16 Abril 2012
"A fé faz ver no banal o que os olhos banais não podem ver', escreve Antonio Cechin, comentando as narrativas evangélicas de Maria Madalena e Tomé.
Segundo ele, citando Jean-Luc Nancy, “a crença espera o espetacular e o inventa conforme a necessidade. A fé consiste em ver e em ouvir onde nada é excepcional aos olhos e aos ouvidos comuns”.
Cechin recorda os 25 anos da Rede Mística Feminina do Meio Popular e prooõe um templo, em Não me toque, RS, cujo orago fosse a cena do 'Não me toque', celebrando a proverbial fé da mulher rio-grandense.
Antonio Cechin é irmão marista e miltante dos movimentos sociais, autor do livro Empoderamento Popular. Uma pedagogia de libertação. Porto Alegre: Estef, 2010.
Eis o artigo.
Terminou a oitava da festa da Páscoa. Na Igreja, festa de santo grande tem vigília. Duas festas por ano, Natal e Pentecostes, se prolongam durante oito dias. A rainha das festas cristãs – Páscoa – tem oito dias de preparação – Semana Santa – e oito dias seguidos de celebração festiva culminando com o domingo “in albis” ou todo de branco, porque era a data em que os catecúmenos, recém batizados e revestidos de branco para a cerimônia do batismo, passados oito dias, se desvestiam da indumentária.
Na terça-feira que acontece dentro dos oito dias dos festejos de Páscoa, no Evangelho do dia (João 20, 11-18) é narrada a cena da aparição de Jesus a Maria Madalena. Apesar de discípula fervorosa de Jesus que havia sido em vida do Mestre, no dia da Páscoa da Ressurreição do Homem de Nazaré, num primeiro momento não o reconheceu. Tomou-o pelo jardineiro do horto em que o corpo havia sido sepultado. Então Jesus disse: Maria!... Pela voz, ela o reconheceu. Estava com uma saudade imensa de Jesus. Acompanhara-o o tempo todo no caminho do Calvário nos sofrimentos da paixão e morte. Agora, Ele ali, diante dela, ressuscitado e chamando-a pelo nome. De imediato, fez menção de ir para o abraço com as palavras “Bom Mestre!” Jesus a impede, dizendo: “Não me toque! Ainda não subi para junto do Pai!”
Não deixa de ser intrigante o comportamento de Jesus. Para o grande amor e a fé ardente que a mulher Maria Madalena lhe vota, um “não me toque, porque ainda não fui para junto do Pai!”. Uma semana depois do acontecido com Madalena, diante da incredulidade do discípulo Tomé (João, 20,24-29), o mesmo Jesus dá ordem para que este discípulo descrente o toque nas chagas das mãos e do lado aberto pela lança, com as palavras: “Porque viste, creste. Felizes os que não viram e creram.”
O escritor e filósofo lacaniano Jean-Luc Nancy, no livro “Noli me tangere” (Não me toque), aproveita os dois fatos para fazer a distinção entre crença e fé. Desenvolve uma ligação essencial entre a cena do sepulcro, a arte e a literatura moderna. É a especulação surpreendente e provocativa que atravessa o livro do começo ao fim. É uma obra ao mesmo tempo literária e filosófica.
A crença é uma busca de segurança. O crente precisa de segurança para acreditar e acredita para ter segurança, como no caso de são Tomé. É ver (e tocar) para crer. Na fé, não. Não há nenhuma segurança. É uma aposta no vazio. A fé faz ver no banal o que os olhos banais não podem ver. Maria Madalena reconhecendo o Cristo na pessoa de um jardineiro, por exemplo. Não tocar, neste caso, é condição para atingir o intocável e ver o invisível. Tocar seria permanecer na ilusão do presente e das aparências. “A crença espera o espetacular e o inventa conforme a necessidade. A fé consiste em ver e em ouvir onde nada é excepcional aos olhos e aos ouvidos comuns”, escreve Nancy.
A fé de Maria Madalena é fidelidade ao vazio, à ausência (como no amor). Quanto mais as pessoas tentam possuir o que amam, mais o amor lhes escapa. O amor é intangível. É o que se faz sentir pela distância e pela indisponibilidade. O que aparece para Maria Madalena e que ela não pode tocar é a presença da ausência. O ressuscitado só existe pelo desaparecimento. Ao desaparecer, o morto passa a existir para sempre, e é isso o que ela vê diante do sepulcro. A aparição do ressuscitado é, na verdade, a aparição da ausência.
Importantíssimas essas observações de Jean-Luc Nancy para, diante de programas religiosos na TV, sabermos distinguir o que é simples crença e o que é fé. O que é evangelização legítima e o que é mero show de fé e que, no fundo, nada tem a ver com fé.
A mulher Maria, originária da cidade de Mágdala, a Maria Madalena dos Evangelhos, é a primeira pessoa que pratica um ato de fé, a mais autêntica, na Ressurreição do Homem-Deus Jesus de Nazaré, no instante mesmo em que aconteceu. Trata-se de uma mulher.
Estas reflexões me vem à tona porque agora, dia 16 de abril, começam as comemorações dos 25 anos da Rede Mística Feminina do Meio Popular aqui no Rio Grande do Sul. Numa oficina, dentro do Fórum da Igualdade, lançado pelos Movimentos Populares, em oposição ao Fórum da Liberdade das classes dominantes, é dado o tom da fé e do dinamismo da mulher-comunidade das Comunidades Eclesiais de Base e da Teologia da Libertação.
A oficina do Fórum tem como título: Mulher e Meio Ambiente – Ecofeminismo – Reconciliação do feminino e masculino na cultura de paz. Será comemorativa das três ondas sucessivas do Movimento Feminista entre nós.
Nas próprias palavras da Cartilha a ser distribuída a todas as participantes: “a primeira fase tratou dos direitos básicos das mulheres, como por exemplo, o direito das mulheres elegerem e serem eleitas. A segunda onda, exemplificada no pensamento de Simone de Beauvoir, trouxe a questão cultural, que ganhou notoriedade no slogan “as mulheres não são mulheres, são feitas mulheres.”
Atualmente é a terceira onda. O ecofeminismo dos dias de hoje propõe que a luta pelos direitos da mulher não seja separada da luta pela reparação dos ecossistemas que sustentam a vida. Seu postulado principal é que todas as questões de dominação estão interconectadas; portanto para compreender como se deram a opressão das mulheres e a depredação dos recursos naturais, precisamos dirigir o nosso olhar às relações entre os vários sistemas no qual o poder está construído.
Ao incorporar a visão ecológica, o movimento feminista reconhece a presença dos princípios feminino e masculino na natureza, e assim, presente também nas mulheres e nos homens. Essa concepção nos aproxima dos nossos parceiros homens para que busquemos juntos desenvolver a cultura de paz, através da reconciliação do feminino e masculino em cada ser humano.”
Em questão de fé, sabemos que a mulher bate o homem na proporção de, no mínimo, 90 a 10. É só dar uma vista de olhos nas Missas, orações, devoções, peregrinações, concentrações, romarias e tantas outras expressões de fé, de simples crença ou religiosidade de nosso povo.
No 25° aniversário da Mística Feminina dos Movimentos Populares, que tal se levantássemos um monumento à Fé da mulher do nosso Rio Grande?... Como e onde?...
Temos aqui no estado uma cidade que, ultimamente veio ganhando enorme notoriedade, não só no Brasil como na América Latina espraiando-se até internacionalmente. É, por excelência, a cidade hoje denominada capital do agro-negócio. Coisa de gente grande. É lugar-comum reconhecer que rico não é pessoa de muita fé. A crença dele está no dinheiro. Por isso mesmo pouco precisa de fé em Deus.
Essa cidade interiorana de grande prestígio entre os maiorais, leva o nome de Não-me-toque. Houve mesmo, anos atrás, quando o município começou a ficar famoso, um movimento no sentido de trocar-lhe o nome. Gente importante como os latifundiários, começou a ficar com vergonha de designação tão esquisita e tão pouco comercial e que, não raro, provoca sorrisos. Acabou a população toda partindo para um plebiscito. Os votos dividiram-se entre o nome original Não me Toque, e a alternativa Campo Real. A impressão que nos ficou é que os pobres não sintonizaram com a idéia mudancista. Fincaram pé no nome original de “Não me toque.” Os ricos, minoritariamente, escolheram “Campo Real”.
Tendo em vista que o nome da cidade, nesta altura já se internacionalizou sob a designação de Não me Toque, por decisão de uma maioria de pobres e como os pobres também são maioria em termos de fé, estamos convictos de que um santuário na cidade com o nome “Não me Toque” enfocando a cena de Maria Madalena num ato da mais autêntica demonstração de fé no Homem-Deus-Ressuscitado vivendo conosco, seria certamente a maior homenagem que poderíamos prestar não só à santa do Novo Testamento, como também a todas as mulheres do Rio Grande em sua magnitude de Fé.
A cidade do santuário cujo orago fosse a cena do NÃO ME TOQUE, alem de celebrar a proverbial fé da mulher rio-grandense, além de ganhar relação à Boa Nova da Evangelização, muito ganharia como centro de turismo religioso e até mesmo em marketing comercial. Ainda mais que a cena entre Madalena e Cristo Ressuscitado é uma das mais reproduzidas por dezenas de artistas ao longo dos séculos como Fra Angélico, Giotto, Ivanov, Perugino, Rembrandt, e muitos outros. Uma coleção de réplicas da cena bíblica reproduzida em quadros bem emoldurados de pintores famosos no interior do santuário, seria um motivo a mais de grande orgulho para todos os cidadãos não-me-toquenses, se é assim que costumam se identificar em relação ao seu lugar de nascimento.
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Páscoa, Maria Madalena e Não me Toque - Instituto Humanitas Unisinos - IHU