30 Abril 2024
"Todos os analistas insistem que as causas da fome e subnutrição no mundo se explicam por problemas de acesso à alimentação e não por falta de produto".
A análise é de Jean Marc von der Weid, economista e agroecólogo, ex-presidente da UNE (1969-71) e fundador da organização não governamental Agricultura Familiar e Agroecologia (ASTA), em artigo publicado por A Terra é Redonda, 20-04-2024.
Desde meados do século passado o sistema produtivo conhecido como Revolução Verde expandiu-se celeremente e hoje ocupa a totalidade das terras cultivadas nos países desenvolvidos e a ampla maioria daquelas dos países antigamente chamados de Terceiro Mundo e hoje de Sul Global. Esta expansão permitiu um aumento extraordinário da produção agropecuária ao ponto dos mais otimistas considerarem que o fantasma de Malthus tinha sido definitivamente exorcizado. Todos os mega produtores agrícolas atualmente (EUA, Brasil, EU, China, Índia, Argentina, Canadá, Austrália, Rússia e outros menores) aplicam este sistema, marginalizando a produção tradicional camponesa.
O sistema agroalimentar mundial produz 2900 calorias por pessoa por dia, descontadas as perdas, desperdícios, conversão para alimentação animal e bioenergia. Isto permitiria alimentar (apenas no sentido de fornecer as calorias necessárias) 9 bilhões de humanos, mais do que a população atual do planeta. (relatório FAO, 2016)
Todos os analistas insistem que as causas da fome e subnutrição no mundo se explicam por problemas de acesso à alimentação e não por falta de produto. Em termos relativos, o efeito da expansão deste sistema foi a redução da fome no planeta como um todo, embora em números absolutos o ano de menor contingente de famintos ainda registrou mais de 700 milhões de pessoas, no final dos anos 90. Atualmente este número chega a 850 milhões (FAO), sendo que outros analistas elevam este número para mais de 1 bilhão. Entretanto, são muitos os países, e não só entre os mais pobres, onde a fome é endêmica.
Apesar da percepção generalizada de sucesso deste sistema, muitas vozes já levantavam dúvidas e críticas desde os anos 1980. Estas vozes hoje são muito mais incisivas e tem muito mais ressonância do que no passado. Entidades pouco suspeitas de ideologismos como vários organismos da ONU (FAO, UNCTAD, Relatoria do Direito Humano à Alimentação, UNDP, UNEP e outros), o IPCC e até (em termos menos críticos) o Banco Mundial, vêm publicando estudos e projeções cada vez mais veementes sobre a crise alimentar mundial e seus prováveis desdobramentos.
O estudo elaborado pelo IAASTD (International Assessement of Agriculture Knowledge, Science and Technology for Development) promovido Banco Mundial e pela FAO e apresentado em 2009, indicou múltiplos fatores de insustentabilidade do atual sistema agroalimentar mundial, depois de quatro anos de pesquisas com centenas de cientistas, confirmando uma ampla gama de estudos parciais realizados nos últimos 20 anos por dezenas de entidades multilaterais e nacionais.
Os sinais da crise começam com a percepção de que o sistema tinha chegado, na segunda metade dos anos 1980, a um estancamento. Isto se mediu por vários fatores.
O primeiro foi a diminuição (ou o estancamento e até decréscimo) do ritmo do aumento das produtividades das culturas, com as novas variedades desenvolvidas cientificamente oferecendo apenas pequenos incrementos a cada ano, após três décadas de avanços significativos. Estes modestos incrementos, entretanto, não chegaram a compensar o aumento do número de consumidores.
O segundo foi a crescente necessidade de aumentar a fertilização das culturas apenas para manter as produtividades.
O terceiro foi crescente perda de produção devido à multiplicação de pragas e doenças sem que o uso, mesmo ampliado, de agrotóxicos pudessem controlá-las.
O uso de engenharia genética foi anunciado como um grande salto à frente, mas após 30 anos de aplicação resultou apenas em avanços nos lucros das empresas de biotecnologia. Não houve avanços em termos de aumento de produtividades nem diminuição no uso de agrotóxicos. Isto sem falar nos cada vez mais numerosos e dispendiosos processos de consumidores contra as empresas de biotecnologia, condenadas por impactos na saúde.
As mencionadas críticas, já preocupantes por si mesmas, empalidecem quando se analisam os impactos já visíveis e os previsíveis de carências inerentes ao próprio sistema. O sistema agroalimentar está submetido a um conjunto de fatores que o estão levando a uma crise terminal, colocando em risco toda a humanidade. Qualquer um destes fatores leva à inviabilização do sistema, mas a sua combinação acelera o processo.
O primeiro fator tem a ver com o fato de que o sistema agroalimentar depende de recursos naturais para produzir: os renováveis, como solo, água e biodiversidade e os não renováveis, como petróleo, gás, fósforo e o potássio. Os primeiros estão sendo destruídos e os segundos estão sendo esgotados.
O esgotamento das reservas de petróleo é objeto de debates desde os anos 50, quando o geólogo americano King Hubert projetou o esgotamento das reservas americanas para o ano 1970. A projeção de King se confirmou, mas a que ele fez para a produção mundial, o ano de 2000, não. Mas o erro, desculpável pela maior dificuldade de acessar dados precisos em todo o mundo, foi de apenas oito anos.
Hoje ninguém discute o fato de que a oferta do chamado petróleo convencional estancou em 2008 e hoje oscila levemente em um patamar estável. Como a demanda não parou de crescer, a corrida para explorar petróleo em formas ditas não convencionais explodiu, estimulada pelos preços mais altos do convencional.
O dito petróleo não convencional é o explorado em águas profundas, como o nosso pré-sal ou as jazidas do Golfo do México e do Mar do Norte, todos, menos o primeiro, já em declínio acentuado. Também são óleos não convencionais os extraídos das areias betuminosas do Canadá, ou através do fracking de rochas porosas nos Estados Unidos, ou de depósitos de xisto. No entanto, apesar do sucesso imediato da oferta destes óleos, as previsões apontam para um esgotamento ainda nesta década. E o custo destes produtos é maior do que na exploração de petróleo convencional, além dos impactos ambientais serem muito maiores. Ficam ainda na reserva os chamados óleos ultrapesados, como os da bacia do Orenoco, na Venezuela. No frigir dos ovos, os analistas confluem na avaliação de que nos aproximamos de um momento em que a oferta não vai poder cobrir a demanda.
Nada disso significa que o petróleo, em todas as suas formas, convencionais ou não, vai desaparecer de um dia para o outro. Mas vai começar a rarear e, sobretudo, vai ficar mais caro a cada ano. Na crise de 2008 o preço do barril de Brent, referência de mercado para o petróleo convencional, chegou a um pico de 130,00 dólares e foi o motor de uma crise financeira mundial. Hoje ele está em 90,00 dólares e subindo.
Não é exagero dizer, como alguns autores, que a “comida é petróleo digestível”. O sistema agroalimentar depende totalmente do petróleo, quer como energia para mover tratores e máquinas agrícolas ou para a produção de fertilizantes e agrotóxicos, quer como combustível para o transporte e para o processamento. O aumento dos preços do petróleo fere o sistema no coração e projeta aumentos de preços dos alimentos, no imediato, e a diminuição da oferta, no médio e no longo prazo.
Como as reservas de gás ainda estão mais elásticas, ele pode vir a substituir o petróleo por algum tempo, mas não muito. As previsões para a oferta de gás miram nos meados da próxima década como provável início do esgotamento.
O segundo produto natural não renovável de imenso peso na agricultura é o fósforo. Nenhuma planta pode existir sem dispor de fósforo em doses variadas segundo a espécie. Quando há carência deste mineral o efeito pode ser, de acordo com o caso, a perda de produtividade e a maior fragilidade frente a doenças e pragas.
As reservas de fósforo no mundo estão concentradas em poucos países, sendo que as maiores e ainda menos exploradas se encontram em um território disputado pelo Marrocos e pelo povo Saaruí. A previsão do esgotamento é para mais duas décadas, mas os custos da extração estão em constante aumento pelo fato de que as jazidas mais acessíveis já estarem em processo de esgotamento.
O Brasil é altamente dependente das importações de fosfatos, do Canadá ou da Rússia e Ucrânia. A agricultura chinesa sempre usou como fertilizante o composto de esterco, animal ou humano. Isto foi substituído, a partir dos anos 80, pelo uso cada vez mais intensivo de fertilizantes químicos. Com uma população cada vez mais urbana, os chineses necessitariam adotar sistemas de coleta e tratamento em escala industrial. É o mesmo caso para o Brasil, com o agravante de sermos altamente deficitários na coleta e tratamento de esgoto ou de lixo.
É preciso registrar, também, que o uso de adubos químicos solúveis implica em perdas da ordem de 50% dos produtos, parcela que nunca chega a ser utilizada pelas plantas e que se perde carreada pelas chuvas para poluir lençóis freáticos, lagos, rios, reservatórios e o mar. Já existem processos modernos de aplicação modulada de adubos químicos e o uso de formas não diretamente solúveis pela água, mas por ação das próprias plantas. Mas estas práticas mais avançadas não são amplamente utilizadas, ainda, por serem mais caras. Os subsídios públicos para o uso de fertilizantes têm a ver com este diferencial de custos e necessitariam de ser eliminados.
Mesmo desconsiderando previsões mais pessimistas que indicam o esgotamento dos solos férteis entre 30 e 60 anos, não confirmadas por estudos científicos, há suficientes indicadores para que se acendam os sinais vermelhos de alarme.
A FAO indica que 33% de todos os solos no mundo estão degradados pela erosão, salinização, compactação e contaminação química. A perda de solos agricultáveis é estimada, pela mesma fonte, em 12 milhões de hectares por ano, enquanto 290 milhões de hectares estão em alto risco de desertificação. Já os processos de esgotamento de solos, com perda de nutrientes essenciais, afetam a produtividade de 20% das culturas. Por outro lado, as áreas de pastejo tem decréscimos de produtividade entre 19% e 27%, segundo o tipo de bioma (grasslands e rangelands) (UN Department of Economic and Social Affairs, 2012).
Em todos os estudos mencionados os impactos sobre o solo derivam das práticas da agricultura convencional.
O sistema agroalimentar dominante é o maior consumidor de água entre todas as atividades humanas, em média mundial, 70% do total de extrações. As áreas irrigadas vêm dobrando a cada década desde os anos 50, na medida em que vai se disseminando em todo o mundo uma dieta que cobra altos investimentos o uso deste recurso. Para dar alguns exemplos: um hambúrguer requer 2240 litros de água e uma xícara de café, 140. A UNEP (United Nations Environment Program) adverte que, se esta trajetória continuar, a falta de água vai provocar perdas de até 25% da produção de alimentos.
O rebaixamento de lençóis freáticos por consumo superior às taxas de reposição afeta maciçamente países como China, Índia, Irã, México e muitos outros. Por outro lado, vários grandes rios passam meses ao ano sem ter água correndo, fruto das retiradas para irrigação, entre eles o Amarelo (China), Indo e Ganges (Índia), Colorado e Grande (EUA). Grandes lagos como o Aral e Chade estão quase totalmente secos, enquanto grandes aquíferos vão se esvaziando, como o Ogallala (EUA) e o Guarani (Brasil e Paraguai) está sendo contaminado por agrotóxicos e fertilizantes.
O abastecimento alimentar vem sofrendo um constante estreitamento na variedade de produtos ofertados. Das mais de 50 mil plantas comestíveis existentes, apenas três (arroz, milho e trigo) respondem por 2/3 de todas as ingestões calóricas dos consumidores e 90% de toda a alimentação depende de apenas 15 produtos. Historicamente esta situação indica um alto risco para o abastecimento, sendo que ele é ainda mais grave pelo fato de que este reduzido número de plantas é produzido a partir de um muito pequeno número de variedades de cada uma delas.
As perdas da biodiversidade agrícola no último século foram gigantescas, como demonstra um estudo do USDA que comparou o número de variedades com sementes colocadas no mercado americano em 1903 com aquelas guardadas no laboratório nacional de estocagem de sementes em 1983, indicando a extinção de 93% delas.
Para além das perdas dos recursos naturais renováveis e do esgotamento dos não renováveis, o sistema agroalimentar está seriamente ameaçado pelo aquecimento global e as consequentes mudanças no clima.
Em primeiro lugar, é preciso lembrar que o IPCC vem apontando, a cada novo relatório, uma aceleração do aquecimento global, provocado pelo crescente uso de combustíveis fósseis e pela expansão da agricultura e da pecuária. A meta limite assignada no Acordo de Paris em 2014, um aumento máximo de 1,5º C na temperatura média mundial, estimado para ocorrer até 2040, já está sendo atingido em 2024. Não é ainda a média anual, mas nos meses mais quentes este índice foi alcançado e deve ser anualizado nos próximos anos. O IPCC já está indicando que um aquecimento de 2º C é inevitável até 2030, mesmo se as emissões de gases de efeito estufa (GEE) forem eliminadas imediatamente. Isto se dá pelo delay entre a emissão de gases e seu efeito no aquecimento.
A agricultura industrial e o sistema agroalimentar como um todo tem um gigantesco impacto neste processo. As emissões de GEE da agricultura e da pecuária (11 a 15%), junto com o seu impacto nos desmatamentos (15 a 18%), representam 26 a 33% do total. Por outro lado, o conjunto do sistema agroalimentar, incluindo transportes (5 a 6%), processamento e embalagem (8 a 10%) refrigeração e supermercados (2 a 4%) e desperdícios (3 a 4%) chega a representar entre 44 e 57% de todas as emissões de GEE (ETC e Grain).
O mero aquecimento do planeta impacta pesadamente a agricultura, provocado pelo estresse das altas temperaturas. Com o aquecimento alcançando os fatídicos 2º C são esperados efeitos de até 30% de perdas na produtividade das plantas, dependendo da espécie. Por outro lado, o clima está se tornando visivelmente mais instável e imprevisível, com secas e inundações mais frequentes e intensas, também com grandes impactos na produtividade das plantas.
Maiores temperaturas também propiciam uma maior multiplicação de pragas afetando as produções. Finalmente, o aquecimento está provocando o degelo acelerado e a consequente elevação do nível dos oceanos. Marés cada vez mais altas já estão inviabilizando a produção em áreas costeiras baixas no Bangladesh, Paquistão, Índia e China, enquanto enchentes gigantescas afetam milhões de pessoas em todo o mundo, obrigando o deslocamento em massa de populações.
Para completar este quadro sombrio é preciso ainda lembrar que o IPCC predisse, em 2018, que 32% da superfície terrestre será árida antes mesmo do aquecimento global chegar aos 2º C.
Em resumo, estes dados são apenas uma amostra do conjunto muito mais amplo de fatores que apontam para a conclusão a que chegou a FAO em um evento científico em 2014: “business as usual is not an option”. Em bom português: mais do mesmo não é uma opção.
Antes de apresentar as opções e discutir a sua validade, é bom lembrar que a crescente onda de críticas ao modelo agroalimentar convencional não significou uma mudança nos rumos da forma de se produzir no setor agrário. As formas alternativas de produção estão se multiplicando em todo o mundo, mas representam ainda apenas uma fração diminuta do output total do setor agropecuário. Em outras palavras, os elementos apresentados acima como fatores de insustentabilidade estão se agravando e arrastando a humanidade para o desastre. Mesmo as entidades como a FAO, por exemplo, que tinham feito declarações firmes sobre a insustentabilidade do modelo dominante, continuaram apoiando, nas suas atividades, os mesmos paradigmas que levavam a esta insustentabilidade.
Esta realidade se explica pelo poderio das empresas que controlam as várias etapas do sistema agroalimentar. Um punhado de transnacionais domina a produção de fertilizantes, de agrotóxicos, de maquinário, de produtos veterinários e de sementes, utilizados por um número cada vez menor de grandes produtores, que vão concentrando a economia agrária. No setor de transformação a concentração vai no mesmo caminho, assim como no comércio de atacado. Até mesmo no mais pulverizado setor de comércio varejista a concentração se manifesta, embora em níveis menos impressionantes.
E, por trás destas megaempresas, o peso do setor financeiro vem se tornando cada vez maior. Pode-se dizer que esta aliança entre o capital produtivo e o financeiro determina os rumos do sistema agroalimentar, influenciando desde a opinião pública até governos e parlamentos nacionais e, em parte, organismos multilaterais.
Este predomínio econômico, que se reflete nas instituições nacionais e internacionais, faz com que o modelo siga, impavidamente, produzindo com os mesmos vícios de sempre. Criaram-se algumas “alternativas” que não escapam de aplicar os mesmos paradigmas, no máximo racionalizando e buscando minimizar alguns dos piores efeitos do modelo. É o caso do que é conhecido como “climate smart agriculture” (intraduzível, algo como agricultura preocupada com o clima) ou a agricultura de precisão. Em ambos os casos, não se põe em questão o modelo de monoculturas em enormes extensões de terras e aposta-se nas mágicas prometidas pela engenharia genética.
É o que os franceses chamam de “fuite en avant”, ou fuga para adiante. E mesmo estas “soluções” têm pouca adoção pelo agronegócio. Racionaliza-se o uso de fertilizantes químicos, mas não se deixa de depender de uma adubação com data marcada para desaparecer. E o uso de agrotóxicos não para de crescer em todo o mundo.
A solução, demonstrada por inúmeras experiências com um histórico de mais de 80 anos, é a agroecologia. Sua prática vem se ampliando rapidamente nas últimas décadas, com o número de produtores dobrando a cada uma delas e já chegando a dezenas de milhões de camponeses, mas também de milhares de empresários do que já é chamado de agronegócio verde.
Existem várias vertentes sob esta designação de agroecologia, sendo que as mais antigas precedem a adoção deste conceito. Trata-se da agricultura orgânica, com a variante biodinâmica. Nesta versão da agroecologia, entretanto, prevalece uma abordagem mais voltada para a produção de alimentos “limpos” do uso de produtos químicos ou variedades da engenharia genética. A agricultura orgânica se caracteriza mais pelo que ela não pode utilizar para ter seus produtos certificados. Frequentemente, esta produção orgânica mantém um desenho produtivo com monoculturas para permitir a mecanização, o que leva alguns puristas a não a considerar agroecológica. A meu ver, é preciso aceitar que existem mediações entre sistemas que aplicam todos os princípios da agroecologia e os que fazem simplificações de modo a poderem responder a algum tipo de pressão, seja de trabalho, seja de mercado.
Em sistemas agroecológicos mais avançados o desenho produtivo é mais complexo e diversificado e não comporta monoculturas. Estes sistemas provaram, na prática, serem os de melhor performance em termos de produtividade total por área cultivada, mas também mostraram que esta área não pode ser grande. Há uma relação inversa entre a complexidade de um sistema agroecológico e o tamanho da área produtiva. O tamanho e a complexidade implicam um maior uso de mão de obra, mas o limitante principal é a capacidade de gestão do espaço e do tempo de trabalho. A implicação deste fato é a necessidade de se multiplicar o número de produtores de forma gigantesca, invertendo a tendência da agricultura convencional que sempre buscou, desde o advento do capitalismo, diminuir o uso de mão de obra e ampliar a escala das áreas de cultivo.
Se o mundo não estivesse enfrentando uma crise energética crescente, seria impensável pensar em abandonar as imensas fazendas com dezenas de milhares de hectares de monoculturas operados por umas poucas dezenas de motoristas de tratores, cultivadores, colheitadeiras e aplicadores de fertilizantes químicos, agrotóxicos e irrigação. Mas o custo energético do sistema convencional vai exigir o maior emprego de mão de obra, bem como uma radical redistribuição da produção alimentar em todo o mundo, buscando diminuir ao máximo a distância dos consumidores. Antes que se argumente com a substituição dos combustíveis fósseis por energia “verde”, é bom lembrar que há limites importantes para que isto se dê de forma generalizada.
Como já foi dito, sistemas agroecológicos diversificados são operados com maior eficiência por produtores familiares e em pequena escala. E para que se possa produzir alimentos em quantidade e qualidade necessárias para garantir uma dieta adequada a toda a população do planeta, vai ser preciso mais do que uma reforma agrária. Vai ser necessário fazer uma revolução agrária e entregar as terras do agronegócio para centenas de milhões de camponeses. A título de exemplo podemos citar um estudo realizado nos EUA indicando que a adoção generalizada da produção orgânica e garantir a oferta alimentar adequada para toda a população seria necessária uma base de 40 milhões de camponeses. Tal estudo usou produtividades das experiências de produção orgânica nos EUA, mais baixas do que as agroecológicas aqui no Brasil. Mas mesmo com menor performance, a produtividade da agricultura orgânica norte-americana é comparável com a da agricultura convencional em condições climáticas ideais. Em situações de seca, que tendem a ser tornar muito mais frequentes, esta produtividade chega a ser 40% maior.
Estudos encomendados pela FAO mostraram que a agricultura orgânica pode alimentar corretamente uma população de 10 bilhões de pessoas, substituindo totalmente os sistemas convencionais. Haveria mudanças na composição das culturas, com uma diminuição significativa da produção animal, sobretudo de gado bovino e aumento na produção de leguminosas e hortaliças. A quantidade de calorias disponível também cairia, mas mantendo-se acima das necessidades vitais de cada um.
Outros estudos apontam para a possibilidade de se substituir toda a fertilização química de nitrogênio, fósforo e potássio por leguminosas fixadoras do primeiro e compostagem de lodo de esgoto e lixo orgânico para o segundo e terceiro.
Por outro lado, os sistemas agroecológicos permitem a fixação de carbono nos solos, além de favorecerem o reflorestamento, o que tem o mesmo efeito. A redução dos estoques de bovinos teria impactos na diminuição da emissão de N20, um dos mais poderosos GEE. Alguns estudos indicam que, entre o reflorestamento, a redução das emissões do gado bovino e a fixação de carbono nos solos retiraria significativamente o CO2 da atmosfera, além de diminuírem exponencialmente as emissões de N2O.
Não é preciso se estender nos comentários sobre os impactos positivos da agroecologia na eliminação da contaminação química de solos e águas, bem como na maior economia no uso de água na agricultura. Estes resultados são inerentes à agroecologia.
Para completar esta breve análise das implicações da adoção generalizada da agroecologia no lugar da agricultura convencional é preciso indicar que o efeito social seria gigantesco. Transferir milhões de pessoas do universo urbano de volta para o rural vai ser uma imposição desta realidade e, para que isto seja possível, vai ser necessária uma redistribuição da renda para remunerar corretamente uma produção vital, os alimentos e outros produtos agrícolas, assim como o pagamento dos serviços ambientais do novo sistema. Um imposto sobre a emissão de GEE e um bônus pela sua retirada da atmosfera favoreceriam esta redistribuição.
Todas estas mudanças têm implicações para a pesquisa científica, exigindo novas formas de produção do conhecimento. A prática mostra que a extrema diversidade dos sistemas produtivos na agroecologia elimina propostas centradas no monocultivo, marca da atual pesquisa agropecuária. A agroecologia é “knowledge intensive”, enquanto a agricultura convencional é “input and energy intensive”. Vai ser preciso combinar a investigação científica com a experimentação camponesa para que possam ser redesenhados esquemas produtivos específicos para cada produtor. São novos paradigmas para o ensino das ciências agrárias, para a pesquisa e para a extensão rural.
Esta nova distribuição do trabalho acontecerá de uma forma ou de outra. Se induzida pela compreensão antecipada da sua necessidade ela enfrentará sobretudo a resistência do agronegócio. Se deixada para quando as crises se agravarem ela vai se fazer em meio a imensas dificuldades oriundas de uma produção cada vez mais insuficiente e todas as perturbações sociais e políticas que não deixarão de se manifestar.
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O sistema agroalimentar mundial – em crise terminal. Artigo de Jean Marc von der Weid - Instituto Humanitas Unisinos - IHU