14 Junho 2024
Vandana Shiva (Dehradun, 1952) é uma das ativistas e intelectuais ecofeministas mais reconhecidas de nosso tempo. Doutora em física quântica, foi uma das fundadoras do Fórum Social Mundial, pioneira na abertura do debate agroecológico e sobre o controle de sementes e é autora de mais de 15 livros. Desde 1987, lidera o sítio agroecológico e o banco de sementes Navdanya, no norte da Índia, e contribui para organizar as lutas camponesas em todo o mundo.
CTXT se encontra com Shiva no antigo complexo industrial Fabra i Coats de Barcelona, onde foi participar da Feira Literária de Barcelona, um encontro de editoras críticas. Lá, a ativista e intelectual indiana participou de um debate com Yayo Herrero, diante de um público de quase 700 pessoas.
A entrevista é de Pablo Castaño e Adrià Rodríguez, publicada por CTXT, 11-06-2024. A tradução é do Cepat.
Com Yayo Herrero, compartilha um diagnóstico sobre a crise ecológica. Como o descreveria?
O primeiro elemento para compreender a crise ecológica é que acontece devido a uma extração sem limites. Isto acontece porque foram concedidos direitos corporativos e coloniais e são recompensados com um poder absoluto. Ao apresentar uma atividade extrativa como progresso, oculta-se a exploração, oculta-se a violação da auto-organização dos sistemas, como as árvores estão ligadas aos rios, como o solo está ligado à agricultura, como a biodiversidade das plantas está ligada à dos insetos. Todas estas relações são fundamentais.
Francisco Varela e Humberto Maturana falaram da autopoiese e propuseram uma mudança total de paradigma ao nos fazer ver que os sistemas vivos são auto-organizados. O extrativismo destrói a organização interna dos organismos vivos e as relações desses organismos com tudo o mais que está vivo. É assim que toda destruição passa a ser considerada uma externalidade. Você destrói, mas oculta a destruição.
Parte disso vem do pensamento cartesiano e do pensamento mecânico de Francis Bacon. O pensamento mecânico desmonta as coisas e dá vida a cada parte em separado. Para as pessoas que foram educadas nesse pensamento mecânico é difícil ver as relações. As relações foram destruídas em uma economia de morte.
Como você definiria a perspectiva ecofeminista em concordância com Yayo Herrero e outras pensadoras, como Maria Mies?
Ecofeminismo é dizer que a Terra está viva, que a Terra sustenta e mantém a vida. E é dizer que as mulheres não são um segundo sexo passivo. Não são um objeto a ser possuído, nem controlado. As mulheres sustentam a sociedade. Os seus cuidados e o seu trabalho invisibilizado são a verdadeira economia, porque se ocupam da reprodução e da regeneração da sociedade.
Também são as cuidadoras da Terra, porque a elas se conferiu fazer o verdadeiro trabalho [de cuidados], que não conta como trabalho, precisam trabalhar com a natureza. Por exemplo, na Índia, as mulheres são as principais provedoras de água. Elas sabem quando um poço está secando, quando um rio está secando, pois trabalham com a natureza, são as primeiras a responder à crise ecológica.
Um dos debates sobre a relação entre tecnologia e transição verde é o das energias renováveis. O IPCC e outras organizações dizem que uma das ações necessárias para enfrentar a mudança climática é promover as energias renováveis, mas estas exigem grandes quantidades de minerais e de terra. Como podemos promover as energias renováveis sem criar outra nova onda de extrativismo e colonialismo?
Minha primeira crítica ao reducionismo das energias renováveis tem a ver com o esquecimento de que há muitos tipos de energia no mundo. Todo sistema vivo é um gerador de energia. Schrödinger, físico quântico, escreveu que a diferença entre as máquinas e os sistemas vivos é que as máquinas requerem energia externa e geram entropia, que é energia desperdiçada na forma de emissões, ao passo os sistemas vivos não requerem energia externa. Uma semente se torna uma árvore com a sua própria energia e a energia do sol, e isso é entropia negativa. Ocultou-se toda a questão da entropia positiva e negativa, mas este é o cerne do debate sobre a energia e sobre o clima.
Olhar apenas para o consumo de energia e dizer que continuaremos consumindo o mesmo, por meio de energias renováveis, é não abordar o debate sobre a geração de energia e ocultar a demanda por recursos e terras. Isto é reducionista em todos os sentidos. É problemático como o tema climático foi reduzido ao consumo de energia, a buscar energias renováveis e a uma questão de temperatura.
Pensar que os fenômenos climáticos provêm da atmosfera sem ver o que está sendo feito com a terra é separar o que está conectado. Não podemos resolver um problema ecológico, que é um problema de como a vida está sendo desmantelada, mantendo a mentalidade industrial, de engenharia e mecânica. Como disse Einstein, não é possível resolver um problema com a mesma mentalidade que o criou.
Outro dos eixos de seu trabalho, também ligado à questão da tecnologia, são os agrotóxicos. Nos últimos meses, houve muitos protestos de agricultores na Europa. Um dos motivos do protesto foi a regulamentação europeia que restringia o uso de agrotóxicos na agricultura. Em resposta, a Comissão Europeia diminuiu o nível de exigência desta regulamentação. Como proteger as economias agrícolas e familiares e ao mesmo tempo a ecologia?
Os protestos começaram por uma questão econômica, começaram contra o acordo de livre comércio com o Mercosul. O livre comércio acaba destruindo todas as economias, ao passo que permite que as corporações prosperem. O livre comércio não opõe a Europa ao Sul Global, são os trabalhadores da Europa e do Sul Global que sofrem com ele.
O sistema agroindustrial globalizado é uma receita para aumentar os custos de produção e derrubar os ingressos agrícolas. É uma economia negativa. Por isso, os agricultores estão em crise. Em todo o mundo, onde quer que se incentive o livre comércio e uma maior industrialização, os agricultores respondem.
Os protestos acontecem porque os agricultores compreendem que há uma tentativa de se desfazer deles, que se tornaram uma entidade dispensável: tendemos para uma agricultura sem agricultores. A indústria aproveitou estes protestos como uma oportunidade, porque distribui os produtos fitoquímicos através dos grandes sindicatos de agricultores. Fizeram com que alguns deles falassem a respeito da retirada das regulamentações sobre os agrotóxicos, mas essa é a voz das corporações, o cartel do veneno. Não é a voz dos pequenos agricultores independentes.
A questão dos agrotóxicos tem muito a ver com o controle das sementes, uma luta na qual você está envolvida desde 1987. Como o assunto evoluiu nos últimos 30 anos? Permanece sendo tão relevante?
A vida sempre será relevante. A renovação dos sistemas vivos pelos seus próprios meios será sempre a base da liberdade na natureza e na sociedade. Por que me envolvi no tema das sementes? Porque em 1987 me convidaram para uma reunião em que se debatia as novas biotecnologias. Naquele momento, ainda não havia transgênicos no mundo. O primeiro organismo geneticamente modificado foi comercializado em 1992.
A indústria havia traçado seu caminho e disse que o seu principal objetivo era gerar patentes para as sementes. Ora, uma patente é um monopólio obtido porque se inventou algo novo. Então, a primeira coisa necessária era mudar a natureza da semente na mente das pessoas. A semente tinha que deixar de ser algo que gerava a si mesma e passar a ser um produto inventado pela Monsanto.
Uma mercadoria?
Mais do que uma mercadoria: uma criação. Uma mercadoria reconhece que o agricultor tem um papel, que a terra tem um papel. Quando falamos de propriedade intelectual sobre as sementes, a Monsanto é Deus. Assumiram o papel da criação e transformaram algo que se renova e se multiplica por si só em algo que foi feito por eles. Contudo, uma semente não é uma máquina.
Por isso, decidi começar a criar bancos comunitários de sementes, como Navdanya. Em segundo lugar, decidi começar a trabalhar com o governo e o parlamento indianos para redigir leis que respeitem a integridade da vida na Terra. Escrevemos leis que dizem que plantas, animais e sementes não são entidades criadas por seres humanos e, portanto, não podem ser patenteadas.
Essas leis permanecem vigentes na Índia. A terceira coisa que decidi foi processar as empresas de sementes nos tribunais por estar roubando-as. Foi o que eu chamo de “a segunda chegada de Colombo”. Simplesmente, roubam e dizem: “é minha propriedade intelectual”. E nós dizemos: “não, vocês roubaram e, portanto, é biopirataria”.
Outra questão fundamental na crise ecológica é a água. Neste momento, a região mediterrânea onde estamos está sofrendo uma seca e se prevê mais escassez de água no futuro. Trata-se de uma questão transversal que abrange dimensões sociais, ecológicas e políticas. Como podemos olhar para o problema da água a partir de todos estes diferentes pontos de vista?
Não precisamos apenas unir as múltiplas dimensões da água, precisamos unir as múltiplas dimensões de um planeta interligado. A crise climática e de biodiversidade são uma crise única. Quando esquecemos da biodiversidade e a destruímos, o clima se desestabiliza, porque a biodiversidade gere o clima. No movimento Chipko, as mulheres perceberam que se você destrói a floresta, ocorre uma seca, uma inundação.
Sendo assim, gerir a água significa gerir a regeneração da biodiversidade, das florestas, das plantas, da terra, das relvas. Todos são sistemas de gestão da água, assim como a questão climática. Os estragos climáticos têm a ver com os sistemas hidrológicos desestabilizados, que são os verdadeiros assassinos no Sul Global. Cada desastre na Índia em que pessoas morreram é um desastre hídrico. Quando vem um ciclone, as pessoas morrem. Quando um lago glacial derrete e há uma inundação, as pessoas morrem.
É necessário interligar todas as dimensões da água. Quando o governo constrói uma barragem para os agricultores ricos do vale, todos os outros perderão o acesso à água. Como todos os recursos estão interligados, devem ser geridos como bens comuns e para o bem de toda a comunidade. Não podem ser divididos para o seu uso extrativo pelos mais poderosos. Neste momento, a privatização da água e o mercado futuro da água são questões de grande relevância às quais as pessoas resistem. A água de Delhi ia ser privatizada e conseguimos evitar.
O ultranacionalista Narendra Modi, do partido BJP, provavelmente será reeleito primeiro-ministro da Índia, enquanto a extrema-direita tem perspectivas de crescer na Europa. Estes partidos têm em comum o fato de combinarem nacionalismo e neoliberalismo. Como podemos explicar a sua ascensão no contexto da crise ecológica?
Em 1991, escrevi o Manifesto por uma Democracia na Terra. Em 1999, bloqueamos a cúpula da OMC, em Seattle. Durante este período, desenvolveu-se o neoliberalismo, a desregulamentação do comércio e da economia e a morte da democracia. Também começou esta nova cultura de morte e destruição. O livro de Samuel Huntington, O choque das civilizações, é fundamental para este momento. Vem dizer que só posso saber quem sou quando sei quem odeio. Criou-se o ódio como moeda de identidade.
Ora, todas as tradições espirituais dizem algo diferente: saber quem você é tem a ver com a forma como você se relaciona com a terra e com a sua comunidade. Você existe na comunidade e, como comunidade, você faz parte da natureza e produz junto com a natureza. Passou-se disso para uma identidade negativa, uma cultura de destruição, violência e morte. O que existe hoje é a cultura dos agrotóxicos, do veneno: “Saiba a quem deve exterminar”. Essa agenda, saber quem é o seu inimigo, tornou-se a agenda nacional.
Contudo, uma nação tem a ver com a forma como correm os riachos, qual é a saúde das florestas, qual é o estado de saúde dos cidadãos, até que ponto estão organizados para cuidar dos bens comuns... Essas são as questões que definem uma comunidade. No entanto, hoje, as culturas, as economias e as democracias foram esvaziadas de comunidade e se tornaram propriedade das corporações. É assim que o nacionalismo cultural se tornou sócio do neoliberalismo corporativo.
Em algum momento, falou sobre a necessidade de criar um G-7 bilhões. Quais tipos de instituições democráticas precisamos para defender uma democracia da Terra?
A verdadeira democracia é possível junto com outros seres que habitam o planeta Terra. Cultivar alimentos de forma ecológica é uma prática de democracia da Terra, tem a ver com a liberdade de todas as formas de vida e suas interconexões. Salvar as sementes, por exemplo, não é apenas salvar os humanos, mas também os polinizadores. Devemos reivindicar isso.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“O que existe hoje é a cultura dos agrotóxicos, do veneno”. Entrevista com Vandana Shiva - Instituto Humanitas Unisinos - IHU