21 Junho 2024
Uma investigação de um ano da Mongabay rastreou várias dezenas de atividades ilegais ou suspeitas na Terra Indígena Arariboia e em seus arredores nos últimos anos, sobretudo exploração madeireira, desmatamento e criação de gado, e revelou um claro aumento nos crimes ambientais na região em meados de 2023, o ano mais mortal para os indígenas Guajajara da Arariboia desde 2016.
A reportagem é de Karla Mendes, publicada por Mongabay, 19-06-2024.
Gado está sendo criado ilegalmente na Terra Indígena Arariboia, na região amazônica, em meio a um número recorde de assassinatos de indígenas Guajajara. A legislação brasileira proíbe pecuária comercial em terras indígenas, mas uma investigação da Mongabay que durou um ano revela que grandes áreas na Terra Indígena Arariboia foram usadas para a criação de gado em larga escala em meio a um número recorde de assassinatos de indígenas Guajajara da região.
A Mongabay viajou para a Arariboia em agosto de 2023, onde testemunhamos a criação de gado dentro da terra indígena. Coletamos as coordenadas geográficas, analisamos imagens de satélite e realizamos análises espaciais para investigar as áreas de pastagem e fazendas e criamos um banco de dados de arrendamentos de terras, denúncias de criação ilegal de gado, extração de madeira e caça ilegais, além das bases de dados assassinatos dos indígenas Guajajara na região.
Nossa investigação rastreou várias dezenas de ocorrências ilegais ou suspeitas e constatou um claro aumento nos crimes ambientais na região em meados de 2023, o ano mais mortal para os indígenas na Arariboia desde 2016. Com quatro Guajajara assassinados e três sobreviventes dos atentados contra suas vidas, os crimes do ano passado igualaram o número de assassinatos em 2007, 2008 e 2016, quando quatro indígenas Guajajara da Arariboia também foram mortos, o número mais alto desde que o primeiro assassinato na terra indígena foi registrado em 1992. O recorde de assassinatos na Arariboia contraria os dados gerais do país, que registrou em 2023 o menor número de homicídios desde 2010, de acordo com dados do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP). O Maranhão foi um dos cinco estados que registraram um aumento no número de assassinatos.
As revelações da investigação mostram um padrão de assassinatos direcionados a indígenas Guajajara em meio à expansão da pecuária e da exploração madeireira ilegais na Arariboia e arredores. As áreas que concentram os números mais altos de assassinatos coincidem, em sua maior parte, com as imediações das atividades rastreadas, com as operações da Polícia Federal para combater a exploração madeireira ilegal e com os embargos do Ibama por desmatamento ilegal. Não há evidências de que os proprietários das serrarias e fazendas tenham ligação com os assassinatos.
Além dos crimes dentro da Arariboia, nossa investigação também rastreou ilegalidades e atividades suspeitas nas áreas circundantes à TI. Embora a localização das fazendas ao redor da Arariboia não seja ilegal, encontramos desmatamento em desacordo com o Código Florestal dentro dessas áreas. Em julho de 2023, foi detectado desmatamento ilegal nas margens da cabeceira do rio Buriticupu, do qual o povo Guajajara depende para sua subsistência, a menos de um quilômetro da Arariboia. Um mês antes, uma pista de pouso sem licença começou a ser construída a cerca de 17 km de Arariboia e a 4 km da vizinha Terra Indígena Governador.
Em ambos os casos, o desmatamento ocorreu em áreas protegidas por lei, crime previsto na lei de crimes ambientais do país. O desmatamento ilegal e a pista de pouso estão ligadas a quatro fazendas que também se sobrepõem umas às outras, o que é um indício de conflitos sobre a propriedade da terra. Uma das fazendas também invadiu a Terra Indígena (TI) Governador.
Os fazendeiros que se declararam proprietários de três fazendas próximas à Arariboia, identificadas nesta investigação, foram processados por crimes ambientais, grilagem de terras e lavagem de dinheiro, acusações que eles negam.
A Secretaria de Meio Ambiente do Maranhão (SEMA) confirmou que não foi encontrado processo de licenciamento para a pista de pouso e disse que a Secretaria de Agricultura Familiar analisará o Cadastro Ambiental Rural (CAR) — documento obrigatório autodeclarado usado para fins ambientais — das quatro fazendas que se sobrepõem à área da pista de pouso “o mais rápido possível” e que o CAR de uma das fazendas foi cancelado anteriormente.
A Arariboia “tem um grande problema porque ela não tem os seus contornos bem protegidos”, diz Hilton Melo, procurador federal focado em questões indígenas baseado em São Luís. “Essa terra sofre muito assédio, muitos ataques, tanto no sentido sul-norte quanto no sentido oriental-ocidental”.
A Floresta Amazônica cobre cerca de um terço do Maranhão. Segunda maior terra indígena do estado, a Arariboia é uma ilha verde que se estende em um mar de desmatamento por mais de 413 mil hectares, mais de três vezes o tamanho de São Paulo.
A região sudoeste da Arariboia, onde a equipe da Mongabay visitou no ano passado, fica na fronteira do Cerrado, uma vasta savana tropical que abrange vários estados no leste do país e é uma das partes mais ameaçadas do território.
Demarcada pelo governo federal em 1990, a Arariboia é protegida por lei contra a entrada de invasores. No entanto, as denúncias de criação ilegal de gado, extração de madeira e caça ilegal feitas pelos indígenas Guajajara e pelas autoridades são comuns.
A análise espacial dos dados do Ibama revela que 15 fazendas foram embargadas nas fronteiras da Arariboia; algumas estão a uma curta distância da terra demarcada para uso indígena. O embargo é um instrumento usado pelos órgãos ambientais para interromper atividades que estejam prejudicando o meio ambiente ou que violem as leis e os regulamentos ambientais. A maioria das fazendas ao redor da Arariboia foram embargadas por desmatamento ilegal em áreas protegidas e foram impedidas de realizar atividades agrícolas e pecuária.
Foto: Andrés Alegría | Mongabay
Do total de fazendas embargadas, nove estão localizadas nas regiões de Amarante e Arame: cinco e quatro, respectivamente. O Ibama embargou seis dessas fazendas por desmatamento ilegal em áreas protegidas, duas delas estão impedidas de criar gado e outra não pode desenvolver nenhuma atividade.
Vários fazendeiros ligados ao desmatamento ilegal nos arredores da Arariboia foram objeto de ação judicial ou investigação por supostos crimes ambientais e de corrupção, que todos eles negam. Esses processos estão em andamento em tribunais estaduais ou federais no Maranhão.
De acordo com a base de dados do CAR e análise espacial, uma das fazendas localizadas na área desmatada ilegalmente às margens do rio Buriticupu está em nome do fazendeiro Francisco Alves Ferreira, que é alvo de uma ação judicial por suposta grilagem de terras, de acordo com os documentos da ação que tramita no Tribunal de Justiça do Maranhão em Amarante, vistos pela Mongabay. Em seu depoimento no processo, Ferreira negou as acusações. Uma audiência preliminar foi marcada para 25 de junho. Ferreira não respondeu a vários pedidos de resposta da Mongabay.
Outra fazenda ligada ao desmatamento ilegal teve seu CAR registrado pelo fazendeiro Antônio José Alves de Sousa. A fazenda invade a Terra Indígena Governador, a apenas 4 km da Arariboia, segundo análise espacial dos polígonos da fazenda no CAR, o que também foi confirmado pela SEMA. Sousa aluga um imóvel para a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) em Amarante há uma década. Sousa não respondeu a vários pedidos de resposta da Mongabay.
A área desmatada também se sobrepõe a uma fazenda que tem o CAR registrado por Adirceu Alves da Silva, cuja fazenda foi anteriormente embargada por desmatamento ilegal pelo Ibama. Silva também está sendo processado pelo Ministério Público Federal do Maranhão por crimes ambientais. Silva não respondeu a vários pedidos de resposta da Mongabay. Ele negou as acusações em seu depoimento; o processo está em andamento no Tribunal Regional Federal em Imperatriz.
Em posicionamento por e-mail à Mongabay, a SEMA disse estar ciente da sobreposição da fazenda de Sousa com a TI Governador. Segundo a SEMA, o status do Cadastro Ambiental Rural (CAR) da fazenda está “pendente” desde 2021, depois que os ministérios do Meio Ambiente e da Agricultura determinaram que os CARs que se sobrepõem a terras indígenas devem ficar pendentes.
A SEMA disse que a Secretaria de Agricultura Familiar (SAF) analisará “em breve” os CARs das outras três fazendas onde nossa investigação encontrou desmatamento ilegal na cabeceira do rio Buriticupu. Segundo a SEMA, foi feita uma busca em seu sistema de todas as fazendas com mais de 300 hectares que se sobrepõem a terras indígenas no Maranhão e que o levantamento está em análise na secretaria “para o devido enquadramento legal e abertura de processo administrativo para notificação dos proprietários e para direito à ampla defesa”.
Na área da pista de pouso não licenciada, o CAR de três fazendas foram registrados pelo empresário de transporte de cargas rodoviárias Fabricio Lima Gouveia, que é alvo de uma ação penal do Ministério Público do Estado do Maranhão por crimes contra o patrimônio, apropriação indébita e lavagem de dinheiro. Gouveia e seu advogado não responderam a vários pedidos de resposta da Mongabay. Em seu depoimento, ele negou as acusações; o processo tramita no Tribunal de Justiça em Amarante.
O líder indígena Paulo Paulino Guajajara, filho de José Maria Paulino Guajajara, foi assassinado em uma emboscada por madeireiros em 2019. José Maria afirma que sua mãe e seu cunhado também foram mortos por madeireiros anos antes. Ele diz que as invasões nas áreas localizadas nas fronteiras da Arariboia vêm ocorrendo há vários anos. Em resposta, há uma década, os Guajajara criaram uma rede para defender a região chamada Guardiões da Floresta — Paulo era um guardião.
Primeiro, diz José Maria, forasteiros invadiram a área com plantações e depois venderam a terra para pecuaristas. A Constituição Brasileira proíbe o comércio de terras indígenas. Imagens de satélite mostram que a área onde José Maria mora foi desmatada em 2016 e, em algumas áreas próximas, ocorreu antes.
A sua aldeia é cercada por grandes áreas de pastagem com muitas cabeças de gado. Duas porteiras bloqueiam a passagem na estrada sem pavimentação que leva à aldeia. Imagens de satélite mostram que 6,5 hectares foram desmatados ao lado da aldeia entre junho e julho de 2016. Em frente, do outro lado da estrada, a análise aponta para o desmatamento antes de 2016, com construção de casas já em 2015. Não há imagens de satélite disponíveis anteriores a 2015.
“Eles [os fazendeiros] não querem mais que a gente tire a palha, não querem que nós, índios, andemos para o outro lado mais”, diz José Maria sobre a área com pastagem para gado ao redor da sua aldeia. Além de serem impedidos de retirar palha da área para cobrir as casas nas aldeias, ele também reclama que o gado das fazendas passa por debaixo das cercas e destrói sua horta, fundamental para o sustento de sua família.
A presença de gado ilegal dentro da Arariboia, dizem os Guardiões, também é impulsionada por uma estratégia de cooptação, por meio da qual os indígenas Guajajara são persuadidos por fazendeiros não indígenas a arrendar a terra para pastagem. De acordo com os Guardiões, homens não indígenas que se casaram com mulheres Guajajara também trouxeram gado para o território, aumentando o assédio de alguns Guajajara pelos lucros que os negócios ilegais de terras podem trazer. O arrendamento de terras indígenas também é proibido pela Constituição.
Os “Guardiões da Floresta” Paulo Paulino Guajajara (à esquerda) e Laércio Guajajara (à direita) posam para uma foto antes de sair em patrulha na Terra Indígena Arariboia, no Maranhão, em 30 de janeiro de 2019. (Foto: Karla Mendes | Mongabay)
“[Os fazendeiros] chegam aqui na comunidade e muitas vezes falam para o índio: ‘quer arrendar um pedaço de terra para criar gado? ‘É bom pra vocês’. Mas, na realidade, não é. É só enganar, roubar a consciência dos guerreiros daqui”, diz o guardião Laércio Guajajara, apontando para estacas de madeira novas em folha, prontas para serem usadas como cercas dentro da Arariboia. “Aqui, dá pra ver que futuramente, onde nós andamos, nessa serra, vai estar tudo destruído por gado, que nem essa parte do cerrado”.
Laércio diz que os fazendeiros pensam “que são donos do território” e acreditam que “têm mais direitos do que os índios” por terem melhor condições financeiras. “Pagam para devastar o território para plantar capim, para cercar, botam arame e com isso nosso território está sendo encolhido cada dia mais, está descontrolado o avanço de pastagem”.
Ele aponta para a paisagem contrastante dentro e fora da Arariboia. “Do lado dos brancos, quase não tem árvores. Do nosso lado aqui — mesmo que queimou um pouco nesse verão — mas mesmo assim, é muito diferente: só o verde para cá”.
Os conflitos fundiários na região da Arariboia decorrem de uma brecha na legislação que exige uma zona de amortecimento de 10 km e requisitos mais rigorosos para o licenciamento ambiental para empreendimentos limítrofes a unidades de conservação, mas não em torno de territórios indígenas.
O Decreto n.º 99.274/90 define zonas de amortecimento para áreas protegidas conhecidas como unidades de conservação, que incluem parques nacionais e estaduais. De acordo com o decreto, as atividades nas áreas vizinhas devem ser aprovadas pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), mas essa restrição não foi estabelecida para terras indígenas.
O Brasil é signatário de tratados internacionais que exigem consulta prévia e consentimento de comunidades indígenas e povos tradicionais para projetos que possam afetá-las diretamente. Seguindo essas determinações, o governo federal geralmente estabelece zonas de amortecimento e estudos de impacto socioambiental como parte do processo de licenciamento para grandes projetos, como barragens e hidrelétricas. Entretanto, as atividades agropecuárias passam por um processo de licenciamento simplificado que fica a cargo dos estados, que não exige consulta prévia nem zonas de amortecimento.
Por causa dessa brecha na legislação, a localização das fazendas ao redor da Arariboia não é ilegal. Porém, se houvesse uma zona de amortecimento de 10 km ao redor da Arariboia, crimes ambientais em seus arredores poderiam ter sido evitados, afirmam as autoridades. A análise de imagens de satélite mostra que cerca de 30 mil hectares de vegetação nativa foram desmatados em um raio de 10 km das fronteiras da Arariboia entre 2008 e 2023, de acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Levando em conta todos os dados desde 1988, quando o INPE começou a rastrear o desmatamento, a perda de floresta nos arredores do território totalizou 188.998 hectares.
Em dezembro, o Maranhão aprovou a Lei n.º 12.169, apelidada de “lei de grilagem” pelos críticos, que aumentou em 12,5 vezes — de 200 hectares para 2.500 hectares — o tamanho das terras públicas ocupadas há mais de cinco anos que podem ser regularizadas.
Uma ação questiona a constitucionalidade da lei no Supremo Tribunal Federal. Caso a lei não seja derrubada, o Ministério Público e ativistas ambientais temem o agravamento dos conflitos fundiários e aumentar ainda mais a violência no estado.
É um “raciocínio equivocado” pensar que a pecuária e o agronegócio não têm impacto sobre as terras indígenas, diz Ciclene Maria Silva de Brito, superintendente do IBAMA no Maranhão. “Como é que tu tira aquela vegetação que é similar do lado [da terra indígena], bota uma outra, precisa botar insumos ali e não vai ter impacto?”, diz Brito.
Entre 1991 e 2023, 81 indígenas Guajajara foram assassinados no Maranhão, mais de dois terços do total de assassinatos de indígenas em todo o estado, de acordo com dados do Conselho Indigenista Missionário e da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Nenhum dos autores dos crimes foi julgado.
Quase metade desses assassinatos (38) ocorreu na Arariboia, segundo os dados. Seis Guardiões da Floresta foram mortos, segundo o povo Guajajara. A maior parte dos assassinatos (26) ocorreu nos arredores das cidades vizinhas de Arame e Amarante.
No início de janeiro de 2023, houve duas tentativas de assassinato de indígenas Guajajara da Arariboia que foram baleados na cabeça, perto da cidade de Arame. No final de janeiro de 2023, um indígena Guajajara e um funcionário da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) também foram mortos na Arariboia. Em 13 de junho desde ano, um indígena Guajajara morreu após ser atropelado perto de Arame, os Guardiões disseram à Mongabay.
Os Guardiões dizem que enfrentaram ameaças, inclusive tiroteios, em sua luta para defender a Arariboia contra invasores. A obrigação constitucional de proteger as terras indígenas é do governo federal, mas os Guardiões afirmam que tiveram que assumir a defesa da Arariboia com suas próprias mãos devido à ausência de proteção territorial efetiva pelo governo federal.
A Constituição diz que os territórios indígenas são demarcados para posse permanente e usufruto exclusivo dos povos indígenas, visando garantir a autodeterminação, a autonomia e a proteção de seus direitos, bem como sua participação ativa na gestão e preservação desses territórios.
Foto: Andrés Alegría | Mongabay
“Olha o tanto de gado aí”, diz o guardião da floresta Olímpio Iwyramu Guajajara, apontando para o gado a poucos metros dos limites da Arariboia. “Essas coordenadas a gente vai usar como um trabalho de inteligência dos Guardiões, para poder levar ao conhecimento das autoridades competentes, pra ver se resolve ou multa, ou manda o cara reflorestar novamente aquela mata ciliar da margem da nascente do rio Buriticupu”.
A Mongabay construiu um banco de dados com as coordenadas de nosso trabalho de campo na Arariboia e as coordenadas registradas em fotos e vídeos pelos Guardiões para documentar os crimes ambientais dentro da terra indígena e em seus arredores. O banco também conta com coordenadas incluídas em denúncias às autoridades pedindo as devidas providências e as coordenadas dos crimes ambientais encontradas nos processos judiciais analisados para a investigação.
Além de realizar uma análise aprofundada no banco de dados construído, analisamos imagens de satélite e realizamos análises espaciais em áreas-chave onde testemunhamos ou recebemos denúncias de crimes ambientais. Além disso, analisamos os locais dos assassinatos dos indígenas Guajajara da Arariboia e cruzamos essas informações com o nosso banco de dados e com os informações dos embargos do Ibama e das operações da Polícia Federal de combate à extração ilegal de madeira na região obtidos pela Mongabay.
Nossa investigação encontrou um padrão entre os assassinatos e as denúncias de crimes ambientais na Arariboia e arredores: a maioria das mortes ocorreu nas imediações das cidades de Amarante e Arame, locais críticos das operações da Polícia Federal, das áreas embargadas pelo Ibama e do monitoramento dos Guardiões contra a exploração de madeira ilegal e pecuária ilegal nos arredores da Arariboia. Não há evidências que liguem a violência aos empresários dessas atividades.
A análise das imagens de satélite da pista de pouso não licenciada mostra que a construção começou em junho de 2023. A pista de pouso se sobrepõe a terras públicas no Sistema de Gestão Fundiária (SIGEF), do governo federal, o que pode ser um indício de grilagem de terras, segundo as autoridades. A pista de pouso é uma das muitas construídas na Amazônia nos últimos anos que ONGs e pesquisadores associaram à mineração de ouro e ao agronegócio.
A análise espacial mostra que a pista de pouso se sobrepõe ao CAR de quatro fazendas que também se sobrepõem parcialmente umas às outras, incluindo suas áreas de preservação permanente e reservas legais, a parte da vegetação nativa que os proprietários de terras são obrigados a deixar intocada, conforme determina o Código Florestal.
Como a maioria dos estados, o Maranhão não divulga informações sobre os indivíduos que fizeram registros no CAR, alegando questões de sigilo por se tratar de informações pessoais. Mas dados obtidos pela Mongabay através de sua rede de fontes de alto escalão revela os fazendeiros por trás dos registros.
A maior parte da pista de pouso se sobrepõe à Fazenda Mangueira, cujo CAR foi registrado em 2015 pelo comerciante Gilberto Holanda dos Santos, que é alvo de processos judiciais por supostos pagamentos de anuidades não efetuados ao Conselho Regional dos Representantes Comerciais no Estado do Maranhão (Corema). Ele também é presidente do Conselho de Ministros Evangélicos da cidade de Açailândia e se candidatou a vereador pelo partido Cidadania em 2020; a Fazenda Mangueira não foi incluída em sua declaração de bens para a campanha. Segundo o Tribunal Superior Eleitoral, os bens declarados pelos candidatos devem incluir bens em seu próprio nome, como casas, apartamentos, fazendas e veículos. Santos não respondeu a vários pedidos de resposta da Mongabay nem apresentou defesa no processo de cobrança de dívidas que está em andamento no Tribunal Regional Federal em Imperatriz.
Em 2023, Fabricio Lima Gouveia registrou o CAR de outra Fazenda Mangueira, que cobre quase exatamente a mesma área da fazenda de Santos. Empresário do setor de transporte de cargas rodoviárias, Gouveia fez uma doação de R$ 1 ao ex-presidente Jair Bolsonaro para sua campanha de reeleição em 2022. Em 2021, Gouveia também registrou um CAR com duas fazendas, Porto Seguro e Nova São Pedro, que se sobrepõe à pista de pouso a leste e a oeste — a área central é ocupada pelas Fazendas Mangueiras registradas por Santos e Gouveia.
Em 2022, Gouveia registrou outro CAR para a Fazenda São Pedro e a Fazenda Nova, que se sobrepõem às Fazendas Porto Seguro e Nova São Pedro no lado leste, cobrindo aproximadamente metade da área da pista de pouso.
A SEMA informou que o CAR da Fazenda São Pedro e Fazenda Nova foi cancelado.
A ação do Ministério Público do Estado do Maranhão contra Gouveia por crimes contra o patrimônio, apropriação indébita e lavagem de dinheiro teve origem em um boletim de ocorrência feito em 2017 por uma empresa de criação, abatedouro e venda de produtos e subprodutos bovinos para atacado e varejo. A empresa afirma que Gouveia era o gerente de 22 fazendas e que uma auditoria constatou que ele havia cometido “fraude com cifras milionárias” em vendas de gado ao trocar animais de 10 a 11 arrobas por 5 a 6 arrobas. Em seu depoimento no inquérito policial, Gouveia negou as acusações, dizendo que a transferência de animais foi realizada com autorização verbal da empresa, acrescentando que sua renda provém da compra e venda de gado e de sua empresa de transporte. Quando perguntado se já esteve preso, ele disse que já foi processado criminalmente no Tocantins, mas nunca foi preso.
Em 2017, os promotores disseram que Gouveia usou o dinheiro obtido em negócios fraudulentos de gado para comprar veículos e fazendas, incluindo a Fazenda São Pedro e a Fazenda Nova — registradas sob um de seus três CARs que se sobrepõem à pista de pouso, que foi cancelada. “Evidente que tal prática configura crime de lavagem de capitais”, escreveu o promotor de Justiça Eduardo André de Aguiar Lopes. Gouveia e o advogado que o representa no processo não responderam a vários pedidos de resposta da Mongabay.
Em uma declaração enviada por e-mail, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) disse que o CAR é um documento autodeclaratório e “constitui-se em ferramenta de gestão ambiental, não tendo relação com o ordenamento territorial”, referindo-se à pergunta da Mongabay sobre os quatro CARs na área da pista de pouso que se sobrepõem a terras públicas no sistema SIGEF.
As questões relativas à base de dados do CAR, acrescentou o INCRA, devem ser encaminhadas ao gestor do sistema, o Serviço Florestal Brasileiro. No entanto, os registros do CAR são comumente usados pelos fazendeiros como um instrumento para reivindicar a propriedade das terras e também para obter financiamento bancário para seus negócios, conforme já amplamente divulgado em denúncias do Ministério Público, ativistas e pela imprensa.
Imagem de drone mostra a destruição causada pela criação de gado a menos de um quilômetro da fronteira da Terra Indígena Arariboia. (Foto: Associação Indígena Ka’aiwar dos Guardiões da Floresta da Terra Indígena Arariboia)
A cabeceira do rio Buriticupu foi excluída do processo de demarcação da Arariboia. A área, que pertence ao estado, foi posteriormente ocupada por fazendas que fazem fronteira com a terra indígena; o desmatamento nas margens do rio ocorreu a menos de um quilômetro da Arariboia. “Isso aqui é grilagem em nosso território”, diz o guardião da floresta Olímpio Iwyramu Guajajara.
O Código Florestal Brasileiro determina a preservação de uma faixa de terra com vegetação nativa na margem dos rios, onde o desmatamento é proibido, mas as margens do Buriticupu próximo à fronteira da Arariboia foram desmatadas por trás de uma fileira de árvores altas em frente à fazenda.
Imagens de drones e análises de imagens de satélite mostram que o desmatamento de 19,4 hectares na cabeceira do Buriticupu ocorreu em julho de 2023, pouco antes de nossa visita em agosto — uma área de 15,8 hectares foi desmatada a menos de um quilômetro do rio. Imagens de satélite mostram algumas áreas desmatadas já em 2015, com a intensificação do desmatamento em outubro de 2021 e entre maio e novembro de 2022.
A análise da Mongabay mostra que a área desmatada em julho de 2023 atingiu reservas legais e áreas de preservação permanente, o que é ilegal de acordo com o Código Florestal e a lei de crimes ambientais. Análise espacial mais detalhada revelou que a área desmatada ilegalmente se sobrepõe ao CAR de quatro fazendas, um exemplo da má gestão do sistema de terras do Maranhão, de acordo com o Ministério Público.
Haroldo Paiva de Brito, promotor de Justiça especializado em conflitos agrários no Maranhão, diz que o sistema de gestão de terras do estado é “extremamente tumultuado” e que há “uma série de fragilidades” no controle fundiário. “O Estado do Maranhão ainda não tem noção do acervo de terras de sua propriedade”, diz Brito, que também é diretor das Promotorias de Justiça de São Luís.
Todas as terras no Brasil eram de propriedade pública, explica o promotor, mas ao longo dos anos, desde a independência, foram aprovadas leis que regulamentaram a transferência de terras do domínio público para o privado.
“Então, o que acontece hoje? O Estado do Maranhão não sabe onde estão as terras devolutas, aquelas que têm que ser devolvidas ao Estado”, diz o promotor. “E não sabe ainda como suas terras foram parar nas mãos de determinados proprietários”.
“É um verdadeiro caos”, acrescenta.
Uma das fazendas bem próxima às fronteiras da Arariboia é a Fazenda Bezerra, cujo CAR foi registrado por Francisco Alves Ferreira, conhecido como Assis, que foi preso por posse ilegal de armas em 2022, de acordo com a imprensa local, e foi processado por crimes contra o patrimônio e esbulho possessório (grilagem de terras) no mesmo ano. O processo, que está em andamento no Tribunal de Justiça em Amarante, foi baseado em denúncias de um vizinho que acusa Ferreira de invadir suas terras e vendê-las a terceiros sem sua autorização. Em seu depoimento em junho de 2023, Ferreira negou as acusações, dizendo que não conhece o autor da denúncia e que nunca trabalhou com a venda ou loteamento de terras.
O fazendeiro vizinho também relatou que Ferreira contratou um topógrafo para fazer o georreferenciamento da área e regularizar sua propriedade junto ao Instituto de Colonização e Terras do Maranhão (Iterma), alegando que a terra era devoluta. Cinco lotes teriam sido registrados em nome de familiares de Ferreira, e o caseiro do vizinho que morava na área teria dito que se sentia ameaçado pelas ações dele, acusa o vizinho. Em seu depoimento, Ferreira disse que conhece o topógrafo e já o contratou para fazer medições em suas fazendas, mas nenhuma delas faz fronteira com a terra do denunciante. Ele disse que possui três fazendas, entre elas a Fazenda do Bezerra — onde encontramos desmatamento ilegal nas margens do rio Buriticupu — e nenhuma delas tem documentos de propriedade. Ferreira não respondeu aos vários pedidos de resposta da Mongabay.
A Fazenda Bezerra se sobrepõe quase completamente ao CAR da Fazenda Boa Esperança, registrada por Arnom Nascimento Ferreira, filho de Francisco. O imóvel não tem “título de domínio” e “não pode ser vendido, doado ou alienado”, de acordo com dados do SIGEF. Arnom não respondeu aos vários pedidos de resposta da Mongabay.
Os CARs dessas duas fazendas também se sobrepõem a outra Fazenda Bezerra, registrada por Adirceu Alves da Silva, que foi embargada pelo Ibama em 2018 por desmatamento ilegal. Silva também está sendo processado pelo Ministério Público Federal do Maranhão (MPF) por crimes contra o meio ambiente, patrimônio genético e flora. Em seu depoimento em dezembro de 2019, Silva disse que não cometeu nenhum crime ambiental em sua propriedade e que o desmatamento em questão ocorreu antes de ele comprar a fazenda, há cerca de cinco anos. O fazendeiro disse que o Ibama esteve em sua fazenda e pediu que ele baixasse a altura do açude, requerimento que ele cumpriu.
A ação penal teve origem em 2018, a partir de denúncias anônimas feitas por um não indígena em nome de lideranças Guajajara sobre a devastação de uma área de preservação permanente nas margens da cabeceira do rio Buriticupu, próximo a Amarante. Após vários atrasos nas diligências solicitadas pelo MPF em Imperatriz desde 2018, em outubro de 2022 a Polícia Federal realizou um levantamento aéreo que comprovou a destruição da vegetação nativa nas margens da cabeceira do rio em dois locais.
Em setembro de 2023, o procurador federal Thomaz Muylaert de Carvalho Britto denunciou Silva criminalmente por danificar a área de preservação permanente “com vontade livre e consciente” ao construir um açude na nascente do rio Buriticupu para um sistema de irrigação em plantações de milho e melancia. O procurador disse que a conduta do fazendeiro “se amolda perfeitamente” à Lei de Crimes Ambientais. “Resta comprovado que o denunciado praticou conduta criminosa por meio da destruição de nascente de rio, sem licença ou autorização da autoridade competente”. Silva não respondeu aos diversos pedidos de resposta da Mongabay. O processo criminal está em andamento no Tribunal Regional Federal em Imperatriz.
A quarta fazenda, Fazenda Campo Verde, que teve o CAR registrado por Antônio José Alves de Sousa, invade parte da Terra Indígena Governador. Sousa aluga um imóvel no Maranhão para a Funai desde 2014, com dispensa de licitação; os valores recebidos em uma década somam cerca de R$ 160 mil, segundo dados do Portal da Transparência. A propriedade abriga a Coordenação Técnica Local (CTL) da Funai em Amarante. Desde 2015, Sousa também aluga um imóvel para o Tribunal Regional Eleitoral do Maranhão (TRE-MA) em Amarante.
Em uma declaração por e-mail, a Funai disse que segue todos os trâmites de licitação para contratos de aluguel estabelecidos pela Advocacia-Geral da União. “Não há entre esses requisitos nenhuma exigência de pesquisa relacionada a crimes ambientais, tão pouco certidão negativa com esse fim, restando inviável a pesquisa e/ou desclassificação de fornecedor quando este atende todos os critérios de habilitação”. A Funai, porém, não mencionou nenhuma providência após tomar conhecimento das revelações da Mongabay de que a fazenda de Sousa invade a TI Governador.
Em declaração enviada por e-mail, o TRE-MA disse que o contrato de aluguel com Sousa “encontra-se regular, sem nenhuma pendência formalizada até esta data” e que foi prorrogado e vai até outubro de 2024.
A área desmatada nas margens da cabeceira do Buriticupu, próximo a Amarante, está localizada na área de transição entre o Cerrado, a savana de maior biodiversidade do mundo, e a Floresta Amazônica. Enquanto as taxas de desmatamento na Amazônia diminuíram em 62,2% no ano passado, a perda de vegetação no Cerrado aumentou em 67,7%, com o Maranhão tendo a maior taxa de desmatamento pela primeira vez, o equivalente a 331 hectares perdidos.
Com 1,11 milhão de hectares desmatados, o Cerrado ultrapassou a Amazônia em 2023 e se tornou o bioma mais devastado do país, de acordo com dados recentes divulgados pelo MapBiomas, uma rede de ONGs, universidades e empresas de tecnologia que inclui o Google. De acordo com os dados, a agricultura e a pecuária são os principais vetores de pressão do desmatamento, com mais de 97% da perda de vegetação nativa nos últimos cinco anos.
A criação de gado ao redor da Arariboia também provocou a contaminação da água, afirmam os Guardiões.
A destruição da cabeceira do rio Buriticupu, localizada em área hoje ocupada pela pecuária, provocou assoreamento e a redução do nível do rio, acabou com os peixes, e contaminou a água, diz Olímpio. “Já não tem mais peixe nele, os fazendeiros do lado já desmataram tudo. E o veneno que eles usam para matar o mato das pastagens, na hora que chove, vai tudo para o rio”.
Laércio alega que os fazendeiros permitem que seus animais defequem no rio, do qual os povos indígenas dependem como principal fonte de água potável.
“Quando os parentes bebem lá pra baixo, eles adoecem. Dá diarreia, outros tipos de doença, febre”, diz ele, pedindo a coleta de amostras de água para análise. “Porque ninguém sabe o que tem dentro dessa água hoje em dia. Porque antigamente ninguém adoecia. Hoje em dia, não pode beber mais”.
Em declaração enviada por e-mail, o Ministério da Saúde disse que a unidade da Sesai responsável pela Arariboia realizou análises da qualidade da água para verificar a contaminação microbiológica em várias aldeias. Os resultados indicam que 99,2% das amostras coletadas atenderam aos padrões microbiológicos de potabilidade (ausência de Escherichia coli), demonstrando que “não há contaminação microbiológica da água para consumo humano”.
O ministério também informou que, conforme estabelecido pelas diretrizes para monitoramento da qualidade da água para consumo humano em aldeias indígenas, orienta-se que os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) façam coletas mensais da água para avaliação dos seguintes parâmetros: turbidez, pH, cor, coliformes totais e cloro residual livre. Segundo o ministério, até o momento o DSEI Maranhão não recebeu nenhum relato formal sobre possível contaminação da água por uso de fertilizantes e agroquímicos na região de Amarante. “Caso haja denúncia ou suspeita, o Ministério do Meio Ambiente e o Ibama podem realizar essa análise específica em relação a substâncias químicas inorgânicas que representam risco à saúde, como agrotóxicos”.
A criação de gado nos arredores de Arariboia também provocou o aumento da demanda de extração de madeira dentro da TI para fazer estacas para cercas. “Porque ninguém está tirando a estaca ali para mandar para outro estado, é para ser usado por aqueles fazendeiros mesmo. Agora, a dificuldade é fazer essa ligação, entendeu? Tipo assim, essa madeira que foi tirada bem aqui, essa estaca, foi colocada na fazenda de fulano”, diz Brito.
Entre maio e agosto de 2023, 40 hectares foram desmatados na Arariboia, mais do que o dobro do mesmo período em 2022, com destaque para os meses de julho e agosto, de acordo com o Instituto Socioambiental (ISA).
A criação ilegal de gado dentro da Arariboia é consequência da extração ilegal e descontrolada de madeira no território durante muitos anos, afirmam as autoridades e os Guardiões.
“A madeira e a atividade pecuária, elas andam juntas”, diz Alexandre Soares, procurador federal especializado em questões ambientais baseado em São Luís. “A atividade madeireira, ela vem num primeiro momento. Em seguida, se implanta a atividade pecuária nessas áreas que foram, digamos assim, limpas [desmatadas]”.
Vários municípios ao redor da Arariboia têm como principal meio econômico a extração de madeira, que é “o maior problema da região”, diz Sandro Jansen Castro, superintendente regional da Polícia Federal no Maranhão.
Em 2023, a Polícia Federal realizou sete operações contra atividades madeireiras ilegais dentro e nos arredores da Arariboia, junto com o Ibama e a Funai. Durante as operações, 15 pessoas foram presas, 54 serrarias foram destruídas ou suspensas, 38 equipamentos usados para beneficiamento de madeira foram destruídos ou apreendidos, e 2.374 metros cúbicos de madeira serrada foram apreendidos. O valor dos bens apreendidos ou bloqueados totalizou cerca de R$ 2,6 milhões, de acordo com informações obtidas pela Mongabay.
Duas operações que abrangeram as regiões de Amarante e Arame foram responsáveis pela maior parte dos números: 75% do valor total de bens apreendidos ou bloqueados, 81% da madeira apreendida, sete prisões e 42 serrarias destruídas ou suspensas.
“Se eu tenho 20 empreendimentos que não têm licença, trabalhando com madeira e no entorno eu tenho várias terras indígenas, com certeza, está saindo dali”, diz Brito, solicitando a atuação do município no combate às ilegalidades “porque senão fica uma luta muito desigual”.
Até o momento, nenhuma operação foi feita para combater o gado ilegal na Arariboia. “Como é que esse gado entra dentro da reserva? Quem autoriza isso?”, pergunta Castro, acrescentando que a questão exige uma apuração rigorosa.
Uma operação para retirar o gado ilegal da Arariboia está planejada para o primeiro semestre de 2025, diz Marcos Kaingang, secretário nacional de direitos territoriais indígenas do Ministério dos Povos Indígenas (MPI). Antes da operação propriamente dita, ele diz, é necessária uma avaliação completa da área-alvo, além de um levantamento preciso do número de cabeças de gado, cujas estimativas variam de 500 a mil. “E essa é uma ação que a gente vai lá, vai tirar tudo que tem que tirar”, diz Kaingang, “e deixar o efetivo de segurança pública dentro da terra indígena”.
Este ano, nenhuma operação foi realizada na Arariboia por falta de recursos, diz o secretário. Ele diz que estão em andamento negociações para obter recursos para operações de contenção nos próximos meses nas áreas mais críticas “para que não haja o alastramento de mais gado no interior do território e mais desmatamento”.
Em declaração por e-mail, a Funai disse que houve uma redução nos últimos anos nas taxas de corte raso e desmatamento em áreas de regeneração da Arariboia, juntamente com uma redução nas taxas de incêndios florestais. Porém, houve aumento “nos índices referentes à degeneração de área”.
A Funai acrescentou que detectou “atividades ilícitas que se apresentam de forma recorrente”, destacando como um dos maiores problemas “a extração ilegal de madeira na TI, a serrarias nas cidades de entorno, e a presença de gados e pastagens no local, bem como indícios de práticas de arrendamento de áreas dentro da TI”.
De acordo com a Funai, há “dificuldade em delimitar as atividades relativas à prática ilegal de arrendamento para pastagem e aquelas referentes à criação de gado pelos próprios indígenas [para subsistência]”, e solicitou um levantamento detalhado da situação.
A criação ilegal de gado e outros crimes ambientais dentro da Arariboia são impulsionados pela pressão do agronegócio, da exploração madeireira e da urbanização em torno do território, afiram as autoridades.
“Se eles [madeireiros e invasores] conseguem entrar, eles fazem um dano tão grande, que para aquele ambiente se recuperar, vão dezenas de anos”, disse Brito. “Quando eles entram, eles também caçam, às vezes, eles tocam fogo. Às vezes, eles tocam fogo para espantar os Awá. Então, é um dano no ecossistema. É um dano na forma de vida também dos índios, que foi o objetivo principal da manutenção daquela área”.
Os Awá são caçadores-coletores que vivem em isolamento voluntário nas profundezas das florestas da Arariboia e são considerados o grupo indígena mais ameaçado do planeta, segundo a ONG Survival International.
Ao contrário dos Awá, os Guajajara do Maranhão têm estado em contato com a sociedade externa desde 1615, seu primeiro encontro registrado com os colonizadores europeus. Ao longo dos séculos, eles foram submetidos a proselitismo forçado por missionários, escravidão, doenças infecciosas, perseguição, conflitos e secas extremas que devastaram a terra.
Ramo da família Tupi-Guarani, eles se autodenominavam Tenetehara, mas no processo de migração passaram a ser chamados de Guajajara no Maranhão; os que foram para o estado do Pará são hoje chamados de Tembé. Esse contato com os não-indígenas ao longo dos séculos foi marcado por vários massacres dos Guajajara e pela devastação de suas terras. Hoje, há cerca de 10 mil indígenas na Arariboia.
A criação de gado ilegal na Arariboia está na mira das autoridades. O Ibama e a Polícia Federal, junto com o Ministério dos Povos Indígenas e a Funai, têm coletado informações sobre essa ilegalidade nos últimos anos.
Mas, de acordo com Brito, do Ibama, são necessários dados mais robustos. “É uma coisa mais elaborada do que a madeira, porque tu vai ter um animal vivo, tu vai ter a questão sanitária, tu vai ter que notificar os proprietários antes de fazer a ação”, diz Brito. “Então, ela é um pouco mais minuciosa. Mas ela também é bastante efetiva. E o Ibama, em termos nacionalmente, já está com um bom know-how nesses trabalhos de retirada de gado de terras indígenas”.
A prática de arrendamento de terras para a pecuária comercial em territórios indígenas é “totalmente ilegal, é proibido”, diz Melo, o procurador federal em São Luís focado em questões indígenas. “A gente não consegue desvincular da ilicitude um arrendamento feito em terra indígena. Por mais que tenha a participação de indígenas, a prática precisa ser severamente repelida, porque ela vai de encontro com a política ambiental de proteção desses territórios”.
Brito diz que o gado tornou-se um “problema sério” que alimenta a divisão nas comunidades, pois uma minoria de indígenas é tentada pelo dinheiro que os fazendeiros oferecem para converter suas terras em gado, o que dá aos fazendeiros uma porta de entrada para uma exploração mais ampla.
Os órgãos de licenciamento locais também devem adotar procedimentos mais minuciosos, acrescenta ela. “Como é que eu licencio um empreendimento, uma atividade econômica no limite na terra indígena e não ouço a Funai?”.
Mesmo que uma atividade seja licenciada, isso não significa que ela seja legal, diz Brito; o Ibama está examinando as licenças para ver se elas estão de acordo com as regulamentações federais. “Não é só a licença, existe todo um critério por trás para sustentar aquela licença, o que a gente está observando é que não está sendo levado em consideração por alguns entes que licenciam”.
“Esse assédio da região, essa pressão que esse entorno está provocando no interior da terra indígena precisa ser melhor gerido pelo poder público”, diz Melo, o procurador especializado em questões ambientais. “Não apenas pelo governo federal, mas também entendemos que o governo estadual tem uma forte responsabilidade”.
A terra ao redor da Arariboia pertence ao Maranhão, mas em algumas áreas o estado delegou a responsabilidade de licenciamento aos municípios, acrescenta Brito. Um dos requisitos para a emissão de uma licença ambiental é a análise do CAR. “Eles nem analisaram o cadastro e já deram a licença”, diz ela. “Para eu estar regular ambientalmente, eu tenho que preencher requisitos, para só assim sair uma licença. Então, se eu não preencho aqueles requisitos, aquela licença é válida?”.
Os Guardiões da Floresta em um curso de capacitação na aldeia Juçaral em setembro de 2023. (Foto: Ingrid Barros | Mongabay)
Como acabar com o gado ilegal e os crimes ambientais em Arariboia? As autoridades entrevistadas pela Mongabay são unânimes: é necessário um plano de ação contínuo dentro e nos arredores da TI para garantir que o território não seja consumido pela exploração madeireira e pelo gado.
“Não é algo simples e prático, somente ir lá e fazer uma ação de retirada de gado e combate ao desmatamento e ir embora”, diz Kaingang, do MPI. É por isso que as várias operações realizadas anteriormente “nunca conseguiram, de fato, eliminar o problema”, diz ele.
“Assim como o desmatamento e as serrarias estão todos em torno da terra indígena, os donos do gado também estão ali”, diz ele. “A porta de entrada é o desmatamento para outras ilegalidades. O gado é um desses elementos que se agrega ali”.
Para acabar com esses crimes, Kaingang diz que as ações precisam ser mais coordenadas com o estado do Maranhão para enfrentar “todo esse cenário caótico” que propicia todas essas irregularidades. “Esse é o nosso grande gargalo, porque combater a ilegalidade do interior da terra indígena já é um desafio, mas a gente consegue fazer. Agora, o entorno é bem mais complexo, envolve outros órgãos da esfera estadual e municipal”.
Melo, o procurador focado em questões indígenas, propõe novas políticas de zoneamento para “dar resposta a essa ocupação desordenada do entorno” e frear atividades ilegais e prejudiciais em torno das terras indígenas. Para ele, também é estratégico envolver órgãos do governo que tenham experiência no transporte de gado para escoar o que será apreendido na Arariboia.
Melo também propõe destinar o dinheiro arrecadado com a venda de gado ilegal para os povos indígenas. “A gente poder retirar e ainda dar um indicativo relevante para o mercado, para esse mercado ilegal, de que o gado que vier a cruzar os limites da terra indígena vai ter uma severa consequência econômica pra quem fizer”.
A crescente exposição da Arariboia a crimes ambientais e violência está diretamente ligada às políticas anti-indígenas e antiambientais do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, que reduziu o orçamento e desmantelou órgãos ambientais e indígenas, além de apoiar abertamente a ocupação de territórios indígenas pela mineração e o agronegócio. Foi “um aceno à impunidade”, diz Kaingang.
Essa falta de fiscalização federal também desencadeou o aumento da violência na região, pois os indígenas tiveram que defender o território por conta própria diante da ausência do Estado, diz o secretário, e se tornaram alvos. Segundo Kaingang, há planos em andamento para criar bases de segurança dentro da Arariboia para proteger a área e fazer cumprir a lei.
Os CARs que se sobrepõem às terras indígenas são outro legado do governo Bolsonaro, diz Kaingang. Ele diz que o MPI e a Funai têm pressionado para anular esses CARs, mas enfrenta batalhas judiciais. “Esses CARs têm que ser revogados e não devem ser validados. A Funai já emitiu uma nota técnica sobre isso. A maioria deles está travada no Judiciário”, diz ele.
Até meados de 2025, diz Kaingaing, o objetivo é remover todo o gado ilegal da Arariboia. “A gente precisa fazer com que o território esteja a pleno e usufruto exclusivo e pleno dos povos indígenas”, diz ele. “Nosso papel é esse: é coibir essas ilegalidades e não compactuar, seja indígena, seja na indígena, usando de maneira irregular um patrimônio da União que é destinado aos povos indígenas”.
Ações efetivas do governo há muito aguardadas para proteger a Arariboia e as vidas dos povos Guajajara e Awá, diz Laércio, sobrevivente e testemunha do ataque que assassinou o companheiro Guardião Paulo Guajajara. “A gente espera muito pelo poder público, para fazer a parte deles”, diz ele. “Nosso povo tem que existir é para sempre. Não pode ser extinto, que nem muitos foram aí”.
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Gado ilegal dispara na Terra Indígena Arariboia em ano mais letal para os Guajajara - Instituto Humanitas Unisinos - IHU