30 Julho 2024
Paolo Gerbaudo é pesquisador da Faculdade de Ciência Política e Sociologia, da Universidade Complutense, com passagem pelo King's College London. Em 2023, publicou, pela editora Verso, o livro Controlar y proteger: El retorno del Estado.
Para ele, a crise financeira de 2008 e a pandemia revelaram as deficiências do neoliberalismo e das inércias globais e, mais do que em uma transição, estamos em um novo mundo. A Pax Americana morreu e abriu passagem a um conflito entre blocos em que o Estado, com suas formas mais severas e brutais, volta a ocupar um papel central.
A entrevista é de Ibai Azparren, publicada por Naiz, 26-07-2024. A tradução é do Cepat.
Quando Donald Trump afirmou que “o futuro não pertence aos globalistas, mas aos patriotas”, anunciava o fim da globalização?
Esse discurso de Trump capturava algo da atmosfera dos avançados anos 2010, que era essa perda de confiança na globalização. A direita atribui esse globalismo aos progressistas, a Biden e ao Partido Democrático, na Itália. O Vox faz o mesmo jogo com Sánchez, na Espanha, quando na realidade são eles os globalistas e os aliados do poder financeiro.
No entanto, eles compreenderam que, ao menos publicamente, declarar-se a favor da globalização não é tão popular como era antes. As pessoas encontraram aspectos positivos na globalização, seja pelos produtos baratos ou pela possibilidade de viajar livremente, mas a sua desconfiança aumentou porque viram que as suas condições de vida e de trabalho pioraram.
Os discursos antiglobalistas da direita se tornaram uma forma de culpar os outros pelos seus próprios erros?
Sim. Na realidade, tentam tirar proveito apelando a interesses mais locais frente a forças invisíveis, impessoais, em nível global. E isso não é simplesmente uma coisa irracional. Afinal, a proximidade é a lógica de definição do político.
Parte da esquerda se converteu em um liberalismo muito superficial, que vê esta lógica de proximidade como algo que é intrinsecamente negativo, que leva ao nacionalismo, ao racismo, à discriminação. Contudo, isso não é verdade. Existem formas de identidade local que são abertas, inclusivas e solidárias. Existem formas de patriotismo que são as bases do republicanismo e do espírito democrático.
O ponto de inflexão da crise do neoliberalismo foi o que aconteceu em 2008?
Foi a primeira peça do dominó, que fez as outras caírem com atraso e sucessivamente. Demonstrou uma enorme disfuncionalidade do sistema econômico global e fez saltar pelos ares a perigosa ideia do mercado que se autorregula, sendo isto é pura ficção.
Naquele momento, falava-se do neoliberalismo zumbi, que sobrevivia a si mesmo e desenvolvia formas diferentes, mais autoritárias, mais austeras. Era um neoliberalismo que perdia seu elemento de desejo e de promessa, de marketing, de things can only get better, como dizia a canção da campanha do New Labour, de 1997, de que vamos nos tornar todos ricos e passar muito bem.
No meu livro, uma fonte de inspiração foi superar essa ideia de que estamos em uma transição pós-neoliberal. E envolvido um pouco por essa citação de Gramsci que diz que é o tempo dos monstros, enquanto o velho mundo está morrendo e o novo ainda está por nascer, busquei refletir que todas as transições terminam. Minha aposta no livro é dizer não, já chega de ficar nesse limbo, aceitemos que já estamos em um mundo novo.
Um mundo novo em que o Estado retorna...
Um mundo novo que é espantoso, em que o Estado retorna em todas as suas formas mais brutais, incluindo a guerra. Este mundo é a realidade que temos de encarar, porque, caso contrário, ficamos em um mundo de espelhos, no qual só ganhará a direita, que sabe se desenvolver nesse tipo de cenário.
O que aconteceu em 2008 e tudo o que veio depois geraram muita raiva. A Covid demonstrou que sob essa superfície de segurança, de rotina, havia magma, um lago vulcânico que estava pronto para explodir. E explodiu com a guerra na Ucrânia, com o enfrentamento entre os EUA e a China, e essa estabilidade da Pax Americana abriu passagem a um conflito entre blocos.
O Ocidente está mudando de posição em relação às regras que havia imposto, como se observa nas discussões sobre as barreiras alfandegárias?
Claro. Isso é o que nos diziam muitos economistas como Ha-Joon Chang, que destacava que o livre mercado era uma mentira que os estados hegemônicos do capitalismo contavam aos países em desenvolvimento, porque naquele momento lhes convinha. E agora, diante da China, somos nós os seguidores em muitos aspectos. Assim como no ciclismo, somos nós que vamos correndo atrás do líder.
Os subdesenvolvidos.
Somos subdesenvolvidos por culpa do neoliberalismo. O neoliberalismo destruiu a economia, pois provocou a ilusão de que o que conta é o dinheiro e que não importa onde é produzido. Isso nos levou a abandonar as produções navais, os estaleiros, a produção de baterias. Levou-nos a deixar tudo isto nas mãos da China, que aproveitou para se tornar um país líder em tecnologia.
E agora são solicitadas tarifas.
A fantasia do livre mercado levou a este desdobramento, e agora não podemos nos queixar porque a China jogou bem o nosso jogo. O que devemos reconhecer é que foi o jogo que fracassou. Agora, considero legítimo que países subdesenvolvidos como os nossos utilizem tarifas moderadas.
No entanto, penso que precisamos de uma economia social que priorize o interesse dos trabalhadores, com produtos acessíveis, bons e sustentáveis. Não proponho uma autarquia, nem um isolamento total, pois sempre haverá um mundo de intercâmbios comerciais. O problema é que o hiperglobalismo levou a uma dependência extrema, beneficiando apenas um pequeno grupo financeiro.
Voltando a 2008, as políticas de austeridade levaram à ascensão de vários partidos de esquerda antiestablishment, como o Podemos e o Syriza. Hoje, estão quase acabados. No entanto, observamos a ascensão da extrema-direita. Por que os primeiros fracassaram e os segundos triunfaram?
Houve falhas de política e de liderança, falhas de organização e até de caráter no caso de Tsipras, no sentido de prometer algo que não é possível cumprir. Aquele referendo que houve na Grécia e enganar o povo grego foram desastrosos para a credibilidade da esquerda. Esses movimentos foram muito importantes porque souberam capturar um entusiasmo popular e um desejo de mudança.
Fracassou-se, mas, claro, quando há fracassos em todos os casos, quer dizer que há algo mais profundo. E esse algo mais profundo é, por um lado, subestimar o nível de jogo do adversário. Por outro lado, é preciso considerar que tanto Meloni quanto Abascal são exércitos, não jogando com a assembleia ou com a espontaneidade. Estamos diante de um enorme nível de profissionalismo e de organização, com muito dinheiro por trás.
Portanto, houve uma espécie de inocência na esquerda. Se você é contra o sistema econômico, não pode ir para esse confronto com boas intenções. Precisa ter força para a organização e paciência. Então, penso que o imediatismo foi um erro. Acredito que faltou pensar de forma mais concreta qual era o projeto de país, a alternativa produtiva e de sistema econômico para dar às pessoas uma ideia de futuro que pudesse acompanhar esse discurso de mais longo prazo.
Por que a extrema-direita lidera, agora, esse discurso de defesa do Estado?
O capitalismo tem múltiplas facetas. Por um lado, existe um capitalismo orientado às exportações, competitivo em nível internacional e produtivo, que é a referência de centristas, liberais, de figuras como Macron e de grande parte da social-democracia liberal. Por outro lado, existe um capitalismo nacional, improdutivo e não competitivo, mas com inúmeros interesses devido à quantidade de postos de trabalho que abrange.
Este setor encontra proteção em uma parte da direita, que defende o pequeno proprietário e os pequenos negócios, que temem o grande capitalismo. Neste contexto, o Estado é visto como um protetor, seja através de tarifas ou de medidas de segurança frente às ameaças como a imigração, que é percebida como um perigo.
Ao passo que a esquerda...
Na esquerda, a partir de 68, dos anos 1970, passou a existir uma corrente libertária que naquele momento fazia sentido frente ao stalinismo e o burocratismo da social-democracia. No entanto, esta posição se transformou em uma espécie de neoliberalismo cultural, um “neoliberalismo para hippies” que impede uma reflexão estratégica sobre o poder e sobre o que Gramsci chamava de “fazer-se Estado”.
Segundo Gramsci, a classe trabalhadora deve assumir o controle de seu próprio destino, da história, criar uma classe dirigente e governar. A esquerda enfrenta dificuldades em assumir esta responsabilidade histórica.
Em outra entrevista, dizia que o populismo de esquerda é a melhor resposta ao populismo de direita. Isto não implica que a esquerda se renda à lógica e aos métodos da extrema-direita?
A definição de populismo depende de como é interpretado. Para mim, especialmente nos anos 2010, o populismo representava a rejeição popular ao projeto neoliberal. Durante aqueles anos, surgiu um forte sentimento de descontentamento e crítica à classe política. Isso, em certo sentido, era saudável.
Sou italiano e sigo obcecado por Gramsci, que falava de uma crise orgânica quando os laços entre representantes e representados são rompidos. Os cidadãos retiraram o seu apoio aos políticos tradicionais, criando uma fase de suspensão e transição em busca de novos líderes. O populismo daquela época refletia este momento de transição, no qual a velha classe política já não era aceita e surgia a necessidade de buscar ou criar novos representantes.
A direita resolveu esta crise criando uma nova identidade política que combinava o mercado capitalista com o nacionalismo, protegendo os interesses dos ricos. Ao contrário, a esquerda ficou dividida entre a nostalgia do passado e uma visão involuntariamente hiperliberal da política, e a consciência de que este mundo não pode mais ser recuperado e que é necessário construir um diferente.
Nas redes sociais, florescem discursos anarcocapitalistas que depois conseguem promover Javier Milei, por exemplo. Existe uma espécie de alergia ao Estado. Por quê?
Milei é o exemplo mais claro de uma tendência à rejeição do Estado. Parte da sociedade, principalmente a classe média cansada, vê o Estado como um intrometido ilegítimo que impõe impostos. Este discurso hiperneoliberal ressalta apenas os aspectos negativos do Estado e oculta a realidade de que mesmo os sistemas mais capitalistas dependem da intervenção estatal.
O neoliberalismo de Milei, baseado em memes e simplificações, é um sintoma da crise do neoliberalismo. Milei está destruindo serviços públicos essenciais para a economia. Seu discurso moral e de guerra cultural faz sucesso entre pequenos empresários e criptoinvestidores que creem não precisar do Estado, embora se beneficiem de seus serviços como estradas, polícia e bombeiros. Esta classe média arrogante e insatisfeita, que sente que lhe devem algo, é politicamente perigosa.
Falta uma cultura do Estado que o apresente como um motor de desenvolvimento. Não é que gostemos do Estado. O Estado pode ser um meio de opressão. O que nós, democratas, gostamos é do Estado democrático. Ou seja, o Estado como pilar de um sistema republicano de participação, envolvimento, coesão e solidariedade.
Nesse mundo de estados, qual é o papel desempenhado pelas nações que precisamente não contam com um?
É uma questão muito importante no contexto europeu, onde existem diferentes níveis de soberania, como nações sem Estado se relacionam com Estados multinacionais. E esta é uma questão muito difícil de resolver em um contexto de conflito democrático. Penso que a autodeterminação tem que ser a lógica em que essas questões se desenvolvem. Contudo, aceitando também que essa lógica não é tão simples como pode parecer. Cabe definir quais são as regras, o momento. E acredito também que qualquer processo de autodeterminação também tem custos.
Viemos de eleições europeias em que a extrema-direita alcançou quase 25% dos votos. Que futuro vislumbra para a União Europeia?
O futuro é preocupante porque não tem projeto. Não tem rota de saída para superar o impasse entre uma União Europeia que não sabe “fazer-se Estado” e Estados-nação que já não são, realmente, estados. Este vazio de poder e a falta de legitimidade criam uma situação explosiva, agravada pelo conflito militar próximo e uma aliança europeia desorganizada e sem coesão interna.
A direita de Meloni, com suas raízes no fascismo, é inquietante. No entanto, sua liderança não busca mudar o sistema econômico, mas, sim, perpetuar as atuais desigualdades e o caos para manter interesses particulares, usando sua cultura extremista mais como um truque estético do que como um verdadeiro projeto.
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“O Estado retorna com todas as suas formas mais brutais, incluindo a guerra”. Entrevista com Paolo Gerbaudo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU