. Isto permite diminuir a composição-valor do capital, o que, agregado à intensificação do grau de exploração do trabalho, faz com que se elevem simultaneamente as taxas de mais-valia e de lucro”.
As questões logísticas e estruturais têm relação direta com o subdesenvolvimento. Segundo Bambirra (2013), essas questões corroboram para que alguns países desenvolvessem seus processos de industrialização antes da Segunda Guerra Mundial (Tipo A), como Brasil, Argentina e México, em 1945, e outros após (Tipo B), como Peru, Venezuela e Chile. Essa caracterização contribuiu para analisarmos a relação da entrada de capital estrangeiro com o crescimento da industrialização, sendo que máquinas e tecnologias não entraram como mercadorias nessas terras, mas como investimentos. Kay e Vergara-Camus (2018) asseguram que a porteira livre para a entrada do neoliberalismo no Brasil, durante meio século, agravou a crise da dívida e os programas de ajuste estrutural concomitantes da década de 1980, após o período de desenvolvimentismo estatal e de industrialização.
Isso resultou, ainda, no acirramento do controle do capitalismo imperialista sobre a economia do Brasil, conforme ressaltou Marini (2014, p. 63) que “isso se soma à acentuação do papel dirigente do Estado e ao aumento considerável dos gastos militares, que vão se tornando, em escala crescente, parte da demanda de uma oferta industrial que não pode se basear na expansão do consumo popular. Com as deformações de escalas inerentes a esse processo, o imperialismo reproduz nas economias periféricas da América Latina os mesmos traços fundamentais consolidados nas economias centrais, em sua transição para a integração dos sistemas de produção”.
Já afirmava Marini (2000), ao contrapor Gunder Frank, que a dependência é uma relação de subordinação entre nações “formalmente independentes, cujo âmbito das relações de produção das nações subordinadas é modificado ou recriado para assegurar a reprodução ampliada da dependência” (MARINI, 2000, p. 109-110). Apesar de contrapor Gunder Frank na relação que o autor elaborou entre a dependência e o colonialismo, Marini concorda integralmente com o conceito elaborado por Frank sobre o “desenvolvimento do subdesenvolvimento” : “El carácter desigual del desarrollo económico condujo a lo que fue en cierta medida una desigualdad que es perpetuada a sí misma” (GUNDER FRANK, 1968, p. 13).
A situação de subdesenvolvimento econômico-político-social em que se encontram todos os países da América Latina não refere uma etapa para o desenvolvimento e, sim, uma condição que foi construída na relação com as economias centrais, confirma Bambirra (2013, p. 44), concordando com Günder Frank. Esses autores não compreendem que o “atraso” dos países dependentes foi uma consequência do desenvolvimento do capitalismo mundial e, ao mesmo tempo, a condição desse desenvolvimento nas grandes potências capitalistas mundiais. Os países capitalistas desenvolvidos e os países periféricos formam uma mesma unidade histórica, que tornou possível o desenvolvimento de alguns e inexorável o atraso de outros.
É a partir desse momento que as relações da América Latina com os centros capitalistas europeus se inserem em uma estrutura definida: a divisão internacional do trabalho, que determinará o sentido do desenvolvimento posterior da região. Em outros termos, é a partir de então que se configura a dependência, entendida como uma relação de subordinação entre nações formalmente independentes, em cujo marco as relações de produção das nações subordinadas são modificadas ou recriadas para assegurar a reprodução ampliada da dependência (MARINI, 2000, p. 109).
O imperialismo, fase superior do capitalismo, traz formas mais avançadas de superexploração, não separando política, economia, cultura, etc. Essa é a tessitura que compõe o capitalismo imperialista, mediando a dependência com a categoria política e a superexploração com a categoria econômica. Abordamos com mais detalhes sobre o capitalismo a partir da Teoria Marxista da Dependência, mas por hora, para o leitor e leitora terem uma compreensão mais geral, ficamos por aqui e fica o convite para a leitura do livro.
IHU – O recorte de tempo de sua pesquisa de doutorado é de 1960 a 2020. Quais foram os principais exemplos de luta pela reforma agrária e resistência pelos territórios na recente história brasileira?
Letícia Chimini – A questão agrária no Brasil, enquanto uma questão política, emerge das mobilizações das ligas camponesas e sindicatos rurais a partir da década de 1950, como vimos quando analisamos o campesinato enquanto um sujeito político. A Ditadura Militar, por meio da Revolução Verde, implantou uma modificação no campo brasileiro que padronizou o rural como um território estritamente como espaço de produção, invisibilizando as famílias do campo e as que vivem nele. Estas precisaram, e ainda precisam, desenvolver estratégias de resistência em decorrência dos modos de produção que são exogenamente aplicados ao seu meio pelo capital e que se utilizam da desigualdade social e da fome como argumentos para o uso exacerbado de agrotóxicos, bem como justificativa de ocupação do território rural pelo agronegócio.
A linha temporal que compreende esta pesquisa ganha força a partir de 1964 até o ano de 2020. Todavia, é importante salientar e visibilizar essa conformação social brasileira, que, embora imbricada nos processos capitalistas, contou com um campesinato que sempre fez frente à classe burguesa. Guerras e guerrilhas de independência são movimentos de superação da ofensiva imperialista e estas são particularidades das lutas na América Latina. As teorias revolucionárias só se aplicam através de ações igualmente revolucionárias.
A história do Campesinato no Brasil, em toda a sua diversidade, é também a história de resistência nos territórios que contribuíram com tática e estratégia na luta de classes. Historicamente, como rememora Araújo (2012), as lutas no campo foram fortemente invisibilizadas na história contada pelas forças hegemônicas vigentes: “as revoltas de Palmares, as guerras indígenas como a confederação dos Cariris, a resistência Guaicuru, a Cabanagem, a Guerra de Canudos, Trombas e Formoso, as Ligas Camponesas”, bem como as lutas que foram fortemente atacadas, com a morte e desaparecimento de milhares de camponeses no golpe civil-militar de 1964, para calar os processos sociais de luta e resistência.
O campesinato sofreu e sofre com as expropriações e explorações do capital no seu território, ao passo que desenvolveu formas que possibilitaram a permanência na terra, como a forma coletiva de trabalho, que auxilia na redução da penosidade do trabalho e a economia de subsistência que garante a produção da alimentação diversificados, correspondendo à 70% dos alimentos que vai a mesa dos brasileiros e brasileiras, conforme apontado acima.
A ocupação de terras tem sido a forma utilizada para avançar na conquista de territórios camponeses, em propriedades rurais que não cumprem com a função social da terra, definida no artigo 186 da Constituição Federal. São terras de latifundiários, terras devolutas, cujos débitos à União já ultrapassaram o próprio valor do imóvel ou, ainda, de propriedades que desrespeitam as leis ambientais e trabalhistas.
De modo geral, as propriedades ocupadas são aquelas em que o Estado não apresenta iniciativa para cumprir a determinação constitucional e a ocupação é realizada pelos movimentos sociais populares, com mais frequência o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, assim como as retomadas indígenas e quilombolas, como forma de pressionar para que se cumpra o que está previsto na Constituição Federal de 1988. Nos territórios urbanos, a mesma tática é utilizada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Teto – MTST e pelo Movimento Nacional de Luta pela Moradia – MNLM para denunciar os imóveis urbanos em igual descompasso com a sua função social das propriedades públicas ou privadas nos centros urbanos. Do início dos anos 2000 até os dias de hoje, as ocupações também têm sido utilizadas para denunciar a perversidade do capital internacional, na posição de agronegócio, nos territórios quilombolas, indígenas e das terras públicas apropriadas indevidamente pelo capital, através da grilagem e da apropriação indevida.
Os assentamentos de reforma agrária, com titulação coletiva, são patrimônios públicos, portanto, do Estado, mas que permitem aos que estão nela, de forma coletiva e organizada, ter a posse para o trabalho na terra, bem como a organização e trabalho nas cooperativas organizadas de forma coletiva. É também nas comunidades que devem ser acessadas a moradia, a escola, a creche, o lazer, o posto de saúde, entre outros, para desenvolver todos os aspectos da vida da comunidade.
Já abordamos a importância da organização coletiva e popular para a conquista da terra e ampliamos o olhar sobre os espaços de luta e de resistência. Para além da conquista da terra, os movimentos sociais populares do campo têm mobilizado e pressionado o Estado para garantir o acesso à melhores condições de vida, de trabalho, para garantir a soberania alimentar para o povo brasileiro e acesso aos direitos sociais e fundamentais, por meio da construção colaborativa de políticas públicas.
Contudo, um fato parece-nos essencial. Sem uma predisposição mínima da classe para lutar em torno de objetivos e propostas que os seus membros considerem exequível ou justas, o papel de uma organização social ou política é inócuo. Daí que as organizações sociais e políticas da classe trabalhadora que conheceram maior notoriedade histórica tenham sido precisamente aquelas que num ou durante um período histórico se mostraram capazes de equivaler a sua tática e a sua estratégia às aspirações concretas – [...] em termos de transformação social – de amplas massas populares (AGUIAR, 2009, p. 587).
A luta pela terra, a luta pelo trabalho, a luta pela moradia e tantas outras dão sentido coletivo aos elos de identidade, enquanto classe trabalhadora, que se concretizam nos movimentos sociais populares como ferramentas de luta, através de atos, de mobilização, de articulação, de trabalho, de formação política e técnica e de táticas que confluam para a estratégia da classe trabalhadora. Ora essas ações são pontuais e miram o acesso concreto a determinado direito – tática –, ora sinalizam para um projeto de sociedade – estratégia – onde possam existir direitos humanos.
IHU – O Brasil é um país de dimensões continentais. Evidentemente a luta pela terra se dá de maneiras diferentes nas distintas regiões. Quais são os principais fatores em comum da questão agrária e quais são os mais particulares, considerando as diferentes regiões do país?
Letícia Chimini – Há muito mais relações que referem às similitudes particulares da questão agrária do que as diferenças. Nas pesquisas realizadas no Rio Grande do Sul e no Pará, de Norte ao Sul desse país, há uma questão agrária que remete à conformação sócio-histórica do Brasil e à condição de capitalismo dependente, já refletido nas perguntas anteriores e que refletem a essência dos processos de acumulação e centralização da terra.
Nesse ínterim há que se acrescer como questão central os quase 400 anos de escravização do povo negro, principalmente utilizada a serviço da produção agrícola exportadora, cujo excedente serviu para o desenvolvimento da elite industrial, também já elaborado nas questões anteriores. Até os dias de hoje o trabalho análogo da escravidão é utilizado pelos latifundiários, e que pese que, somente no ano corrente, foram registrados e resgatados do domínio do agronegócio mais de 500 trabalhadores nessas condições de subumanidade e graves violações dos direitos humanos.
Atentando para as particularidades, do ponto de vista histórico, abordo no livro a realidade das colônias, com destaque para as colônias alemãs. Essas apresentavam uma forma mais diversificada da produção, cujos critérios de acesso aos lotes, fornecidos pelo Império às famílias imigrantes, era a condição de não competirem com a produção dos latifundiários da região, que no caso do Rio Grande do Sul, tinha como predominância o charque, a partir do gado. Destarte, as famílias não podiam ter gado e deveriam produzir alimentos suprisse a demanda da região, a exemplo do arroz. Há outras características, como a localização geográfica dos lotes ser em território acidentado e íngreme, que não era interesse do latifúndio.
O Norte, com ênfase no Pará, também contou com incentivo para a ocupação, fomentada pelo Estado brasileiro, mais recentemente, a partir da década demarcada para o início da pesquisa. Como demonstramos no livro, o fomento para ocupação da Bacia Amazônica tinha como objetivo a ocupação das terras públicas e de floresta, para fins de desflorestamento e posterior produção agrícola, nos locais em que não havia minérios, com instalação de uma fronteira agrícola.
O desmatamento é seguido pelas queimadas, que abrem caminho para áreas de produção rural e novamente estamos vivenciando a destruição orquestrada pelo fogo, tendo em um dia mais de 2000 focos de incêndio com início ao mesmo tempo no Brasil. As táticas de destruição do agronegócio são tecidas pelas violências estruturais do coronelismo, da violência de gênero, do racismo que se estruturou por quase 400 anos de escravismo, do genocídio dos povos originários, da destruição ambiental com uso de venenos e contaminação do solo e das águas.
Outrossim, a Revolução Verde avançou sobre os processos produtivos, inserindo minifúndios e latifúndios sob domínio do capital, padronizando os processos produtivos, tornando a agricultura familiar uma espécie de “agronegocinho”. Esse processo atuou de forma substantiva na perda da autonomia e da dependência de sementes transgênicas, do uso de pesticidas e agrotóxicos e endividamento bancário para realizar as safras.
Acentua-se a desigualdade social e a pobreza e no Sul, a luta dos movimentos sociais e sindicais, passa a pautar o acesso ao crédito para produção, o acesso à moradia e subsídios para os períodos de seca. No norte, o fator mobilizador do campesinato é a luta por terra.
Em comum, de Norte a Sul do Brasil são as raízes sócio-históricas que estruturam as condições para a superexploração: no racismo, na desigualdade de gênero, na má distribuição da terra. A agricultura é carregada dessas velhas estruturas conservadoras, patriarcais e racistas e, por isso, que a agroecologia não pode se desvincular da luta de classes, do feminismo e da luta antirracista. Todavia, é com muito trabalho e historicidade que se constrói a agroecologia na prática, na perspectiva da luta de classes, de gênero e de raça e, por isso, trazemos as experiências que são relatadas a partir do RS e do PA, por serem vivências mobilizadoras de processos coletivos, geradores de autonomia e construtoras de emancipação humana.
IHU – Para encerrar gostaria de propor uma pergunta desafiadora: como o campesinato pode enfrentar a sanha irrefreável do agronegócio, com seu enorme poderio econômico e político (considerando, no âmbito federal, a bancada do boi)?
Letícia Chimini – Essa pergunta é bem importante e está relacionada com a tese da tese do meu doutoramento e que deu origem a esse livro. Apenas não colocaria ela no tempo futuro e sim como o campesinato enfrenta a sanha irrefreável do agronegócio, pois o campesinato só existe porque se mobiliza e a luta é constante, ou então já teria sucumbido.
Nesse ínterim, são gerados processos de resistência que necessitam ser estudados, elaborados, reelaborados, apreendidos e também superados para que possamos compreender os processos emancipatórios, principalmente nos tempos atuais, de acirramento dos aspectos neoliberais do capitalismo e que, no Brasil, ganha requintes de caráter conservador.
Os assentamentos de reforma agrária são patrimônio público, portanto, do Estado, mas que permitem aos que estão nela, de forma coletiva e organizada, ter a posse para o trabalho na terra, bem como nas cooperativas organizadas de forma coletiva. É também nas comunidades que devem ser acessadas a moradia, a escola, a creche, o lazer, entre outros, para desenvolver todos os aspectos da vida da comunidade.
Na história do Brasil, quem tem terra tem poder, mas, para a Via Campesina, ter a terra somente não basta, há que relacioná-la com um modo de produção, uma forma de produzir que não tenha como finalidade o lucro a qualquer custo, que é a forma como o capital se relaciona com todos os âmbitos da vida e todos os segmentos da sociedade. Por isso, ratificamos que capital não é o dinheiro e sim as relações de poder, de exploração e expropriação. Como já afirmamos, o dinheiro é a forma fenomênica do capital.
O campesinato vive de sua produção e da comercialização do que é produzido pelas famílias. A inserção dessa produção em feiras e mercados criados pela organização e mobilização, tanto daqueles que produzem, como daqueles que adquirem, apontam para novas possibilidades de comércio, circulação que alguns denominam economia solidária. Economia “alternativa” à economia hegemônica que foi incentivada por políticas públicas promovidas pelos governos anteriores em resposta à pressão do campesinato organizado e que atentaram para as condições concretas e históricas da agricultura camponesa familiar.
A agricultura camponesa organiza-se através da agroecologia. Do ponto de vista da produção, são priorizados os alimentos e essa produção relaciona-se com a natureza, priorizando a vida de quem produz e de quem irá ingerir essa produção. A produção é realizada de forma diversificada, respeitando as identidades e os biomas de cada território. Não há utilização de transgênicos nem de venenos e a produção começa com as sementes crioulas. Quanto aos insumos utilizados, são disseminadas práticas de elaboração para as mais diversas dificuldades que possam ocorrer com a produção, a partir de elementos que existam na própria propriedade, gerando autonomia na agricultura e redução dos custos.
Do ponto de vista social, a agroecologia também aparece como uma forma de viabilizar as próprias estruturas da luta e fortalecer a autonomia de quem produz, possibilitando a superação das amarras do capital no meio rural. As relações sociais na agroecologia perfazem os aspectos históricos, políticos, econômicos de manutenção e reprodução da vida, culturais e coletivos e, de fato, possibilitam formas autônomas de produção
As ações perpassam as feiras da reforma agrária, feiras agroecológicas, CSA, encontros unitários, formações políticas conjuntas, estratégia de apoio eleitoral, produção agroecológica, casa de sementes crioulas, estudos conjuntos sobre as lutas travadas pelo campo progressista da América Latina, sobre a luta de classes e sua estruturação de classes, formação sobre etnia e gênero, organização e gestão de mídias próprias, articulação campo e cidade, ocupações de terras, entre outros. São ações guiadas pelos processos de resistência que fortalecem a classe trabalhadora nos territórios latino-americanos. São práticas e tarefas realizadas com intencionalidade política.
Contra-hegemonicamente, ocorrem mecanismos de resistência e sobrevivência a partir dos territórios rurais como as formas de mutirão, “pixurum” ou “puxerão” bem como a elaboração de mecanização adequada para a especificidade das pequenas propriedades, ferramentas de trabalho, seleção massal das sementes crioulas, cultivadores rotativos menores, caldas para as diferentes necessidades e tratos de acordo com os cultivos e animais, resgate de sementes crioulas e de animais, consórcio de produção, biomineralizadores de solo, investimento na diversificação da produção, entre outros.
Os exemplos de luta pela reforma agrária é a luta em movimento que não cessa, apesar de toda a violência e criminalização dos movimentos sociais, a exemplo do movimento que ficou conhecido no Brasil como a “CPI do MST”. Apesar de todo o esforço em criminalizar as lutas camponesas, é importante ratificar que a análise de conjuntura se faz a partir dos territórios, onde o enfrentamento se dá de forma mais bruta, o território concreto é onde acontece a disputa e também a vida. O agronegócio e os projetos societários se enfrentam no cotidiano (dos) nos territórios. Por isso o território é o alvo principal do Capital. O capital só consegue avançar sobre o território, onde estão os povos e comunidades tradicionais que colocam resistência.
Na ação consciente do trabalho, intervindo na natureza e sendo parte dela, camponeses e camponesas disputam o território com o agronegócio. São projetos muito distintos e, por isso, a territorialidade da luta de classes impacta na superexploração dos sujeitos que ocupam a terra como meio de vida, como indígenas e camponeses, mas que também refratam nos trabalhadores urbanos. Logo, o campesinato vai para além da forma e da extensão da propriedade. Inscreve-se, fundamentalmente, acerca da lógica que se estabelece nas relações produtivas a partir da terra como meio de produção, mas também como meio de vida para as comunidades e que, igualmente, faz refletir sobre as organizações da classe trabalhadora para além dos territórios que ocupam. A partir disso, ratificamos que a luta pela terra e território segue sendo central.
[1] A expressão “norteadora” faz referência em dar um sentido, no caso, o Norte. Optamos que o Sul também seja um sentido, inspirados no mapa invertido da América do Sul, desenhado pelo Uruguaio Joaquim Torres García.