03 Julho 2024
Estariam as baterias de veículos elétricos alimentando o genocídio nas florestas da Indonésia? A ONG britânica Survival International, especializada nos direitos dos povos indígenas, tem soado o alarme sobre este assunto há um ano. Cena do crime: a ilha de Halmahera, no arquipélago das Molucas, onde dois mundos se chocam frontalmente.
A reportagem é de Rémy Bourdillon, publicada por Reporterre, 02-07-2024. A tradução é do Cepat.
Nessas florestas primárias vive o povo Hongana Manyawa, parte do qual (300 a 500 indivíduos, segundo a Survival) é "não contatado", ou seja, não tem nenhum contato com o resto do mundo – exceto algumas trocas com os 2.500 membros sedentários da tribo e entraram em conflito com os outros aldeões.
Sob seus pés, o solo rico em níquel atraiu a empresa francesa Eramet. Com a empresa chinesa Tsingshan, esta criou a Weda Bay Nicke (WBN, da qual a Eramet é proprietária de 39% das ações) com o objetivo de escavar a “maior mina de níquel do mundo”, exigindo a derrubada de 6.000 hectares de florestas. Segundo a associação Canopée, 2.000 ha já foram desmatados.
“Os Hongana Manyawa consideram-se parte integrante da floresta e percorrem um vasto território para coletar e caçar o que precisam para viver”, explica Callum Russell, gerente regional da Survival na Ásia. No entanto, a ONG estima que 75% da concessão da Eramet (que totaliza 45 mil ha) se sobrepõe a este território. O que cria atritos: um vídeo publicado pela Survival mostra dois homens vestidos com tangas brancas abordando funcionários de uma madeireira com paus na mão para manifestar seu descontentamento.
A Survival International teme que a presença da Eramet (da qual o Estado francês é acionista de 27%) prive os Hongana Manyawa das condições necessárias à sua sobrevivência, ou acabe por lhes transmitir doenças para as quais não têm imunidade. Isto tornaria a Eramet “pelo menos culpada de trabalhar [para o seu extermínio]”, escreveram numa carta aberta especialistas acadêmicos sobre o crime de genocídio.
A gigante francesa do níquel, que nega qualquer violação dos direitos humanos, não quis conceder entrevista ao Reporterre, mas enviou-nos vários documentos explicando a sua posição. A empresa, que encomendou um estudo a um sociólogo indonésio em 2023, considera que existem apenas nove Hongana Manyawa na sua concessão e diz ter adotado um plano para que os seus funcionários tenham interações respeitosas com estes nativos. “Isso não é verdade, responde Callum Russell. Existem centenas deles, como reconheceu um relatório anterior encomendado pela Eramet em 2013”.
Reporterre pôde consultar este relatório, redigido pela empresa CCCS, que na verdade lista vários grupos de Hongana Manyawa isolados – portanto, incapazes de dar o consentimento livre e informado à exploração do seu território, conforme previsto nas Cartas Internacionais sobre os Povos Autóctones. Mas a Eramet faz outra interpretação deste relatório, argumentando a falta de “certeza” sobre a presença destes grupos.
A Eramet declara ainda que almeja a certificação IRMA, a mais exigente do setor da mineração em termos de respeito pelo ambiente e pelos direitos humanos – embora a sua má gestão ambiental lhe tenha rendido um boletim vermelho do Ministério do Ambiente em 2023. “Não sei como vão conseguir isso”, brinca o pesquisador Arianto Sangadji, que há anos acompanha a corrida do níquel e está preocupado com a “marginalização” de todos os nativos de Halmahera. Entre expropriações e chegadas massivas de trabalhadores indonésios e chineses, perdem a sua cultura e até a sua língua (suplantada pelo indonésio), como observou um relatório da Climate Rights International em janeiro.
Algumas centenas de quilômetros mais a oeste, Sulawesi é o verdadeiro epicentro global do níquel. Esta ilha situada nas fronteiras de quatro placas tectônicas – o que lhe confere uma forma muito particular – goza de uma biodiversidade extraordinária, marcada por um número impressionante de espécies endêmicas... mas poucos cuidados são tomados para protegê-la diante do rápido desenvolvimento do setor de baterias.
Normalmente, o ecologista francês Vincent Romera gosta de explorar as florestas primárias de Sulawesi. Mas ele volta cada vez mais consternado com suas aventuras: “Da forma como é produzido atualmente, o níquel é uma verdadeira carnificina ambiental, afirma este gerente de projeto da associação Humy. A transição energética do Ocidente está causando um grande ecocídio no Sudeste Asiático. E me irrita que seja vendida como uma solução milagrosa nas televisões e nos jornais”.
Em julho, ele e uma equipe de cientistas viajarão para um lago temporário na montanha porque espera encontrar ali um peixe que ainda não foi descrito, uma situação comum em Sulawesi. “Este local está sob a espada de Dâmocles, uma vez que se encontra numa concessão de mineração de 4.800 ha concedida em fevereiro de 2024”, lamenta.
A ONG Mighty Earth estima, de forma conservadora, que pelo menos 75.000 hectares de floresta (e, portanto, sumidouros de carbono) já foram desmatados na Indonésia para extrair níquel. E o ritmo está acelerando: em 2023, foi desmatada uma área duas vezes maior do que em 2020. Outros meio milhão de hectares estão sob concessão, portanto em risco de desaparecimento. A maior concessão, a da empresa brasileira Vale, cobre apenas 70.000 ha.
Como mostram as fotografias aéreas, as empresas estão desmatando até o litoral, apesar de a lei indonésia proibir atividades de mineração num raio de 100 m da costa. Para fazer isso, elas exploram uma lacuna jurídica: de acordo com a Mighty Earth, esta regra só entra em vigor quando as jurisdições locais adotam planos de uso da terra, o que 90% dos distritos indonésios ainda não fizeram. Como resultado, grandes quantidades de lama vermelha fluem para o oceano, impedindo os pescadores de ganhar a vida e destruindo uma vida marinha inestimável. “Estamos no coração do Triângulo de Coral e, em alguns lugares, há mais de um metro de sedimentos nos recifes de coral”, lamenta Vincent Romera.
Em termos de reflorestamento, embora algumas empresas mineradoras (como a Eramet em Halmahera) elogiem os seus esforços, Arianto Sangadji observa que “poucas empresas cumprem as suas obrigações. O monitoramento realizado pelo governo não é suficientemente rigoroso”. Vincent Romera descreve “solos escavados ao longo de 30 m, estéreis durante séculos” porque a camada superficial do solo não foi preservada para ser substituída após a exploração.
Para processar o minério, foi criado o gigantesco Parque Industrial Morowali (Imip), que emprega 80 mil pessoas em 3 mil hectares, na província de Sulawesi Central. O processo ali utilizado, denominado HPAL, produz grandes volumes de resíduos tóxicos contendo metais pesados, como o arsênico. Em 2020, uma empresa gestora de resíduos do Imip apresentou um pedido para descarregar 25 milhões de toneladas por ano no mar, através de um gasoduto com vários quilômetros de extensão. Os resíduos deveriam cair em um poço de 1.000 m de profundidade e ali permanecer retidos, uma estratégia arriscada, pois não leva em conta a ressurgência da água fria que pode transportar contaminantes de volta aos recifes de coral.
“Juntamente com os moradores e estudantes, protestamos e conseguimos cancelar este projeto”, diz Moh Taufik, líder local da associação ambientalista Jatam. Mas o quebra-cabeça da gestão de resíduos continua sem ser resolvido, alerta: “O Imip sacrificou 600 ha de terras para armazenar estes resíduos, mas não é feito de acordo com as regras da arte”. Este armazenamento “a seco” não é adequado para uma área sujeita a uma estação chuvosa intensa como Sulawesi, confirma Arianto Sangadji.
Para operar as fábricas, muitas centrais elétricas a carvão também devem ser construídas – em última análise, a sua capacidade poderá atingir 5 GW só nas instalações do Imip, o que equivale a todas as centrais elétricas a carvão do México ou do Paquistão. De acordo com o Ministério da Energia, o consumo de carvão pelo setor industrial indonésio quadruplicou entre 2021 e 2022. Além de envenenar o ar dos moradores locais, isto leva a um desmatamento suplementar na ilha de Bornéu, onde o carvão é extraído, e a enormes emissões de gases com efeito estufa. “A pegada de carbono do carro elétrico é amplamente subestimada”, conclui Vincent Romera.
Para limitar (um pouco) os danos, o ecologista da Humy – que não questiona a necessidade de se afastar dos combustíveis fósseis – gostaria que a União Europeia, grande consumidora de carros elétricos, fosse proativa. “A Lei EUDR [anti-desmatamento] foi aprovada no ano passado para proibir a importação de produtos, como óleo de palma ou cacau, caso gerassem desmatamento após dezembro de 2020, lembra. Isto força a Indonésia a fazer cumprir as suas próprias leis. E se fizéssemos a mesma coisa com o níquel?”
É nos solos lateríticos da Indonésia, típicos de climas tropicais, que encontramos as maiores jazidas de níquel do mundo. Localizadas perto da superfície, a uma profundidade de 10 ou 15 m, só podem ser exploradas através da derrubada da floresta. Somente o arquipélago asiático representa 55% da produção mundial.
O níquel é usado principalmente na fabricação de aço inoxidável, cuja produção continua crescendo. Mas se a procura por este metal explodiu recentemente é porque é utilizado nos cátodos das baterias de automóveis elétricos, para torná-los mais potentes.
Cansado de ver seu níquel sendo transformado no exterior, o governo indonésio decretou embargo às exportações de minério bruto em 2014. Desde então, choveram investimentos chineses, coreanos e europeus sobre a Indonésia, fazendo crescer a toda velocidade os mega parques industriais onde o minério é processado. O objetivo é abastecer os principais fabricantes de automóveis do mundo, da Volkswagen à Tesla, e assim acompanhar os objetivos de transição energética do Hemisfério Norte.
A Eramet também planejava construir uma enorme unidade de refinamento de níquel em cooperação com a gigante química alemã BASF na ilha de Halmahera, mas a empresa francesa anunciou na semana passada que estava abandonando este projeto. Isto, no entanto, não põe em causa a exploração da sua mina de níquel através da WBN.
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Indonésia. Por causa dos carros elétricos, um povo corre o risco de ser exterminado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU