23 Agosto 2024
Documento elaborado por delegação de holandeses reforça o que já se sabia – houve falhas no sistema anticheias em Porto Alegre –, o que agravou a tragédia climática.
A reportagem é de Elstor Hanzen, publicada por ExtraClasse, 21-08-2024.
A administração Sebastião Melo, por meio do Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae), anunciou versão atualizada sobre a tragédia climática nesta semana, mas sem fato novo.
Uma Agência Empresarial Holandesa, trazida pela prefeitura para o serviço, apenas deu maior enfoque aos problemas estruturais do sistema de proteção contra as cheias. Profissionais e pesquisadores que conhecem e acompanham a realidade local contestam desvio de foco pretendido com o parecer dos holandeses e chamam relatório de “um grande lance de marketing”
Documento elaborado por uma delegação de holandeses reforça o que já se sabia – houve falhas no sistema anticheias em Porto Alegre –, o que agravou a tragédia climática na vida da população.
A versão do relatório divulgado no último dia 19, contudo, foca nos erros técnicos de desenho e execução das obras de drenagem realizadas nos anos de 1960 e 1970.
Ou seja, os problemas teriam origem nas estruturas do projeto das obras dos diques, casa de bombas e sistema de comportas, desviando a atenção da falta de manutenção e manejo errado nas comportas do Guaíba.
A versão dos holandeses, no entanto, é prontamente contestada por membros do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH/UFRGS) e profissionais que conhecem a história e a realidade do sistema de drenagem da capital de perto. Além disso, os especialistas daqui já tinham feito o diagnóstico da situação e apresentando propostas emergenciais enquanto a enchente ocorria.
Eles apontaram que as principais causas da inundação foram a falta de manutenção, falta de investimentos em modernização e sucateamento do sistema de proteção.
Engenheiro especialista em planejamento energético e ambiental, ex-diretor do extinto Departamento de Esgotos Pluviais (DEP), Vicente Rauber é conclusivo sobre o que ocorreu no sistema antienchente.
“Não há erro estrutural de projeto no sistema de proteção contra inundações de Porto Alegre. Há sim uma gestão que deixou de cumprir com seus compromissos públicos”, aponta.
Pesquisador e professor da UFRGS, Fernando Meirelles, integrante do IPH/UFRGS, afirma que o plano original estabeleceu condicionantes claras. Para a casa de bombas, é explícito que o sistema de diques e muro não poderia ser ultrapassado, pois isso inviabilizaria o seu funcionamento.
“Não há um 'erro', há um critério de projeto”, explica. Sobre os diques mais baixos, segundo ele, isso está no plano original, sendo identificados como estruturas existentes e que deveriam ser reformados para a realidade atual.
“Não temos informações sobre como o projeto foi executado, nem sobre as alterações realizadas pelo Trensurb ou pela Fraport”, pontua. Sendo assim, não havia possibilidade de concluir que houve problemas estruturais decorrentes da construção do sistema de proteção contra inundações na capital.
Para Rauber, o que a prefeitura fez ao recorrer ao diagnóstico dos holandeses foi uma tentativa de “um grande lance de marketing”, trazendo uma delegação holandesa que, após avaliar a situação, anunciou preliminarmente.
“É necessário recuperar a integridade do sistema, fazer o monitoramento de seus níveis de integridade. Monitorar vazões e ventos, com alertas para a população”, contrapõe.
Segundo o engenheiro, tudo isso já se sabia quando a inundação generalizada tomava Porto Alegre em maio.
Ele lembra que na época um grupo de 48 profissionais – ex-dirigentes do saneamento e áreas vinculadas, professores e pesquisadores – redigiram e divulgaram uma manifestação aos porto-alegrenses.
“Todos se sentiram completamente indignados com o que viam, comportas externas vazando, casas de bombas também com as comportas vazando, as águas do Guaíba invadindo pelas próprias canalizações, fazendo chafarizes nas bocas-de-lobo”, relata Rauber.
A reação dos gestores da prefeitura e do Dmae foi atacar os signatários do manifesto com fake news, lembra o engenheiro. “É importante fazer uma troca de experiências com os holandeses, por todo seu conhecimento e experiência histórica. A questão ruim é como foram trazidos, para tentar negar o que era bem conhecido a nível local”, observa Rauber.
Conforme apurado, o relatório dos técnicos holandeses aborda principalmente três pontos: a baixa altura dos diques do Sarandi, a deficiências nas casas de bombas, que foram construídas num nível mais baixo, e as fragilidades do sistema de comportas e sistema em geral.
A versão apresentada é a de “existem problemas estruturais decorrentes da construção do sistema de proteção contra Inundações”, ressalta Rauber. “Na entrevista de segunda, a palavra manutenção esteve proibida”, completa.
“Se assim realmente consta no relatório, é necessário perguntar qual fonte de informações foi dada à delegação holandesa”, questiona o engenheiro especialista em planejamento energético.
Segundo ele, seria necessário revisar a documentação técnica do Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS) que estava arquivada no DEP, essencial para o exercício das atividades.
“Certamente, essa documentação não foi apresentada à delegação holandesa. Anteriormente um dirigente do Dmae já havia informado que a documentação não existia, ou está “escondida”. Ou foi realmente perdida, o que é gravíssimo, e os responsáveis por transferir o DEP ao Dmae precisam responder por isso”, alerta Rauber.
Ele solicitou o relatório dos holandeses. Entretanto, a direção do Dmae “informou que somente irá divulgar a sua íntegra daqui a dois meses. Por que escondê-lo se é de interesse público?”, pergunta o engenheiro. A reportagem também solicitou ao Dmae o acesso à íntegra do documento produzido pelos holandeses, mas não obteve resposta.
Meirelles reforça que não há como fazer qualquer apontamento sobre erros na concepção e execução dos projetos de drenagem do século passado, sem ter acesso à documentação do DNOS. “Não conheço a existência de um documento chamado “as built“, ou “como construído” para esse sistema. Esse é o documento definitivo de uma obra”.
Fernando Meirelles do IPH/UFRGS é definitivo sobre as manutenções e os erros na gestão do sistema contra as cheias na capital. “Existiram falhas evidentes na vedação, na permanência do portão no lugar da comporta, na permanência de casas sobre os diques, nas comportas das casas de bombas e nas ligações “irregulares” identificadas no Dilúvio e no Centro Histórico. Além disso, há a alteração na Assis Brasil que deve ter sido realizada pelo DNIT”, enfatiza.
O diagnóstico das causas e das soluções que deveriam ser tomadas foi apresentado anteriormente, ressalta Rauber. “Ou seja, nada diferente ao que nosso alerta da manifestação, engenheiros do Dmae e especialistas em pesquisas hidráulicas, foi agregado agora”, afirma. “Frise-se: “recuperar a integridade” é fazer a manutenção que deixou de ser feita”, completa o especialista em temas ambientais.
Diques do Sarandi – Os principais são os diques Sarandi (Arroio das Pedras) e Fiergs (Arroio Santo Agostinho). Foram construídos nas alturas corretas, no caso, na cota 6,5m com a régua DNOS.
Estão sendo degradados há anos. Em 2018, a Metroplan, no seu relatório visando a implantação dos diques no Arroio Feijó, de competência estadual por ser a divisa entre os municípios de Porto Alegre e Alvorada, alertou para a necessidade de recomposição destes diques. Esse alerta foi encaminhado à Prefeitura de Porto Alegre, para conhecimento e providências. Nada foi feito.
Casas de Bombas – Igualmente foram construídas pelo DNOS, atendendo recomendações dos engenheiros alemães, os construtores. A altura dos motores nas Casas de Bombas está correta. As Casas de Bombas não foram feitas para operar inundadas. Aliás, todo o Sistema foi feito para proteger a cidade e não para inundá-la. Atendem na melhor eficiência para mais de 95% das necessidades de operação. Com as águas subindo necessitam de mais potência. Com o crescimento da cidade há necessidade de mais potência para retirar as águas das chuvas.
Por isto, os engenheiros do DEP, em 2014, elaboraram um Plano de Ampliação e Modernização das Casas de Bombas e obras no Arroio Moinho, para o qual a presidente Dilma liberou R$ 124 milhões a fundo perdido (ratificados por Temer e Bolsonaro), perdidos em 2019 por falta de projeto executivo. O DEP foi extinto em 2017. E a atual gestão, mesmo acumulando R$ 430 milhões em aplicações financeiras, também não executou nada do programa em cinco anos.
Fragilidades das comportas – falou-se em atualização das comportas em 2010.
O que aconteceu de fato: A última revisão com reformas foi realizada em 2020. Em informação oferecida pelo Dmae, para investimentos entre 2021 e 2024, não consta nenhum recurso destinado a comportas e casas de bombas.
Malditas comportas: Não possuem nenhuma manutenção desde 2020, mesmo tendo sido operadas em setembro e dezembro de 2023, quando, pelo menos nestas oportunidades deveriam ter sido registrados seus defeitos e contratadas as respectivas manutenções. Tempo e dinheiro não faltaram.
A comporta três, próxima ao Tribunal de Contas do Estado, importante acesso ao porto, numa cena dantesca, foi arrancada ao invés de ser aberta devidamente.
A seguir, num rompante, foi anunciado que todas as comportas seriam substituídas. “Ora, por que não as revisar e verificar quais suas reais necessidades”, indaga Rauber.
“Agora anunciou-se que oito das 14 comportas externas seriam eliminadas, sendo concretado nestas aberturas. Em relação a de nº 14, que permite acesso aos clubes náuticos e outras importantes atividades da região Norte junto ao Rio Gravataí, houve fortes manifestações públicas contrárias e a direção do Dmae resolveu retirá-la da relação”.
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Especialistas questionam relatório de holandeses sobre as enchentes de Porto Alegre - Instituto Humanitas Unisinos - IHU