12 Julho 2024
"Enquanto academias lotadas celebram um estilo de vida saudável e ativo, muitas vezes desconhecem a dura realidade das crianças que colhem açaí no Pará. A disparidade entre esses mundos evidencia a necessidade urgente de conscientização e ação para proteger os direitos e o futuro dessas crianças", escreve José Ribamar Bento da Silva Júnior, em artigo publicado por EcoDebate, 10-07-2024.
José Ribamar Bento da Silva Júnior é doutorando do PPGDAM/NUMA/UFPA. Mestre em Ciências Ambientais e Desenvolvimento Sustentável pelo Programa de Mestrado em Uso Sustentável de Recursos Naturais em Regiões Tropicais da UFPA/ITV. MBA em Gestão Ambiental pela Fundação Getúlio Vargas. Psicanalista pelo Instituto Brasileiro de Psicanálise Clínica. Graduado em Engenharia Florestal pela Universidade Federal Rural da Amazônia.
A complexa realidade da região ribeirinha, no Pará, onde a colheita de açaí é parte central da economia local, mas também envolve significativas questões sociais, econômicas e ambientais.
É comum a prática de envolver crianças na colheita do açaí. P. F. J., um garoto de 13 anos, é um exemplo disso. Ele e outros meninos enfrentam desafios físicos e riscos durante a colheita, como o calor intenso e o perigo de quedas, que podem resultar em lesões graves. A atividade começa antes do amanhecer para evitar o calor excessivo, refletindo uma dinâmica de trabalho difícil e perigosa.
Boa parte das comunidades ribeirinhas dependem fortemente da produção de açaí, com o Pará sendo o maior exportador mundial da polpa da fruta. A demanda globalizada impulsiona práticas de trabalho onde o tempo é crucial para maximizar os rendimentos, valorizando-se a habilidade dos jovens pela sua leveza, reduzindo danos às palmeiras e contribuindo para o lucro familiar. No entanto, essa realidade contrasta com os limites estabelecidos pela legislação brasileira, como a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente, que visam proteger os direitos das crianças e adolescentes crianças e adolescentes contra o trabalho prematuro e perigoso.
A falta de dados oficiais sobre o trabalho infantil na colheita de açaí é um desafio adicional na proteção desses garotos trabalhadores, com subnotificação e complexidade na fiscalização em comunidades rurais dispersas. Isso evidencia um descompasso entre a legislação e a prática observada, impactando não apenas a segurança e o bem-estar das crianças, mas também a dinâmica econômica e ambiental local. Histórias individuais, como a de P. F. J. e sua família, ilustram um panorama complexo onde as necessidades econômicas frequentemente prevalecem sobre os direitos fundamentais das crianças, perpetuando um ciclo que demanda atenção urgente das políticas públicas e da sociedade civil.
Além dos impactos sociais, a participação precoce na colheita do açaí compromete gravemente o desenvolvimento educacional das crianças.
Estudos mostram que crianças envolvidas no trabalho enfrentam significativas dificuldades escolares, como atrasos no currículo e desafios de alfabetização. A sobreposição de horários entre a colheita matutina e as aulas prejudica seu desempenho escolar, enquanto a necessidade de contribuir com a renda familiar pressiona muitas famílias a priorizarem o trabalho sobre a educação formal. Isso é exemplificado na vida de vários adolescente com repetidas reprovações na escola devido às exigências do trabalho na colheita de açaí desde tenra idade.
A pressão socioeconômica sobre as famílias também é evidente no caso da dona M. R. C., que começou a trabalhar na colheita de açaí aos dez anos. Agora, aos 37 anos, ela enfrenta a realidade de ver seus filhos abandonarem precocemente a escola devido às dificuldades financeiras. Para muitas famílias, a renda do Bolsa Família e o trabalho informal se torna vital para o sustento básico, exacerbando um ciclo de exclusão educacional e vulnerabilidade social.
Apesar do destaque na produção e comércio do fruto, a cadeia produtiva do açaí na Região Norte apresenta lacunas significativas em rastreabilidade e fiscalização, criando espaço para a exploração e o trabalho infantil entre os produtores da região.
Em 2023, as exportações paraenses de açaí atingiram 8,2 mil toneladas, com um valor de exportação de US$ 27,74 milhões, conforme relatório do Núcleo de Planejamento e Estatísticas da Secretaria de Desenvolvimento Agropecuário e da Pesca do Pará (SEDAP). No primeiro quadrimestre de 2024, o estado exportou 4,2 mil toneladas de açaí, marcando um crescimento de 86,92% em relação ao mesmo período do ano anterior.
O açaí conquistou o mundo. Na economia local ribeirinha do Pará, a colheita é uma atividade arriscada e fisicamente exigente. O valor pago pelo açaí aos ribeirinhos muitas vezes não compensa os riscos significativos que eles enfrentam durante a colheita. Expostos a perigos como quedas, calor intenso e animais peçonhentos, os trabalhadores ribeirinhos colocam sua saúde e segurança em risco por uma remuneração que raramente reflete a gravidade dos desafios e sacrifícios envolvidos.
A remuneração, embora fundamental para muitas famílias, muitas vezes não compensa aos riscos e esforços envolvidos. Sr. L. N. G., um apanhador de açaí, exemplifica isso, tendo passado por duas cirurgias decorrentes de acidentes durante o trabalho. Seu filho, agora assume parte das responsabilidades para sustentar a família, ilustrando os complexos dilemas enfrentados pelas famílias dependentes do açaí para sobrevivência.
Globalmente, a produção de açaí do Pará é importante para a economia regional, mas enfrenta críticas. Iniciativas de conscientização e fiscalização têm buscado abordar essas questões, visando garantir práticas de trabalho éticas e sustentáveis na cadeia de produção do açaí. A falta de transparência e a invisibilidade dos ‘peconheiros’ (apanhadores de açai) destacam desafios significativos nesse processo, exigindo uma maior conscientização dos consumidores sobre a origem e as condições de produção do açaí que consomem.
Enquanto academias lotadas celebram um estilo de vida saudável e ativo, muitas vezes desconhecem a dura realidade das crianças que colhem açaí no Pará. A disparidade entre esses mundos evidencia a necessidade urgente de conscientização e ação para proteger os direitos e o futuro dessas crianças.
Em suma, a colheita de açaí, no Pará, é um microcosmo de questões complexas que envolvem direitos humanos, desenvolvimento econômico e sustentabilidade ambiental.
A necessidade urgente de políticas públicas eficazes, que equilibrem a segurança financeira das famílias com o acesso universal à educação e condições de trabalho dignas, é evidente para minimizar as desigualdades persistentes e promover um desenvolvimento mais justo e sustentável na região.
ANDI Comunicação e Direitos. Operação de órgãos federais flagra trabalho infantil na colheita do açaí em cidades do Pará. Disponível Aqui, Acesso em: 30 jun. 2024.
CINTRA, A. L. Trabalho infantil e a indústria do açaí: a triste realidade que precisa ser contada. Disponível aqui, Acesso em: 29 jun. 2024.
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NUZZI, Vitor. Com flagrantes de trabalho infantil, cadeia produtiva do açaí fica na mira da fiscalização até o final da colheita. Disponível Aqui, Acesso em: 30 jun. 2024.
O ANTAGONISTA. Exploração infantil e riscos ocultos por trás da indústria global de açaí. Disponível aqui, Acesso em: 29 jun. 2024.
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Trabalho infantil e impactos socioeconômicos: a realidade da colheita do açaí no Pará - Instituto Humanitas Unisinos - IHU