20 Agosto 2024
“Este catastrofismo e esta sensação de paralisia são na verdade um luxo, porque as pessoas precisam seguir vivendo. Continuamente nascem novas gerações, pessoas nascem todos os dias. Portanto, é um luxo dizer: ‘bem, não podemos fazer nada’. A resignação é um luxo”.
Silvia Federici nasceu na Itália e há vários anos mora nos Estados Unidos. É feminista desde os anos setenta e recentemente conversou conosco para compreender e sacudir o mundo.
A entrevista é de Huáscar Salazar Lohman e Diego Castro, publicada por Zur e reproduzida por Desinformémonos, 16-08-2024. A tradução é do Cepat.
Diego Castro: Estamos aqui com Huáscar convidando para algumas conversas. O portal Zur está completando 10 anos. Este parecia um bom momento para nos perguntarmos que tempos são estes que vivemos, que de alguma forma também implicam uma mudança. Assistimos a múltiplas guerras, genocídios, crises climáticas, mas também a lutas muito importantes. Então, a primeira pergunta que queremos fazer é essa: para você, que tempos são esses que estamos vivendo?
Silvia Federici: Penso que é um tempo muito perigoso. São tempos muito difíceis. São tempos que decidirão o nosso futuro porque todas as forças políticas e econômicas do sistema capitalista estão concentradas numa guerra em múltiplas frentes. Não é uma guerra que se dá apenas com armas, com soldados, com paramilitares, mas também com medidas econômicas e políticas.
Aqui agora, nos últimos dias, nos Estados Unidos, não sei se vocês ouviram, por exemplo, que a Suprema Corte decretou que um presidente da República não será julgado por nada que faça em suas funções públicas. Veja, esse é um pequeno exemplo que nos mostra os cortes em qualquer direito constitucional, vemos essa vontade de nos expropriar em todos os níveis. Pode ser da terra, dos compromissos, dos direitos que conquistamos com muitas lutas, pode ser a garantia do futuro, de termos recursos adequados para nos sustentar.
Então, é um momento muito difícil. Acredito que este momento requer não apenas lutas isoladas, mas também é necessário criar grandes movimentos, conectados entre si, que tenham um terreno comum e que tenham uma visão de como construir outro sistema.
Huáscar Salazar: Silvia, este tempo que vivemos também o sentimos como um momento que paralisa, um discurso catastrófico que tende a nos sobrecarregar, como se estivéssemos vivendo o fim de tudo e que não há nada que se possa fazer. Como enfrentar esse sentimento de paralisia?
Acredito que este catastrofismo e esta sensação de paralisia são na verdade um luxo, porque as pessoas precisam seguir vivendo. Continuamente nascem novas gerações, pessoas nascem todos os dias. Portanto, é um luxo dizer: ‘bem, não podemos fazer nada’. A resignação é um luxo.
Penso que a perspectiva a partir da qual deveríamos nos mover seria a de que, naturalmente, não há garantias, não há seguranças, mas o importante é compreendermos e começarmos a nos organizar. Compreender quais formas de luta são possíveis e eficazes. Não é verdade que não se pode fazer nada. Em vários lugares o avanço da liderança capitalista pode ser travado.
É claro que se olharmos para o quadro geral, veremos um quadro muito negativo, mas isso não significa que não se pode fazer nada. Para mim significa que nos impõe novos imperativos, que nos faz repensar o que foi feito, como chegamos até aqui.
Entender como chegamos aqui é importante. Nos últimos dois anos, tenho-me confrontado com esta reviravolta negativa: a eleição de Milei, a eleição de Meloni na Itália, recentemente da direita na França. Por exemplo, quando fomos ao Brasil, vimos essa grande força dos evangélicos, que envolve muitos trabalhadores. Nessas igrejas se vê cada vez mais gente chegando, e me pergunto “como foi possível?”, perguntei na Itália, no Brasil. A resposta é sempre a mesma: “Bem, a esquerda não tem sido capaz de responder às reivindicações das pessoas”. No Brasil, me disseram: “A esquerda abandonou completamente as favelas há muito tempo”. Se você é uma pessoa que não tem recursos e mora em uma favela, e acontece alguma coisa – uma enchente, um desastre – não tem ninguém que possa socorrê-lo, apenas os pentecostais que estão aí, que o ajudam e que, naturalmente, uma vez que o ajudam também colocam condições.
Perguntei a companheiras da Argentina: “Como foi possível que Milei vencesse com o apoio dos trabalhadores, e não apenas dos patrões?” Elas me diziam as mesmas coisas: “As pessoas estavam tão exasperadas, tão angustiadas com a política da jubilosa esquerda, que pensaram que se fazia necessário uma mudança”.
Então, acredito que esse momento de derrota, que parece uma derrota e é uma derrota, não deve ser interpretado como uma impossibilidade ou uma inevitabilidade. Não era algo que não se podia evitar. Parece-me que há uma história para entender. É como aqui [nos Estados Unidos]: Trump, Trump, Trump. Ele é terrível, é um ditador, um homem que se permite dizer que se for eleito será um ditador, diz isso agora abertamente. Mas quando vemos a alternativa, quando vemos Biden e todos os compromissos que ele tem; além disso, a falta de visão, a fragmentação dos movimentos que não conseguiram se unir nesses anos, que estão muito fragmentados, que lutam, que há muitas divisões... Acredito que é hora de começar a pensar como sair dessa paralisia, que não é uma paralisia inevitável, não sei se me explico bem.
Diego Castro: Sim, porque em muitos países também temos aquela sensação de estarmos numa armadilha. Ou seja, nos momentos em que os progressismos, a centro-esquerda, estão no governo, há muita falta de expectativa porque não satisfaz os desejos das pessoas. Mas quando a direita volta ao governo, rapidamente se recoloca e a esperança está numa espécie de carrossel, de que um substitua o outro e assim sucessivamente. Como podemos sair disso?
Sim, penso que é verdade. Parece-me que os problemas na Argentina já se arrastam há muito tempo. Esta dívida que se acumulou, que agora o povo deve pagar, esta decisão de se comprometer com o Fundo Monetário Internacional. Acredito que este tenha sido um dos principais problemas, porque é um fato que empobreceu muita gente. Na prática, foi como subverter a possibilidade de autonomia do país.
Então, embora não possa falar do que está acontecendo na Argentina porque não conheço muito bem, posso falar dos Estados Unidos, por exemplo. Tantas necessidades, tantas reivindicações que há anos não são atendidas no nível popular. Existe um movimento feminista dominante que lutou pela igualdade, que lutou pela política de direitos, mas não lutou para mudar substancialmente as condições materiais de vida das pessoas.
Acredito que há aqui uma questão fundamental para entender: quais são os grandes problemas que a maioria das pessoas enfrenta, das pessoas que não têm capital, da maioria dos trabalhadores? São os problemas do território, da moradia, dos recursos para se sustentar, da falta de tempo, dos trabalhos de exploração. Aqui vemos isso muito bem. A grande crise que todas as famílias – e sobretudo as mulheres – vivem há muitos anos: a grande crise dos cuidados, da reprodução cotidiana da vida, do fato de não haver segurança em relação ao futuro. Estes são os problemas.
Li recentemente que nos Estados Unidos — e falo deste país porque é considerado o mais rico do mundo — a esperança de vida está diminuindo, não apenas para as mulheres, mas também para os homens, e também para os homens brancos, para os homens da classe trabalhadora. Há um aumento dos suicídios entre os trabalhadores brancos, de mortes por alcoolismo, por depressão, por drogas; o diagnóstico geral é que há um mal-estar, há infelicidade, há uma preocupação com o futuro. As pessoas não se sentem bem, não se sentem protegidas, sentem que a qualquer momento as suas vidas podem ser completamente destruídas, podem perder tudo o que têm e acabar dormindo na rua.
Acredito que essa dificuldade dos movimentos, de ocupar-se realmente com as condições materiais da vida, com a questão do futuro, a questão da segurança, é grave. Não a segurança como o capital a entende, que é a segurança militar, que é a segurança da polícia, que consiste em aumentar o aparato policial, mas da segurança em termos de garantir o acesso aos recursos necessários para nos mantermos, e também para escapar do isolamento, para escapar da crise na qual enfrentamos o sistema sozinhos.
Acredito que por baixo de todas estas vitórias da direita há uma grande rebelião contra um sistema que se autodenomina democrático, contra um sistema que se diz favorecer os direitos humanos, mas que coloca as pessoas numa situação terrível de precarização da existência, de precariedade da vida.
Mesmo para quem não tem doenças crônicas, quem tem um emprego precário, há a sensação de que a qualquer momento você pode perder tudo, essa sensação — que não é uma sensação, é uma realidade — de que a maioria não tem garantia para o futuro. Porque o sistema previdenciário, o sistema de garantias é progressivamente reduzido. Acredito que é esta grande crise fundamental que as pessoas associam a sistemas que se autodenominam partidos de centro-esquerda, de centro-esquerda; que ainda são muito pró-capitalistas, que ainda não acabaram com o investimento em armas e na guerra.
Vejam o que acontece com Israel e com a Ucrânia; têm o apoio, o investimento de milhões, bilhões de dólares, têm o apoio não só da direita, mas também da União Europeia, do Biden. Acho que é aí que reside o problema. É um problema enorme, não é um problema que vai se resolver facilmente. É um problema que não sei se conseguiremos enfrentar, mas se não conseguirmos, será um desastre muito grande por um longo tempo. Mas isso não significa que nada possa ser feito. Acredito que devemos entender o que está no fundo disso, dessa paralisia, dessa virada à direita. O que significa virar à direita? É uma espécie de revolta. O que há debaixo disso? Por que aqueles que não têm interesse em proteger o capitalismo, em proteger os ricos, que não têm interesse na acumulação de capital, votam nestas pessoas? É uma revolta, é uma espécie de protesto? Penso que deveria ser lido dessa forma.
Trata-se de entender quais são os problemas, colocar sobre a mesa os problemas reais, que é o problema de garantir a vida, do futuro, dos recursos, do isolamento, da doença, do trabalho de cuidado que não existe, da infância que enlouquece porque não há tempo para ela. Porque agora todos vivem com um celular e sem tempo para se conectarem, num contexto em que a militarização da vida, a presença de uma política onde a guerra é um fenômeno permanente, se traduz também numa cultura de violência que afeta todas as fases da vida, inclusive das crianças. Há poucos dias estive na Itália e me disseram que existe um grande problema que são os baby gangs, crianças que são violentas, que batem nos colegas, que roubam. Não porque precisem, não porque sejam pobres, mas porque é toda esta cultura.
Bom, o que quero dizer é que penso ser importante fazer uma análise de fundo.
Huáscar Salazar Lohman: Silvia, resgatando o que você dizia, uma vez ouvi você dizer: “o menos ruim é o pior”. Parece-me ser uma afirmação muito interessante e que faz muito sentido em diferentes contextos, não só porque podemos entender de outra maneira estas políticas implementadas com base no que é considerado “menos ruim”, mas também pelo que isso implica para as organizações sociais e os processos organizativos. Porque, em geral, optar pelo “menos ruim” tem significado processos de desorganização política em muitos cenários. O que pensa sobre isso?
Sim, creio que a questão não era optar pelo “menos ruim”, o problema era não ter criado uma outra alternativa. Ultimamente, me parece uma dança perversa, por exemplo, o que vivemos aqui nos Estados Unidos entre a direita ou a jubilosa esquerda ou o centro, que seria Biden, que está financiando o genocídio de Israel. Ele está adotando as mesmas políticas que Trump, da direita, em matéria de imigração e em todas as questões fundamentais.
Agora que se aproximam as eleições, Biden está fazendo coisas como cancelar a dívida de vários estudantes, uma grande campanha para buscar votos porque sabe que corre o risco de perder. [A entrevista foi realizada no início do mês de julho, antes da renúncia de Biden à corrida presidencial.] Mas se olharmos para toda a história, se olharmos para o que este Partido Democrata fez, veremos que, na realidade, precisam do Trump, precisam da direita. Uma vez que não foram capazes de satisfazer as necessidades fundamentais do povo, é só porque existe um monstro, porque existe um grande perigo, porque há fascistas ao virar a esquina, que as pessoas vão votar neles novamente.
Portanto, parece-me que esta alternativa não é uma alternativa que possamos aceitar. É uma alternativa que continua a destruir energias que deveriam ser utilizadas de forma diferente para criar alternativas, para criar movimentos que sejam capazes de se conectar. Por exemplo, por que não houve greves gerais diante do que aconteceu há dois dias, quando a Suprema Corte dos Estados Unidos deu poderes monárquicos aos presidentes do país? Deu-lhes poder monárquico dizendo que estão acima da lei! Quando governarem não serão afetados por nenhuma lei, é uma coisa muito estranha. Mas por que não aconteceu nada, não houve uma greve geral? Por que temos movimentos tão desempoderados? Penso que nisso reside o problema: as pessoas não se mobilizam porque perderam a confiança de que o governo seja capaz de fazer alguma coisa. Há uma paralisia porque não há alternativa.
Diego Castro: Como esses sentidos coexistem, Silvia, que as pessoas não têm expectativas de mudanças institucionais ou eleitorais – gerando o acúmulo de grandes frustrações –, com processos de auto-organização ou de luta? Porque, não importa quem governe, os processos organizativos não desaparecem no ar, sempre contribuem com coisas novas.
Acontece que agora, seja nos Estados Unidos ou na Europa, continuamente, em cada eleição, reduz-se o número de pessoas que vão às urnas para votar. Por exemplo, fala-se de uma fascistização da política na Itália, porque esta mulher [Meloni] — isto é muito interessante, embora falemos disso em outra ocasião, mas toda a merda vão fazer com as mulheres, são as mulheres que chegam ao poder: Le Pen, Meloni, a mulher no México [Scheinbaum], elas dão um rosto aceitável a uma política desastrosa. Bem, o que eu estava dizendo, [Meloni] foi eleita com 25% dos votos, mas apenas 40% da população foi votar. É muito estranho porque na Itália normalmente 90% dos eleitores iam votar. As pessoas percebem que não têm esperança. Portanto, o problema não é uma fascistização das pessoas, o problema é esta sensação de paralisia em que parece que nenhuma mudança pode ser feita, porque parece que não há alternativa.
Diego Castro: E a alternativa institucional parece ser a direitização, parece que é a única coisa que se viabiliza como alternativa...
Exatamente, e aqui acredito que os movimentos de esquerda têm muita responsabilidade. Esses dias estive na Itália e andei conversando com as pessoas; também comecei a ler coisas dos últimos anos, dos anos 70, a história do colapso do Partido Comunista. Um verdadeiro desastre, porque o Partido Comunista, que na Itália representa a esquerda há muito tempo – apesar de nos anos 70 existirem movimentos extraparlamentares –, mas o Partido Comunista assumiu milhares de milhões de compromissos com o capitalismo, também com o poder institucional internacional, com o capitalismo internacional, com os Estados Unidos. Veja, a Itália hoje é um país pequeno que tem 140 bases da OTAN. Eu não sabia disso, pensava que tinha umas 10 bases, o que já me parecia muito. Mas são 140; é o país do mundo que tem mais bases militares dos Estados Unidos, da OTAN.
Isto pode parecer um exemplo insignificante, mas como pode acontecer que um movimento de esquerda – e não estou falando apenas do Partido Comunista, estou falando dos movimentos extraparlamentares, que nos anos 70 estavam convencidos de que eram o movimento mais avançado –, nunca fez uma luta, nunca fez um protesto, nunca falou da colonização da Itália através de bases militares e através do posicionamento de bombas nucleares de norte a sul do país. Esse é um exemplo, mas acredito que muitos outros podem ser pesquisados em vários lugares.
Por exemplo, a esquerda nunca se preocupou com as condições perversas em que vivem milhões de mulheres que devem sustentar-se com o trabalho mal remunerado fora de casa, devem cuidar da casa, devem cuidar dos doentes, devem cuidar dos idosos; vivem em condições que não lhes permitem usufruir do tempo, o que reduz a sua esperança de vida. Porque é que nunca vimos um movimento de esquerda forte – e isto inclui muitos movimentos feministas – que tenha realizado uma verdadeira campanha sobre a necessidade de abordar toda a questão da reprodução, que é fundamental para a vida de muitas pessoas?
Há também as questões da guerra, do investimento militar – nos Estados Unidos começou agora um movimento abolicionista contra a polícia, o que é muito importante. Penso que devemos repensar: o que foi feito? Que alternativas foram apresentadas às pessoas? Quais têm sido as alternativas reais? Devemos compreender o que está acontecendo hoje para superar essa visão de que nada pode ser feito. Não é que nada possa ser feito, acho que os problemas são muito claros.
Vivemos, nas décadas de 1980 e 1990, uma desestruturação da economia, da política mundial, que mudou muitas coisas, destruiu muitas possibilidades. Tem sido a contrarrevolução em resposta à subversão social dos anos 1960, em resposta à subversão contra o colonialismo, à subversão contra o patriarcado, à subversão contra todas as medidas que o capitalismo utilizou ao longo dos séculos para nos organizar, para nos dividir, para nos explorar mais intensamente.
Durante este tempo vivemos a contrarrevolução e é um ataque muito forte. Mas como se respondeu a este ataque que precarizou a vida, que expropriou pessoas, que criou novas formas de divisão internacional do trabalho? Acho importante fazer o que em inglês se diz “go back to square one” (voltar à estaca zero), voltar ao ponto de partida para entender.
Houve um grande processo de desestruturação econômica, política, e também a guerra, a economia global — a chamada globalização ou neoliberalismo. Neste momento vivemos o seu mais recente desenvolvimento com a fascistização da política, da economia, da cultura. Então, neste contexto, é importante compreender o que foi feito? Qual foi a resposta? O que não foi feito?
Eu vejo isso em relação ao feminismo. Por exemplo, toda a questão da reprodução social foi colocada sobre a mesa pelas trabalhadoras domésticas. O discurso do cuidado chega à perspectiva feminista, chega à política feminista através da luta das trabalhadoras domésticas, e não através da luta das próprias feministas; elas estavam concentradas na luta pelo trabalho fora de casa, estavam concentradas na luta pela igualdade. Por exemplo, não vimos uma luta forte nos Estados Unidos contra a entrada das mulheres no exército. Pelo contrário, as lutas eram para que as mulheres entrassem no exército, para que os gays entrassem no exército, para que as pessoas trans entrassem no exército. Ser abertamente aceito no serviço militar foi considerado uma conquista.
Diego Castro: Esta situação acontece em muitas esferas da vida, no sentido de que, por exemplo, o esforço que as lutas feministas ou comunitárias colocam no cuidado da vida, muitas vezes se confunde com a questão da igualdade de acesso aos lugares. Então, você disse para voltarmos àquele ponto inicial onde começamos a nos perder. Mas também, qual é o ponto inicial a partir do qual podemos aprender com os processos políticos? Parece que quase sempre voltamos ao mesmo lugar ou pelo menos repetimos estratégias semelhantes, por exemplo, colocando a expectativa em alguma transformação momentânea político-eleitoral. Que pistas temos ou onde nos agarramos para olhar para isso?
Acredito que existem programas e mudanças sociais em vista dos quais é preciso se organizar. Por exemplo, esta questão da guerra. Como é possível o que está acontecendo agora na Palestina? É uma coisa terrível. Ouvi ontem que agora estão, pela segunda vez, expulsando milhões de pessoas com bombas, com carros armados, e as pessoas não têm para onde ir. Não só prenderam milhares e milhares de professores, médicos e enfermeiras; parece que quebram as mãos dos médicos, torturam-nos, deixam-nos nus e sem alimentá-los. Como isso é possível? Milhares e milhares foram encontrados em valas comuns, pessoas foram encontradas amarradas sem órgãos. Como é possível que algo assim esteja acontecendo?!
Devemos entender que todos vivemos um processo de desumanização. Aceitamos todos os dias, pouco a pouco, a barbárie da vida cotidiana. Por exemplo, quando você anda por Nova York encontra em cada esquina gente dormindo na rua, gente que não tem nada, que não tem casa. Agora eles são criminalizados e existe uma lei que os manda para a prisão. Então quando você passa na esquina, cada um de nós passa e não sabe o que fazer, mas isso impacta. É uma desumanização cotidiana, você vai se acostumando aos poucos a considerar os outros como lixo, como algo que não é da sua conta e que você não pode fazer nada. É uma lição contínua de impotência. Creio que isso nos acostuma, nos prepara para aceitar que na Palestina as pessoas são torturadas, mortas.
Tem também a questão de que vivemos o dia todo com o computador, com o celular. As pessoas andam pelas ruas com o celular na mão, é uma subordinação à tecnologia. O celular é uma droga.
Huáscar Salazar Lohman: Silvia, você acha que esse celular, mas também a saturação de informações, de fake news, as redes sociais, são um fator importante nos processos de desmobilização, de captura das mobilizações das organizações?
Sim, claro. Acredito que os celulares ganharam 200 anos para o capitalismo. As pessoas não se perguntam como são produzidos; são produzidos com guerra, com a matança de pessoas no Congo, é algo que precisa ser dito. A esquerda celebrou o celular, dizendo que com o celular milhares de nós vamos [nos manifestar], dentro de pouco tempo nos encontraremos. Lembro-me da Primavera Árabe, todo mundo com celular, sim, mas quanto tempo isso durou? Na realidade, são lutas que foram destruídas muito rapidamente. Elas duram um momento e depois, silêncio.
Também os autonomistas italianos disseram que a internet é uma nova forma de comuns, os comuns digitais. Esta celebração, como se fosse uma conquista do proletariado, os comuns digitais que permitem o uso de computadores e telefones. Mas, na realidade, é uma forma de nos isolarmos, de nos separarmos, de nos habituarmos a viver sem contatos materiais. E, claro, aceitamos tudo isto cegamente, porque as pessoas não se perguntam como é produzido um computador, como é produzido um celular. É um desastre ecológico.
Então, eu penso que há muitas coisas que não estão sendo questionadas. Por exemplo, a partir do internacionalismo. A esquerda perdeu o internacionalismo há muito tempo. Fala-se da Primavera Árabe, etc., mas não se fala de como se produzem os celulares, os computadores, quais são os rios de sangue que custa esta tecnologia. Como podemos falar do uso e não da produção?
Penso que há tantas coisas para analisar: como funciona este sistema capitalista internacional? O que permite que ele funcione? Quais são os seus mecanismos centrais, seus mecanismos vitais? A divisão internacional do trabalho, a hierarquia, os racismos, os patriarcados. O que realmente significa o empobrecimento e a desapropriação?
Entender qual é o plano do capital, que é um plano para excluir todos nós do acesso direto à terra, aos rios, às águas. O plano do capital é muito claro: restringir completamente o acesso à terra, à água e às árvores. Tudo isto deve ser controlado pelas grandes corporações, e todos nós [devemos nos confinar] nas cidades. Pela primeira vez na história da humanidade, a maioria da população mundial vive nas cidades. Estamos perdendo contato e acesso à terra. Quando o tivermos perdido completamente, haverá uma grande crise.
Tudo isto deve ser um tema de luta fundamental: não perder, reclamar, reconquistar o acesso à terra, não permitir que seja expropriada, porque do contrário se criará um mundo de refugiados, de pessoas que vivem em tendas. Mas se a moradia é agora um luxo, temos um proletariado que vive em tendas, um proletariado que deve emigrar daqui para lá. Eu sempre digo que a Palestina é o mundo. Dizem-lhe: “você não pode ficar aqui, você deve ficar lá; você não pode ficar lá, você deve ficar aqui”. Está acontecendo de uma forma diferente com tantos trabalhadores, que não sabem para onde ir, que morrem no Mediterrâneo, que morrem em barcos.
Acredito que devemos entender que não existem movimentos com uma visão de mudança sistêmica. A mudança sistêmica, claro, não é um programa de frente única, mas devem estar ligados. Devem mostrar quais são os mecanismos centrais que permitem ao sistema reproduzir-se apesar da luta, apesar de todos os limites. Acredito que se temos uma esperança é neste tipo de trabalho.
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“A resignação é um luxo”. Entrevista com Silvia Federici - Instituto Humanitas Unisinos - IHU