06 Setembro 2024
O diretor do podcast Epidemia Ultra analisa a evolução do apoio ao partido de extrema-direita alemã há anos e explica por que os resultados das eleições na Turíngia e na Saxônia representam um terremoto político no país.
Os resultados históricos da ultradireita alemã deixam o governo de Scholz em uma situação difícil.
A entrevista é de Mariangela Paone, publicada por El Diario, 03-09-2024.
O diretor do projeto 'Epidemia Ultra', Franco Delle Donne. Imagem cedida.
Se Franco Delle Donne (Buenos Aires, 1983) tivesse ouvido, quando chegou à Alemanha, que um partido de extrema-direita poderia ganhar eleições regionais, ele teria respondido “impossível”. Quatorze anos depois, após ter escrito o livro Factor AfD (Libros.com) e lançado o projeto e o podcast Epidemia Ultra, do qual é diretor, Delle Donne explica como a Alternativa para a Alemanha conseguiu isso, ganhando no domingo a primeira posição nas eleições da Turíngia e ficando por pouco em segundo lugar na Saxônia. E acredita que a responsabilidade deve ser buscada não apenas no descontentamento do leste após a reunificação, mas também no desgaste dos outros partidos após muitos anos de governos de “grande coalizão”.
A Saxônia e a Turíngia são estados pequenos, com cerca de seis milhões de habitantes no total. Alguém poderia pensar que a importância dos resultados de domingo está sendo exagerada. No entanto, por que as eleições de domingo e as próximas eleições em Brandemburgo não são apenas mais eleições regionais?
Se considerarmos a partir desse ponto de vista ou do PIB que esses estados contribuem, sua importância não seria tão significativa. No entanto, a importância vem do ponto de vista simbólico. É a primeira vez que a direita radical conquista o primeiro lugar na Alemanha em eleições regionais. Isso nunca havia acontecido antes. Além disso, o candidato que conquistou esse primeiro lugar na Turíngia é Björn Höcke, que não é apenas um líder qualquer da Alternativa para a Alemanha, mas o mais radicalizado, conhecido por suas declarações racistas e xenófobas. Uma pessoa que domina a arte comunicacional que as direitas radicais utilizam para ocultar suas mensagens antidemocráticas em reviravoltas na linguagem, permitindo-lhes expressar e argumentar que estão exercendo sua liberdade de expressão.
O que aconteceu no domingo é muito importante também devido à atual conjuntura: temos um governo federal – uma coalizão tripartite entre social-democratas, verdes e liberais – com uma popularidade muito baixa, uma das mais baixas desde que esse dado é medido. E as eleições na Turíngia e na Saxônia foram uma verdadeira catástrofe para os três partidos.
Mencionava Björn Höcke. Como ele conseguiu assumir o controle do partido e de que maneira sua liderança contribuiu para os resultados deste domingo?
É uma figura muito particular. É notável porque, talvez, a diferença da AfD em relação a outros partidos desse tipo é que não tem um líder messiânico reconhecido, como Marine Le Pen, Viktor Orbán ou Geert Wilders. Sempre tiveram diferentes líderes que, na verdade, caíram em desgraça, mudando de liderança três ou quatro vezes em dez anos. E esse líder, Höcke, é uma pessoa que esteve presente desde o início, com um perfil relativamente baixo, e foi ganhando destaque no partido aos poucos, com algumas declarações polêmicas, como as críticas ao monumento ao Holocausto e fazendo comentários racistas, brutalmente racistas.
Ele ganhou espaço no partido à medida que se radicalizava...
Exatamente. E o interessante é que ele ganhou muito poder dentro do partido, construindo uma estrutura conhecida como "a ala", ou "der Flügel" em alemão, que era um setor do partido com maior presença no leste do país e que agrupava os elementos mais radicalizados, incluindo pessoas que, na época, tinham militado em formações neonazistas. Ele era o líder dessa ala, mas nunca se apresentava como líder do partido. Sempre que havia um congresso do partido, ele não estava lá como candidato, mas ele decidia com os votos da "ala", que eram os mais mobilizados e ativos dentro da formação. Ele foi uma espécie de líder às sombras.
Por outro lado, em relação aos meios de comunicação, embora em algum momento ele tentasse aparecer na mídia tradicional, isso foi se tornando cada vez mais esporádico. Ele costuma não dar entrevistas e usa a tática de se vitimizar. Além disso, quando lhe fazem perguntas que o incomodam, ele tem muita dificuldade para lidar com a situação. Em alguns debates televisivos, ele foi visto bastante nervoso e mal preparado. É aí que vemos o problema que sempre existe na direita radical: eles não têm um programa de governo. Provavelmente não querem governar; é mais vantajoso para eles estar na oposição, apontando o dedo e acumulando poder aos poucos a partir dessa posição de não responsabilidade.
Höcke foi condenado por usar lemas nazistas, há investigações importantes sobre outros membros do partido e a agência de inteligência BfV mantém o partido sob observação por suspeita de extremismo. No entanto, não parece que os problemas judiciais tenham afetado muito a formação...
Do ponto de vista da opinião pública, esse tipo de situação judicial – que não é pouca e nem menor, já que em alguns casos são questões graves – acaba por reforçar as crenças preexistentes. Aqueles que consideram a AfD um perigo, se já pensavam mal, vão pensar pior. E os apoiadores do partido, que estão próximos aos padrões típicos de vitimização (“estão perseguindo a AfD com todo o poder do Estado porque estão contra o único partido que representa os interesses do povo”), continuarão reforçando essas ideias.
Você deve estar se perguntando: e como o partido cresce em votos se a divisão está tão clara? Por exemplo, voltando para o leste, há um setor com uma frustração significativa, um descontentamento com questões de desigualdade, que pode ser material, mas também simbólica. E é aí que a AfD ou o partido de Sahra Wagenknecht se propõem a representar essa voz dos “não ouvidos”.
No leste também está presente o medo, que depois se transforma em ódio. Não apenas o medo de um ataque como o ocorrido há alguns dias em Solingen, que também acaba ativando alguns votos, em uma questão mais de islamofobia. É também o medo de perder o status quo, um medo material. Não necessariamente de cair na pobreza, mas de coisas como “vou ficar sem aquelas férias em Mallorca que sempre fazia”. As questões judiciais da AfD se desvanecem nesse tipo de pensamento, passando a ocupar um espaço ínfimo.
A AfD tem uma trajetória peculiar. Foi fundada por um ex-membro da CDU, que estava há mais de três décadas no partido, junto com um grupo de economistas insatisfeitos com os resgates na eurozona, e depois se tornou a formação ultradireitista que conhecemos hoje. Como ocorreu essa transição?
Foi uma mudança gradual. Um ponto de inflexão foram as eleições de 2014, também na Saxônia, na Turíngia e em Brandemburgo. A AfD obteve cerca de 10% dos votos com uma temática bastante chamativa na época, que era a necessidade de “proteger as fronteiras devido à insegurança que vem da Polônia”. Eles perceberam que estavam ganhando votos. E a discussão, que vinha do euroceticismo neoliberal, começa a se transformar em um discurso mais rígido e conservador. E então chegou a crise dos refugiados, outro ponto de inflexão, pois o partido passou a se apropriar do tema migratório. Era o momento da acolhida dos refugiados, do “podemos fazer isso” da própria Angela Merkel, e eles, por sua vez, se apropriam do tema a partir da perspectiva típica de um partido de direita radical.
Todos os partidos diziam que era preciso respeitar os tratados europeus e aceitar essas pessoas. Mas houve um caos profundo nas administrações locais, pois os prefeitos encontraram muitas dificuldades para lidar com o grande número de pessoas. Havia vilarejos muito pequenos com uma quantidade excessiva de refugiados. E é aí que a AfD começa a se envolver, percebendo que poderia obter algum retorno eleitoral. O partido começa a aprofundar seu discurso de maneira mais radical, com os componentes típicos de autoritarismo e nativismo.
Sempre houve na Alemanha formações de extrema-direita e até mesmo neonazistas, mas até agora eram residuais...
Uma das coisas fundamentais é a comunicação. Esses partidos não tinham a diversidade de redes sociais, a diversidade de meios de comunicação e seus próprios meios de comunicação na internet para acessar esses públicos e comunicar sem filtros.
Além disso, havia uma incapacidade dessas formações. Era necessário ter uma organização política, e mais naquela época, que funcionasse e se mobilizasse. E havia também a estratégia dos partidos políticos majoritários, que na época tinham um apoio, um prestígio e uma legitimidade muito maiores do que têm agora.
Quando surgiu o Partido dos Republicanos nos anos 80, um partido com o lema de Donald Trump, “Alemanha em primeiro lugar”, o que fez a CDU? Disse: “Vamos ver, por que este partido está indo bem? Porque fala sobre a imigração que vem dos Bálcãs. O que precisamos fazer? Limitar um pouco a chegada de refugiados. Temos que mudar tal lei para que isso não seja tão fácil.” E o que eles faziam já naquela época era incorporar e absorver a agenda política desse partido e neutralizá-la com alguma medida concreta.
Em que medida, levando em conta o que você acabou de dizer, os outros partidos contribuíram para o crescimento da extrema-direita?
Isso que acabei de dizer é a estratégia que eles adotaram nos anos 80 e 90. Chama-se “incorporação”. Incorporar a agenda e integrá-la na própria. Tentaram repetir isso com o AfD e não funcionou. O que, em algum momento nos anos 80, foi um remédio, transformou-se em um veneno.
O próprio líder da CSU [os conservadores da Baviera], Markus Söder, quis seguir a mesma estratégia em 2018, propondo colocar crucifixos em locais públicos “para que o islamismo não nos conquiste”. Acabou obtendo o pior resultado do partido em sua história e reconhecendo em uma entrevista posterior que foi um erro ter aplicado essa estratégia em vez de manter os próprios valores.
Mas não falo apenas da centrodireita, os liberais também fizeram isso. E os social-democratas, com algumas decisões, acabam tentando satisfazer esse impulso. No final, o que acabam fazendo é mostrar ao público que o AfD tinha razão. Como aconteceu após o ataque de Solingen, após o qual começaram a retomar as deportações de refugiados para o Afeganistão.
Depois há outro ponto: a construção de um sistema que aprofundou certas desigualdades e isso fortaleceu o medo de perder o status quo. E isso também foi um produto dos partidos que, juntos ou separados, governaram por muito tempo.
O fato de ter havido uma “grande coalizão” durante tanto tempo contribuiu para isso?
A eterna grande coalizão é um fator chave para entender o AfD. Esse partido surgiu como uma expressão de decepção e raiva em relação aos partidos tradicionais. É um problema de índole do sistema político, porque quando há dois partidos tradicionais importantes, majoritários, como a União Democrata Cristã e o Partido Social-Democrata, o que uma democracia liberal precisa é que eles tenham projetos de país que competem entre si. Podem concordar em questões gerais, obviamente. Mas deve haver uma alternativa para se votar.
Quando, durante os 16 anos de Merkel, três quartos foram com um governo de grande coalizão e os partidos se tornam cada vez mais similares e com agendas mais parecidas, o que acaba acontecendo é que certas identidades políticas se dissolvem.
Antes do aparecimento do AfD, o que ocorria era que havia muito abstenionismo na Alemanha Oriental. Esse espaço foi o que o AfD conquistou em suas primeiras intervenções com Merkel ainda no poder. Um terço dos votos vem de lá. Nesse sentido, a grande coalizão contribuiu negativamente para abrir um espaço político para a existência de uma direita radical na Alemanha.
Falamos sobre a estratégia falhada de copiar o discurso da extrema-direita. Mas há também o partido de Sahra Wagenknecht, que tem um discurso muito alinhado com o do AfD no tema da imigração e que tem ganhado força nos parlamentos da Turíngia e da Saxônia. Como se explica o fenômeno da Aliança Sahra Wagenknecht (BSW, pela sigla em alemão)?
Primeiro, esse partido — que apresenta um “rojipardismo” em seu discurso e em suas propostas — não existia antes. Trata-se de uma formação baseada na figura de Sahra Wagenknecht, que tem um talento político para identificar aqueles temas que incomodam uma parte significativa da sociedade em um momento específico. Quando as pessoas estão irritadas com determinado assunto, ela se apropria disso e começa a falar sobre o tema. Foi assim com os refugiados. Ela foi a primeira líder de esquerda a dizer “tantos refugiados, não”. Mas não dizia o que faria. O mesmo aconteceu durante a pandemia. E, mais recentemente, com a invasão russa da Ucrânia: “Eu sou a favor da paz”. E então perguntam: “Mas em que condições?” Ela responde: “Sob quaisquer condições. O importante é que não morra gente.” E assim por diante. Ela construiu esse partido praticamente sem militantes, em torno de sua imagem. Não tem uma organização estruturada; o que ela possui é sua presença na mídia.
Até agora, o cordão sanitário tem sido mantido na Alemanha. No entanto, após as eleições regionais de 2019, foram necessários três partidos para formar governo em Brandemburgo e na Saxônia, o que aumentou a frustração da CDU e alguns setores pressionaram por uma abertura em relação ao AfD. Você acredita que isso pode acabar ocorrendo? Quanto tempo mais esse dique de contenção durará?
O problema de um cordão sanitário em um parlamento é que, se o partido que você precisa isolar tem uma quantidade de votos muito relevante, você precisa de muito mais partidos para formar uma maioria. Do ponto de vista da legitimidade e da opinião pública, também é muito difícil dizer “vamos isolar esse partido”, que é muito radical, quando foi votado por um em cada três eleitores. E acho que aí está a grande vitória que esses partidos buscam: fazer com que as outras formações tenham que se unir para impedir que governem, porque assim confirmam sua profecia, ou seja, “todos os partidos estão contra nós, são todos iguais”.
Sobre a questão de se a CDU pode acabar se abrindo para o AfD, eu vejo isso bastante difícil. Por um lado, a CDU tem em seus estatutos que nunca fará coalizões com extremos, incluindo o Die Linke. Além disso, no próximo ano há eleições federais. Abrir espaço para o AfD a nível regional poderia abrir um flanco de ataque da sociedade em relação a um pacto com a extrema-direita.
Por outro lado, há a pressão de baixo para cima, de setores e das segundas ou terceiras filas do partido, que há vários anos defendem que se poderia negociar com o AfD, talvez não fazer um pacto geral, mas sim em questões pontuais. Se me perguntassem sobre isso há dez anos, eu teria dito que era impossível. Hoje posso dizer que não acredito que isso aconteça no curto prazo, mas em algum momento, se o cenário político se mantiver, é provável que algum partido acabe formando uma coalizão com o AfD.
Após os resultados na Turíngia e na Saxônia, vem Brandemburgo. O governo de Scholz pode estar em perigo? Você vê a possibilidade de uma eleição antecipada?
Não acredito que o governo veja como uma oportunidade convocar novas eleições agora. Um fator que poderia fazer a coalizão desmoronar seriam os liberais, mas eles são os que estão em pior situação nas pesquisas, próximos ao limite de 5% a nível federal e ficando de fora nessas duas regiões.
Em relação às eleições federais, o tema também envolve a discussão interna no Partido Social-Democrata, pois há muitas críticas a Olaf Scholz e alguns falam em copiar o modelo dos Estados Unidos, trocando o candidato no meio do caminho.
O que falhou na Saxônia, onde há uma próspera indústria de microchips, chamada Silicon Saxony, e um crescimento econômico sustentado nas últimas décadas, para que o descontentamento que você mencionou continue alimentado?
Esse crescimento econômico mencionado não significa necessariamente redistribuição da riqueza. Existe uma frustração que vem se acumulando há 35 anos. Refiro-me à grande promessa da reunificação. E não se trata apenas da questão material, mas das expectativas geradas. O problema é que as expectativas da reunificação foram diferentes. O que o oeste esperava do leste não era o mesmo. Há um livro na Alemanha sobre isso, intitulado Die Übernahme, que aborda essa ideia de que o oeste assumiu o leste, mas como uma anexação, não como uma reunificação.
Outro ponto fundamental é o das elites. Para mim, é crucial: em todos os lugares de decisão, em todos os centros de poder, tanto privados quanto públicos, as pessoas são do oeste.
E, no entanto, Merkel veio do Leste...
É uma exceção. Embora, para ser rigoroso, ela tenha nascido em Hamburgo e se mudado para o leste quando era pequena. Mas, bem, é um detalhe. Quando se fala dessa discussão sobre as elites, algumas pessoas dizem: “Bem, Merkel governou por 16 anos e era do leste”. Sim, claro. E quem mais?
Há uma pergunta feita em cada eleição no leste, que é: “Você concorda ou não com a seguinte afirmação: os cidadãos do leste são cidadãos de segunda classe na Alemanha?” O que 75% respondem afirmativamente. Não estou falando apenas dos eleitores do AfD, mas de todos os que votaram. É um caldo de cultura muito importante para que um partido de direita radical, populista ou um partido de esquerda populista “rojiparda” consiga votos. Se depois isso se traduz em oferecer soluções, projetos de país ou de governo, eu duvido, porque eles não trabalham para isso.
Do meu ponto de vista, eles estão trabalhando para construir outro tipo de sistema, e esse é o grande perigo: a construção de um sistema que seja mais autoritário, algo mais parecido com o que era a Hungria e Polônia durante o governo dos irmãos Kaczynski.
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Franco Delle Donne, especialista em extrema-direita na Alemanha: “A grande coalizão abriu um espaço para a direita radical” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU