10 Setembro 2024
Depois do afastamento da comunidade que havia criado, construiu a Casa della Madia: “A traição sofrida é uma dor profunda. Hoje, reformar a Igreja é mais difícil”.
A reportagem é de Paolo Griseri, publicada por La Stampa, 25-08-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Uma estrada estreita e de paralelepípedos no meio da zona rural de Ivrea. Desce pela encosta da Valle d'Aosta e segue ao longo da Serra. Passa bem perto ao nosso lado, sentados em uma mesinha, desfrutando do frescor que vem das montanhas. É a Via Francigena, a dos peregrinos que iam para Roma. Mas também a estrada dos exércitos, aquele de Bernardo, tio de Carlos Magno, que, há exatamente 1.250 anos, veio nessas paragens para derrotar os Lombardos liderados por Adelgis. A responsabilidade pela derrota? A traição dos duques aliados ao príncipe.
Vamos começar por isso: Enzo Bianchi, o que é traição?
Este não é o melhor momento para fazer essa pergunta ao fundador da Comunidade de Bose, por mais de cinquenta anos ponto de referência para o catolicismo pós-conciliar europeu e ponte de diálogo com outras confissões cristãs, a começar pela ortodoxa. Em 2020, tudo isso, a construção de uma vida, foi destruído, foi reduzido a pó: uma inspeção do Vaticano, desencadeada pelas denúncias de alguns membros da Comunidade, a decisão de afastar Enzo do lugar que ele havia fundado, acusado, conta ele, de “não se sabe bem o quê”. Assim, viemos conversar aqui, na Casa della Madia, na zona rural entre Albiano e Ivrea, o lugar onde nasceu a nova comunidade daqueles que quiseram seguir Enzo em seu exílio involuntário. Nos bancos da pequena igreja estão os livretos com as orações de Bose.
O passado? “Também o presente. Eu as escrevi”. Aqui estamos em frente aos campos onde Adalgis foi derrotado.
O que é a traição?
É uma ferida profunda que se sente por dentro. Quando ouvimos falar de traição, pensamos na traição entre os casais. Que, na maioria das vezes, é uma queda, da qual é possível se levantar.
Existem traições das quais não se consegue levantar?
Quando você é amigo fiel de alguém, gosta de alguém, no sentido de que quer e faz o que é bom para ele. Quando essa pessoa, em quem você depositou sua confiança e uma parte de si mesmo, de repente, e sem qualquer motivo, o entrega a alguém que pode lhe causar mal. Aí, quando isso acontece, é difícil se reerguer. Você amou. E você é entregado a outros.
Isso já aconteceu na história da Igreja. Aliás, nas suas origens. Há quem afirme que aquela traição fosse necessária. Nils Runeberg, o teólogo imaginário de Borges, declara isso: sem Judas Iscariotes não teria havido a crucificação e, para aqueles que creem, a ressurreição de Jesus.
Mas no Evangelho a traição de Judas é condenada irremediavelmente. Mateus escreve: ‘Teria sido melhor se nunca tivesse nascido’.
Você ainda não consegue perdoar?
Odeio os perdões televisivos. Aqueles que se fazer diante das câmeras, por exibicionismo, para dar um final feliz às histórias. Não, ainda não consigo.
Você conseguirá um dia?
Se formos honestos com nós mesmos, sabemos que o tempo precisa seguir seu curso, depois veremos.
Já tentou entrar em contato com as pessoas que, segundo você, o traíram?
Eu fiquei muito doente no hospital. Enviei uma mensagem para uma dessas pessoas. Mas não recebi resposta.
Já lhe ocorreu que até mesmo essa traição poderia ser necessária, talvez para fazê-lo perceber algo que não tinha visto?
Nós, monges, cantamos os salmos todos os dias. O Salmo 116 diz que todo homem é um mentiroso. Sempre achei que era um exagero. Hoje acho um pouco menos. É claro que refleti. Perguntei a mim mesmo o que fiz de errado, o que fiz de mal a essas pessoas, se é que fiz algum mal. Em cinquenta anos de governo de uma comunidade, erros são cometidos. Mas, para essas pessoas, sinto que só fiz o bem. E também não esqueço das outras vítimas que foram expulsas de Bose comigo. Uma delas, em minha opinião, um monge santo que nunca pensou em si mesmo, mas apenas no bem da comunidade.
A ferida ainda está doendo?
Não mais. Ela foi aliviada pelo afeto de meus coirmãos e pelas muitas pessoas que me escreveram, que vieram nos visitar, que apoiam as atividades da Casa de Madia. E pelas palavras do Papa Francisco, que me escreveu encorajando-me: 'Permaneça na cruz e chegará a hora em que você entenderá'.
Vamos rebobinar a fita. Quando você sentiu a vocação do monaquismo?
Bem tarde.
Portanto, existiu um Enzo antes de Bose, antes do estudo da Bíblia.
Mas não antes dos livros. Eu costumava lê-los na livraria Minerva, de Nizza Monferrato, antes do horário escolar.
É a história de um jovem promissor de Monferrato astigiano, de Castel Boglione, uma terra de tradição democrata cristã. Enzo está envolvido no associativismo católico e na DC. Está ligado à corrente da esquerda social, na época identificada com Amintore Fanfani.
Se eu tivesse continuado, teriam me candidatado às eleições políticas de 1958 e provavelmente teria me tornado deputado.
Mas?
Mas eu conheci o Abbé Pierre e ele mudou minha vida.
Um encontro que hoje seria considerado profético: a vida monástica junto com ex-detentos, com os pobres que vendiam trapos.
Entendi que poderia me tornar um cristão de verdade seguindo o estilo de vida de Jesus.
Do que abriram mão o jovem Enzo e as pessoas que faziam parte de sua vida? Ele de um provável cargo de deputado, a família do sonho de ter um filho importante. E ela? Enzo a chama de “aquela que foi minha companheira por um certo tempo”. Vocês teriam se casado?
Provavelmente.
O que ela disse quando você deixou tudo para ser monge?
Ela entendeu.
E seus pais?
Meu pai considerou isso uma traição. Também o incomodava o fato que eu, filho de um eletricista, vivesse em um lugar isolado sem luz elétrica.
O jovem monge vive sem água em casa, sem eletricidade. Para ganhar um prato de polenta, traduz livros do francês. A comunidade surgirá três anos depois, quando outros se juntaram a ele e Bose nasceu. Um ponto de referência ecumênico para a Igreja. Especialmente com o mundo ortodoxo.
Todos os patriarcas das igrejas ortodoxas passaram por Bose ao longo dos anos. Somos amigos de muitos deles.
Pergunta inevitável, até mesmo de Kirill, o Patriarca russo pró-Putin?
Temos sido amigos. Hoje, admito, não é fácil.
As igrejas ortodoxas são igrejas nacionais, tendem a apoiar as razões dos estados de referência. Não é normal?
Até o ponto a que Kirill chegou, não, não é normal. Já no final do século XIX, o Sínodo Pan-Ortodoxo de Constantinopla condenou a heresia do filetismo, aqueles de quem identifica o destino de uma igreja com o de uma nação.
Que sentido tem ter igrejas nacionais? Como se Deus se fragmentasse em dezenas de nacionalidades diferentes...
Era assim também no Ocidente. Estamos falando justamente de Carlos Magno, aquele que desceu por esses vales para conquistar a Itália. O seu era o Sacro Império Romano, uma perfeita identificação entre autoridade civil e religiosa.
Somente os protestantes se salvam...
Nem tanto. Sem os príncipes alemães, a Reforma teria morrido em seu início. A tentação das igrejas de se fazerem proteger por um Estado, se não mesmo determinar as escolhas dos Estados, é secular na história do cristianismo.
Tudo bem, quem não tiver pecado que atire a primeira pedra. Mas para os católicos de hoje não é mais assim.
Hoje o Papa lidera um Estado muito pequeno e não tem poder temporal. Mas ele tem um poder muito forte de orientação política. Não sei quanto tempo isso vai durar. E talvez fosse desejável que esse papel político não durasse. É um freio para a vida da Igreja.
O papado precisa se anular para dar frutos?
É o que tinha entendido Celestino V. E talvez seja o que Bento XVI compreendeu. Não nos aprofundamos o suficiente nos motivos de sua decisão de renunciar.
Um papa que perde seu papel, como de fato aconteceu com o patriarca de Constantinopla. Mas, mais do que o papel político do papado, o que gera escândalo hoje são a segregação das mulheres na Igreja e as posições sobre a moral sexual.
Você diz que essas são coisas que geram escândalo? Não me parece. Até mesmo Francisco está tendo grande dificuldade para introduzir alguma mudança. Você verá que o sínodo de outubro não trará muita coisa nem sobre o papel das mulheres nem sobre a homossexualidade.
A Cúria está resistindo?
Não, a verdade é que é o rebanho está refreando.
Estranho, as mudanças na Igreja quase sempre começaram de baixo.
Não é mais assim. Pertencemos a uma geração de sorte. Vi grandes oportunidades de reforma: o Papa João, o Concílio, o Papa Francisco. Mas, mesmo depois dessas grandes aberturas, a Igreja se fechou. Hoje, naquelas propostas acredita apenas uma minoria, um pequeno rebanho que tem a força para praticar a radicalidade do Evangelho. Mas uma empreitada como essa exige que se tenha a força para atravessar um deserto. E muitos não têm essa força. Preferem se refugiar em uma religião individual, nas espiritualidades vaporosas que prometem ficam de bem consigo mesmos, o placebo de uma vida feliz.
Quem são os inimigos de Francisco?
Pessoas de coração duro, que têm a grande pretensão de estar sempre na verdade, que precisam de definição: escuridão diante da luz.
Enzo, você tem mais de 80 anos. O que você ainda espera da vida?
Todos os dias tenho uma oração constante: que Jesus volte. Eu lhe digo: 'Venha, você nos prometeu'.
A parúsia, o retorno do Messias. E se ele não voltar?
Ele precisa voltar. Ele o prometeu. Voltará, estou esperando por ele. Caso ele não voltasse, tudo terá sido em vão.
Caso contrário, como está escrito no Eclesiastes, “tudo foi inútil, foi correr atrás do vento”.
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Enzo Bianchi, o monge que fundou Bose: “Francisco está tendo grande dificuldade para introduzir alguma mudança. Você verá que o sínodo de outubro não trará muita coisa nem sobre o papel das mulheres nem sobre a homossexualidade” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU