29 Mai 2024
“A Igreja enfrenta um desafio ao qual espero que vocês possam nos ajudar a responder. A Igreja é chamada a estar aberta a todas as pessoas, independentemente de como amem e vivam, e a todas as culturas. Mas e se algumas culturas não estiverem abertas às pessoas gays? Como podemos acolher na Igreja universal culturas que excluem pessoas?”
Publicamos aqui a conferência do padre dominicano inglês Timothy Radcliffe no Congresso pelo 25º aniversário do grupo LGBT+ Catholics Westminster, responsável pela pastoral voltada à comunidade LGBT+ da Diocese de Westminster, na Inglaterra. O congresso foi realizado no Centro Jesuíta de Londres, no sábado, 25 de maio de 2024.
A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Tenho lembranças tão felizes da época em que ia celebrar a missa para nossos irmãos e irmãs LGBT+ no Soho, antes de a missa ser transferida para os cuidados dos jesuítas na Farm Street. [...]
Pediram-me para dizer algo sobre o lugar dos católicos LGBT em uma Igreja sinodal. [...]
Há poucos dias, o Vaticano pediu-me para fazer algo que seria inimaginável há alguns anos. Fui convidado a escrever o prefácio para a tradução inglesa de um livro de um jovem italiano, Luigi Testa. O livro se chama “Via Crucis di un ragazzo gay” (A Via Sacra de um rapaz gay). O prefácio italiano, que é maravilhoso, foi escrito por um bispo italiano, vice-presidente da Conferência Episcopal Italiana.
Nós acompanhamos os sofrimentos de Luigi, como jovem gay, enquanto ele percorria o caminho da cruz, acompanhado por Jesus. É profundamente comovente. O livro faz parte de uma série promovida pelo Vaticano sobre a teologia das periferias. É um sinal da profunda conversão que se realiza no centro da Igreja, à medida que ela vai ao encontro de pessoas que foram marginalizadas e rejeitadas, e diz: “Esta é a casa de vocês. Somos incompletos sem vocês”.
Antes do Sínodo, o Papa Francisco enfatizou frequentemente que todos são bem-vindos. Em agosto passado, em Portugal, ele sublinhou isso na Jornada Mundial da Juventude. “Todos, todos, todos!” Os divorciados recasados, as pessoas gays, as pessoas trans. Antes disso, ele escreveu: “A Igreja é chamada a ser sempre a casa aberta do Pai... com as portas abertas... onde há lugar para todos com a sua vida fadigosa, e a ir ao encontro daqueles que sentem a necessidade de retomar o caminho da fé”.
Quando o Sínodo foi inaugurado, em outubro, muitos dos participantes compartilharam a vontade do Papa Francisco de afirmar que a Igreja é realmente para todos nós! É onde todos deveríamos nos sentir à vontade. Foi essa mensagem de esperança e de amor que levou ao início daquelas missas no Soho, há 25 anos.
No Sínodo, essa mensagem foi repetida, mas era evidente que muitas pessoas estavam nervosas com isso. Alguns participantes sentiram-se desconfortáveis até mesmo por se sentarem ao lado do Pe. James Martin SJ, que, durante muitos anos, foi um corajoso defensor da calorosa inclusão dos gays na Igreja. Uma pessoa até se recusou a sentar ao lado dele. Outras sentiram um arrepio de emoção, assim como eu.
Durante o Sínodo, o Papa Francisco voltou a manifestar sua acolhida, convidando publicamente a Ir. Jeanine Gramick e Francis DeBernardo, fundadores do New Ways Ministry, para almoçar com eles. Eu almocei com eles no dia seguinte, e eles se sentiram enormemente apoiados.
Mas, no documento produzido no fim dessa primeira sessão, o Relatório de Síntese, o termo LGBT+ foi abandonado, embora tenha sido usado em outros documentos do Vaticano e pelo papa. Então, parece ter havido um certo recuo em relação à abertura que esperávamos. Mesmo assim, a assembleia votou quase unanimemente a favor desta proposição:
“De diferentes modos, também as pessoas que se sentem marginalizadas ou excluídas pela Igreja, devido à sua situação matrimonial, identidade e sexualidade, pedem para ser escutadas e acompanhadas e que seja defendida a sua dignidade. Na Assembleia, pôde perceber-se um profundo sentido de amor, misericórdia e compaixão pelas pessoas que estão ou se sentem feridas ou negligenciadas pela Igreja, que desejam um lugar onde regressar “a casa” e onde se sintam seguras, escutadas e respeitadas, sem receio de se sentirem julgadas. A escuta é um pré-requisito para caminhar juntos à procura da vontade de Deus. A Assembleia reafirma que os cristãos não podem faltar ao respeito pela dignidade de pessoa alguma” (Relatório de Síntese, 16h).
Dado que em muitos países a homossexualidade ainda é criminalizada e desprezada, isso foi encorajador. Mas aqui a Igreja enfrenta um desafio ao qual espero que vocês possam nos ajudar a responder. A Igreja é chamada a estar aberta a todas as pessoas, independentemente de como amem e vivam, e a todas as culturas. Mas e se algumas culturas não estiverem abertas às pessoas gays? Como podemos acolher na Igreja universal culturas que excluem pessoas?
Esse problema eclodiu no ano passado. No dia 18 de dezembro, o Dicastério para a Doutrina da Fé emitiu um documento chamado Fiducia supplicans. Confesso que, para a minha vergonha, eu não estudei o texto com atenção. Ele dá permissão aos padres, em situações específicas, para abençoarem pessoas que se encontram naquelas que comumente são chamadas de “situações irregulares”, os divorciados recasados, os casais gays. O Papa Francisco enfatizou que todos nós precisamos ser abençoados enquanto buscamos encontrar o nosso caminho no amor.
O cardeal Ambongo, de Kinshasa, presidente da organização que representa todos os bispos católicos da África, foi a Roma para apresentar sua firme rejeição à proposta. Ele reconheceu que não era a intenção do documento mudar o ensinamento da Igreja sobre o sexo, mas, disse ele, “as conferências episcopais em toda a África acreditam que as bênçãos extralitúrgicas propostas na declaração Fiducia supplicans não podem ser realizadas na África sem se exporem ao escândalo… A linguagem de Fiducia supplicans é muito sutil para as pessoas simples compreenderem”. Nunca antes na história quase todos os bispos africanos haviam rejeitado um documento vaticano.
Inúmeras tentativas foram feitas para minimizar a crise. O papa aceitou o documento. O cardeal Ambongo sustentou que o excepcionalismo africano era um bom exemplo de sinodalidade. Unidade não significa uniformidade. O evangelho é inculturado de maneira diferente em diferentes partes do mundo.
Mas se trata de algo mais complexo do que isso. Após a queda do Muro de Berlim, em 1989, Francis Fukuyama publicou “O fim da história e o último homem”, argumentando que havíamos entrado em uma nova era, o triunfo da democracia liberal ocidental. Cada nação parecia destinada a “evoluir” ao nosso modo de vida. Alguns países, especialmente no Sul global, só teriam de recuperar o atraso. Se não concordassem conosco, por exemplo, sobre a acolhida às pessoas LGBT+, certamente acabariam concordando.
Nós estávamos errados. Não temos tempo nem eu tenho expertise para analisar onde estamos agora, mas parece que estamos entrando em um mundo multipolar, com a ascensão da Rússia, da China e da Índia e de todos os países dos BRICS. Muitas pessoas do Sul global acham que o Ocidente tem uma cultura moralmente decadente, fadada ao colapso. O cardeal Ambongo, de Kinshasa, disse há alguns meses: “Pouco a pouco, eles [os ocidentais] desaparecerão. Desejo-lhes uma boa morte”.
Putin está usando a questão gay como uma arma emblemática de tudo o que a cultura tradicional se opõe, pois procura espalhar a influência russa em outras partes do mundo, juntamente com a milícia Wagner. Putin está sempre mostrando sua virilidade, tirando a camisa. Ele foi descrito como o líder mais topless do mundo! Mas essa questão também está sendo usada por grupos islâmicos com dinheiro do Oriente Médio, por grupos evangélicos com dinheiro americano, e assim por diante.
Como disse, não sou nenhum especialista sobre essa batalha cultural que está sendo travada por todo o lado, seja nos Estados Unidos ou na África. Desejo apenas assinalar, muito brevemente, que o Sínodo enfrenta esse duplo desafio, de uma adequada abertura do evangelho a todos, com uma abertura a todas as culturas. Como devemos viver essas duas coisas? Esse será um grande desafio para a próxima sessão do Sínodo. Não se trata de como o nosso lado deve vencer. Esse é o jogo da política competitiva. Trata-se de como a Igreja pode realizar sua vocação de ser o lugar onde toda a humanidade encontra seu lar e sua alegria. Aqui, como diz São Paulo, “não há judeu nem grego, escravo nem livre, homem nem mulher, pois todos vocês são um em Cristo Jesus” (Gálatas 3,28).
Minha imagem favorita é a de São Pedro em João 12. Eles pescaram a noite toda sem pegar nada. Então, veem um estranho na praia que lhes diz para lançar a rede do outro lado, e a rede fica cheia quase a ponto de rasgar. Pedro puxa a rede até a margem, e ela contém 153 peixes, o que provavelmente representa todas nações do mundo. A rede não se rompeu. Jesus disse antes de sua morte: “Quando eu for elevado, atrairei todos a mim”. Pedro ajuda nisso, puxando a rede para a margem para apresentá-la a Jesus.
Então, como podemos puxar a rede sem que ela se rompa? A Igreja está apenas começando a pensar sobre isso, e espero que vocês nos ajudem. Um ponto de partida é uma fascinante palestra do cardeal Ratzinger antes de ele se tornar papa. Ele a proferiu em Hong Kong, em 1993, sobre aquilo que chamou de interculturalidade. Ele argumenta que toda cultura está potencialmente aberta à plenitude da verdade. Quando as culturas se encontram, idealmente, elas deveriam ser capazes de corrigir os preconceitos umas das outras e partilhar as verdades que encarnam. Então, quando as culturas africanas e ocidentais se encontram, idealmente, ambas deveriam ser desafiadas e enriquecidas. Em uma de suas palestras, o teólogo Albert Nolan OP, da África do Sul, enfatizou: “O nosso questionamento sobre qual o impacto do cristianismo na África será sempre incompleto, a menos que também perguntemos qual é o impacto da África sobre o cristianismo”.
Tem sido destacado que se as culturas ocidentais trazem um profundo senso de dignidade e de liberdade ao indivíduo, e que as culturas africanas trazem uma noção de como o fato de sermos humanos está enraizado nas nossas relações: o Ubuntu. Eu sou porque nós somos. Os católicos asiáticos nos convidam a aprender o valor da harmonia, assim como as culturas latino-americanas nos convidam a ouvir a voz dos pobres.
Cada cultura oferece seus dons e é desafiada. O evangelho deve ser inculturado em todas as culturas, mas também desafia todas as culturas. Portanto, algumas pessoas, como o cardeal Ambongo, argumentarão que a homossexualidade é estrangeira às culturas africanas e, por isso, não pode ser bem-vinda. Eu diria que aqui o evangelho oferece um desafio. Portanto, o encontro das culturas está no centro de muitos debates no Sínodo e, acima de tudo, o acolhimento às pessoas gays. E temos de estar conscientes de que o encontro entre culturas nunca é inocente. Outras culturas vão à África, por exemplo, com armas e dinheiro. A dinâmica do poder está em ação. Os bispos africanos compartilham como sentem uma humilhação profunda quando as ajudas estão ligadas à aceitação de valores ocidentais. As multinacionais corrompem e destroem as culturas locais. As potências estrangeiras também o fazem. Assim como a fome de ouro levou à destruição das culturas caribenhas no século XVI, o mesmo ocorre com a busca por terras raras e diamantes hoje. Lembremos, o estranho que estava na praia foi executado pelo poder imperial do seu tempo.
Portanto, trabalhar por uma Igreja que realmente tenha as portas abertas é inseparável de abordar as formas pelas quais os países do Sul global enfrentam a exploração econômica injusta, a devastação ecológica e a destruição cultural. Não é de se admirar que nós, do Norte, sejamos considerados decadentes. Todos avançamos juntos no caminho para libertação ou não avançamos.
[...] Rezem para que o Sínodo possa abrir todos os corações e as mentes de todos nós e desafie todos os nossos preconceitos.
A primeira missa de acolhimento a católicos LGBT+, pais, mães, familiares e amigos foi celebrada no Centrepeace Convent of the Helpers of the Holy Souls, na cidade de Camden, em 2 de maio de 1999. Isso ocorreu dois dias após o bombardeio da Admiral Duncan Public House na Old Compton Street do Soho, quando Nick Moor, John Light, Andrea Dykes e seu filho ainda não nascido foram mortos, e mais de 80 pessoas ficaram gravemente feridas.
Após o fechamento do convento e sem conseguirem encontrar uma igreja católica conveniente, os católicos LGBT+ encontraram hospitalidade na Igreja Anglicana de Santa Ana, na Dean Street, Soho, de 2003-2007. Lotando a St. Anne e seguindo um processo de consulta com representantes da Diocese de Westminster, em março de 2007 mudamos para a Igreja de Nossa Senhora da Assunção e São Gregório, na Warwick Street, Soho. Em março 2013, mudamos para a Igreja Paroquial Jesuíta da Imaculada Conceição, na Farm Street.
O Conselho Pastoral de Católicos LGBT+ de Westminster recebeu um mandato do cardeal Vincent Nichols para desenvolver o apoio pastoral aos católicos LGBT+, pais, mães e famílias, com os seguintes “Termos de Referência”:
- identificar as necessidades pastorais e sacramentais de lésbicas, gays, bissexuais e trans católicos, seus pais, mães e famílias;
- participar nas missas do 2º e 4º domingo às 17h30 na Igreja da Imaculada Conceição, na Farm Street, e ser responsável pelo planejamento e organização de atividades de desenvolvimento religioso relevantes para as comunidades católicas LGBT+;
- comunicar-se com a Arquidiocese de Westminster sobre questões ligadas ao cuidado pastoral aos católicos LGBT+, seus pais, mães e famílias.
Dando graças pelos 25 anos como comunidade LGBT+ acolhedora e eucarística, alegramo-nos com tantas pessoas que foram batizadas, confirmadas, recebidas na plena comunhão ou que voltaram à vida e à prática da Igreja ao longo deste tempo.
Estamos gratos pelo acompanhamento pastoral dos padres de diversas dioceses e comunidades religiosas na nossa viagem de Camden Town ao Soho, e agora a Mayfair. Olhando para o futuro, comprometemo-nos com uma inclusão sinodal cada vez mais radical de todo o povo de Deus no Corpo de Cristo.
Uma missa pelo 25º aniversário foi celebrada, às 17h30, no domingo, 26 de maio de 2024, na Farm Street Jesuit Church, em Londres. Ela foi presidida por Dom Paul McAleenan, bispo auxiliar da Diocese de Westminster.
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Católicos LGBT+ em uma Igreja sinodal. Artigo de Timothy Radcliffe - Instituto Humanitas Unisinos - IHU