Forasteiro entre os forasteiros. Artigo de Alfredo J. Gonçalves

Fonte: John Linnell

11 Junho 2024

"Por que estão tristes, o que aconteceu, para onde estão indo, o que vão falando pelo caminho? Interessa-lhe o estado de seus rostos, o conteúdo de suas palavras, o rumo de seus passos. Na qualidade de desconhecido e estranho, reserva-se o direito de interrogar. Os fugitivos, encontrando um ouvido atento, põem-se então a narrar os recentes acontecimentos que levaram à morte o Nazareno. Inicia-se um diálogo entre os fatos brutos da vida cotidiana e as palavras da Sagrada Escritura", escreve Alfredo J. Gonçalves, CS, padre, assessor do SPM – São Paulo.

Eis o artigo.

No episódio evangélico dos discípulos de Emaús (Lc 24, 13-35), subitamente um forasteiro põe-se a marchar com os dois fugitivos. Estes escapavam da cidade de Jerusalém, onde se dera a tragédia da cruz. Ali, o Líder havia sido condenado à execução reservada aos piores malfeitores, e logo suspenso no madeiro maldito, com sofrimento e morte atrozes. Por lá, não obstante os festejos da Páscoa, as coisas continuavam sombrias. Se o próprio Mestre tivera esse terrível fim, o que poderia ocorrer aos seus seguidores mais próximos? Melhor não esperar pela sorte, mas buscar refúgio em Emaús. No caminho, portanto, empreendiam uma travessia de medo e frustração, de fracasso e impotência. Andavam pensativos e cabisbaixos, certamente abatidos pelo trauma da dispersão, estupefatos pela traição e pelo desfecho final.

Quantos migrantes – fugitivos e refugiados da violência política, étnica, religiosa e ideológica; das mudanças climáticas cada vez mais extremadas e catastróficas, da pobreza, da miséria e fome – enfrentam atualmente a mesma travessia! São multidões provenientes da Síria, da Venezuela, da Ucrânia, do Afeganistão, do Sudão do Sul, da Etiópia, da Nigéria, de Moçambique, de Mianmar, do Haiti, da Palestina; de vários outros países de América Latina e Caribe, África e Ásia, para citar somente alguns lugares conflagrados. Em grande parte, seguem sem raiz, sem pátria e sem rumo, incertos, inseguros e inquietos quanto ao futuro. Passam a vagar pelos mares e desertos, pelas florestas e fronteiras, batendo de porta em porta, sendo recebidos em troca com preconceito, discriminação, hostilidade, xenofobia e rechaço.

Voltando ao texto bíblico, o forasteiro revela-se curioso no confronto com os dois fugitivos. Por que estão tristes, o que aconteceu, para onde estão indo, o que vão falando pelo caminho? Interessa-lhe o estado de seus rostos, o conteúdo de suas palavras, o rumo de seus passos. Na qualidade de desconhecido e estranho, reserva-se o direito de interrogar. Os fugitivos, encontrando um ouvido atento, põem-se então a narrar os recentes acontecimentos que levaram à morte o Nazareno. Inicia-se um diálogo entre os fatos brutos da vida cotidiana e as palavras da Sagrada Escritura. Coisa surpreendente: primeiro fala a experiência vivida, depois é que os relatos bíblicos entram em cena. Talvez porque a existência humana, com seus sonhos e esperanças, suas lutas e embates, derrotas e vitórias, já se encontre impregnada das sementes da Palavra de Deus. Disso decorre que esta última só venha a ser consultada e esclarecida na medida em que possa para trazer alguma luz e sentido aos fatos que tanto preocupam os fugitivos.

Fica evidente a metodologia do forasteiro. Antes de mais nada, oferecer tempo e espaço para o desabafo de quem foi golpeado pelos embates da existência e se encontra prostrado. Daí seu cuidado, sua sensibilidade, sua atenção e sua solidariedade. Nessas situações-limite da existência humana (separação, doença, fracasso, morte) nem sempre é fácil encontrar alguém predisposto a uma escuta qualificada. Escuta que não se realiza com os ouvidos biológicos, mas com o coração. É assim que, no encontro e sempre a caminho, o forasteiro prepara um cenário para que aqueles cujas pernas foram quebradas pelas adversidades da vida possam voltar a ser sujeitos e protagonistas do próprio destino. Ele por seu lado, nesse cenário, contribui com a sabedoria e a orientação dos livros sagrados. Dessa forma, vida e Bíblia, reciprocamente iluminadas, podem dar-se as mãos para enfrentar os próximos movimentos.

Com isso, o forasteiro transfigura-se em irmão. Torna-se próximo de quem está necessitado, na exata medida em que se aproxima, caminha ao lado dos feridos, e se dispõe à cura e ao cuidado. Por fim, sendo agora um irmão, pode ser convidado à casa: “fica conosco, pois cai a tarde e o dia já declina”. Efetivamente, o convite a entrar em casa exige um grau acentuado de relacionamento. Ninguém compartilha sua privacidade familiar com estranhos, a não ser depois de certa intimidade. Mas o forasteiro convertido em irmão vai além! Torna-se também anfitrião. De fato, tendo sido convidado igualmente à mesa, “tomou o pão, abençoou-o, depois partiu-o e o distribuiu a eles”.

Nisso revela imediatamente sua identidade: é o Senhor! O mesmo Senhor que hoje se faz forasteiro, irmão e anfitrião de cada migrante ou refugiado que se põe a caminho. O encontro com ele transforma a travessia da fuga e do medo em retorno alegre e entusiasmado. O caminho é o mesmo, mas a esperança de renovou. “Não ardia o nosso coração quando ele nos explicava as escrituras”? Ao final resulta que dois discípulos medrosos se convertem em dois missionários ardorosos!

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