15 Mai 2024
Nos anos 80, quando “sementes corporativas” colonizavam agricultura, um pesquisador abriu-se ao saber camponês: grãos crioulos que, ao contrário do que se pregava, mostravam-se mais produtivos e resilientes. Não sabia, mas estava numa jornada rumo à agroecologia.
O artigo é de Jean Marc von der Weid, publicado por Outras Palavras, 09-05-2024.
Jean Marc von der Weid é economista agrícola e ambientalista brasileiro. Foi presidente da UNE, entre 69/71. É fundador da organização não governamental Agricultura Familiar e Agroecologia (ASTA) e ex-membro do CONDRAF/MDA 2004/2016.
Este não é um artigo teórico sobre a importância da agrobiodiversidade na agroecologia e na sustentabilidade dos sistemas agroalimentares. O que pretendo mostrar é como fui descobrindo o conceito, aprofundando suas dimensões e avaliando seu papel e importância na prática da promoção da transição agroecológica. São várias historinhas, em vários países e em momentos muito diferentes da minha caminhada. Espero que lhes seja útil.
Não. Não é um orixá ou uma palavra do ritual Nagô. É o nome de uma variedade tradicional de arroz, em língua Balanta, como é conhecida a maior etnia dentre as 27 que habitam a Guiné Bissau, grande especialista em rizicultura.
Trabalhei na Guiné em 1981 e 1982, assessorando o ministro do Planejamento, Vasco Cabral com várias responsabilidades, como a participação na elaboração do primeiro Plano Quatrienal de Desenvolvimento, no projeto de ajuda alimentar para o ano de 1982 e na avaliação de dezenas de projetos de cooperação internacional. Também coordenei a formulação do plano de desenvolvimento territorial, sob a batuta do meu saudoso amigo e companheiro, Diógenes de Oliveira, que eu sempre chamei de Dija, mas os muitos amigos gaúchos chamam de Didi.
Um dos projetos que avaliei foi o da introdução na Guiné de uma variedade de arroz de alta produtividade, desenvolvida na Coreia, acho que a do Sul, e que era conhecido como I Kong Pao, ou resumidamente IKP.
O IKP estava sendo avaliado na única unidade de pesquisa agrícola da Guiné, em Contuboel, e comecei a minha análise visitando este centro. As áreas de plantio estavam em fase avançada da safra, a caminho da colheita. O arroz IKP se perfilhava nos lotes em perfeita ordem, em linhas com distanciamento preciso e matemático, todas as plantas da mesma altura, com uma cor uniforme. Era, para a minha percepção de agricultura na época, muito bonito e prometia uma safra 50% maior do que os campos dos agricultores vizinhos, plantados com a variedade tradicional conhecida como Djambarã. Nestes campos o que se via era algo (para mim, na época) confuso, com plantas de vários tamanhos, diferentes tons de verde e talos em posições variadas, uns eretos e outros inclinados. Parecia um campo de mato e tudo indicava vantagens para o IKP.
Antes de decretar que o projeto IKP devia ser generalizado nos campos dos agricultores decidi entrevistar os produtores Balantas, etnia que tinha uma longa experiência em rizicultura irrigada. Qual não foi a minha surpresa quando me disseram que preferiam as suas variedades tradicionais ao aparentemente maravilhoso IKP. Segundo meus interlocutores, o novo arroz tinha vários problemas que não tardariam a se manifestar: “não vai aguentar os ataques de pragas nesta fase final”, “não é cultivável nos terrenos mais próximos do mar”, “precisa de adubo e agrotóxico, que não temos”, “tem um gosto ruim”, “o arroz fica empapado ao ser cozido”. Era o terceiro ano de testes e as observações eram a partir de dados concretos, registrados por eles. Segundo os camponeses, a variedade tradicional não tinha nenhum desses problemas, embora menos produtivo em condições climáticas ideais. Para eles o principal defeito do IKP era sua baixa resistência à salinidade, enquanto as condições das áreas irrigadas perto do mar davam vantagem ao arroz tradicional, selecionado por gerações de agricultores para tolerar o sal. Nas condições de produção dos Balantas o IKP era um risco alto, apesar da promessa de mais produção. Os meses seguintes confirmaram estas observações e a resistência dos agricultores condenou o projeto.
Ao olhar de perto a variedade tradicional constatei que não se tratava de uma variedade, mas de muitas, com sementes de tamanhos e formatos diferentes, mas com tempo de cozimento idêntico. A diversidade das variedades cultivadas nestes campos “caóticos” permitia minimizar as perdas por ataques de pragas. O mix tinha um gosto mais agradável de acordo com o paladar dos consumidores (e o meu), e cozinhava sem empapar. Não existiam análises sobre o conteúdo nutricional de uma e outra variedade, mas alguns especialistas consultados indicavam que o Djambarã deveria ser mais nutritivo.
Para mim, enquanto economista avaliador do projeto, o elemento decisivo era a dependência dos adubos químicos e pesticidas em um país que não tinha produção destes insumos, o que implicaria em importá-los. Eu tinha participado da elaboração de uma lista de importação de produtos essenciais para o país e sabia que a disponibilidade de recursos era mínima, vetando de cara a importação de insumos.
Foi o meu primeiro contato com o embate entre a agricultura tradicional e a agricultura da revolução verde. No meu mestrado de desenvolvimento agrícola em Paris, o modelo dito moderno era a única alternativa viável para a agricultura como um todo e fui ensinado a acreditar que o melhoramento genético científico era o único caminho para aumentar a oferta de alimentos. O encontro com o Djambarã foi um choque e um alerta que indicava outro caminho embora não resolvesse (para o meu conhecimento na época) o problema da busca do aumento da produtividade.
Em 1983, quando comecei o Projeto Tecnologias Alternativas que veio a criar a AS-PTA [Agricultura Familiar e Agroecologia, uma associação de direito civil sem fins lucrativos] na década de 90, visitei o Nordeste buscando identificar propostas que melhorassem a produção dos camponeses no semiárido nordestino.
Era o último ano de uma das mais prolongadas secas da história da região, embora as mudanças climáticas tenham produzido, desde então, várias secas de três anos e mais uma de cinco. Em 1983 os índices pluviométricos eram favoráveis, em tese. O volume de chuvas estava até acima da média, mas a irregularidade das precipitações criou o que se chamou de “seca verde” e que passou a ser um fenômeno frequente. A vegetação da caatinga estava exuberante, os reservatórios de água estavam cheios e as pastagens viçosas. Mas os roçados de milho, feijão e mandioca foram arrasados por sucessivas estiagens que cobraram novas semeaduras, esgotando as reservas de sementes de feijão e de milho.
Em conversas com grupos de comunidades de agricultores encontrei um frenesi de atividade de busca das sementes perdidas de feijão. Meus interlocutores não se preocupavam muito com as perdas de variedades de milho, dispostos a plantar o que encontrassem no mercado ou com os vizinhos. Mas perdas das sementes tradicionais de feijão eram vividas como algo trágico e todos pesquisavam as ofertas de feijão nas feiras locais vizinhas e até distantes. “Ouvi dizer que acharam o “feijão chumbinho” em tal ou qual município. Vou até lá procurar”. Fiz um rápido levantamento de quantas variedades tinham sido perdidas e me surpreendeu o fato de que, mesmo em uma comunidade pequena, eram vários os feijões procurados, indicando uma alta diversidade das variedades utilizadas. Admitindo que nomes diferentes pudessem ser atribuídos a variedades iguais, mesmo assim o número era significativo. Perguntados sobre a importância de cada uma a resposta era a mesma: os feijões eram muito bem adaptados às condições de produção de cada um, e/ou estavam habituados ao gosto do “seu feijão”.
Foi a primeira demanda de “soluções alternativas” para o projeto que estava iniciando, mas naquela altura eu não tinha uma proposta para a recuperação das perdas. Por outro lado, foi aí que nasceu a ideia de se criar estoques de segurança de sementes para evitar novas perdas no futuro, dando origem, mais tarde, aos programas de criação dos bancos de sementes comunitários. Também foi posterior a ideia de se fazer o resgate de variedades tradicionais ainda conservadas pelos agricultores, visando a sua multiplicação e difusão através de feiras de sementes que passamos a chamar de crioulas.
Hoje estes programas (bancos, feiras e inventários de sementes crioulas) se generalizaram e permitiram a recuperação de centenas de variedades de diversas plantas (feijões, milho, trigo, batata, mandioca, fava, abóbora, centeio, entre outras) em todo o país. Entretanto, percebi em alguns casos, uma má compreensão da problemática da agrobiodiversidade, com ONGs de promoção da agroecologia “importando” sementes crioulas de um lugar para outro, ignorando a especificidade das vantagens destas variedades para os locais onde foram sendo selecionadas e melhoradas pela prática dos agricultores, de geração em geração. O mero fato de serem crioulas não as tornavam adaptadas a situações diferentes dos seus locais de origem, embora algumas delas tenham demonstrado (no caso do milho, em particular) um potencial de disseminação mais amplo.
Este programa foi uma iniciativa de um cientista da Embrapa Milho e Sorgo, de Sete Lagoas, Minas Gerais, afrontando os paradigmas do melhoramento genético dos centros de pesquisa. Altair Machado procurou a AS-PTA, nos anos 90, propondo fazer um experimento envolvendo as equipes da Rede PTA, comparando a performance de variedades crioulas em umas 15 localidades, distribuídas em estados do nordeste, sudeste e sul do Brasil. Em cada local foram selecionadas as variedades crioulas de milho de melhor performance do ponto de vista da produtividade para serem incluídas no ensaio. A título de comparação Altair incluiu no ensaio a variedade de milho mais produtiva e mais disseminada em todo o país naquele momento, a BR 106, da Embrapa. Todos os ensaios incluíram as mesmas variedades, as melhores de cada local. Os ensaios foram feitos nas comunidades, em campos coletivos onde os agricultores eram os responsáveis pelas escolhas: variedades, locais de plantio e observações sobre a evolução das plantas ao longo da safra. O manejo era o mesmo em todos os ensaios: sem adubos químicos ou orgânicos e sem irrigação.
O resultado foi surpreendente: a variedade da Embrapa não chegou em primeiro lugar em nenhum dos casos, se bem me lembro, ficando atrás de pelo menos uma e até quatro das crioulas escolhidas. Entretanto, a variedade da Embrapa estava sempre entre as mais bem colocadas em todos os ensaios. Quatro das variedades crioulas que surgiram como as de melhor performance na grande maioria dos ensaios foram selecionadas por Altair, que se empenhou em exercícios de melhoramento, cruzando-as até chegar a uma variedade que foi batizada de Sol da Manhã, nome de um assentamento de reforma agrária do Rio de Janeiro. O fato da Embrapa ter registrado esta variedade como “sua” gerou protestos das ONGs que participaram do ensaio, mas ficou como fato consumado.
Participei desta experiência com algumas preocupações e dúvidas. Em primeiro lugar, me surpreendeu a pronta adesão de todas as equipes à proposta. Eu tinha acabado de lançar um programa de diagnóstico dos principais problemas dos agroecossistemas mais comuns encontrados nas comunidades com as quais trabalhávamos. Elaborei uma metodologia participativa que era uma fusão dos métodos anglo-saxões muito em voga na época (os Rapid Rural Appraisals, ou diagnóstico rural rápido) com os métodos franceses de análise que tinha aprendido nos meus tempos de estudante em Paris (muito mais aprofundados, mas muito mais lentos e trabalhosos). Apelidamos esta metodologia de Diagnóstico Rápido Participativo de Agroecossistemas, DRPA, mas deveria ter tirado o “rápido” do título. Apliquei o método envolvendo várias equipes nas três regiões onde atuávamos: Sul, Sudeste e Nordeste. Em nenhum desses exercícios a questão da agrobiodiversidade apareceu como um problema prioritário e até hoje me pergunto por que isto se deu, dada a importância que o tema tem para a agroecologia. Prevaleceram os problemas de solos, pragas, adubação, recursos hídricos, secas, mão de obra, outros. Com a experiência dos diagnósticos, fiquei sem entender por que as equipes se entusiasmaram com a proposta do Altair.
Meu segundo problema com o projeto foi a comparação nacional ou multirregional que ele implicava. Que estávamos buscando? Altair estava em busca de um supermilho de âmbito nacional, e nós? Fazia sentido esta busca? Eu não tinha ainda domínio sobre o tema para entender o conceito de “site specificity” (peculiaridade do local), que é uma característica fundamental da agroecologia e contraditória com a busca de uma super variedade, que levaria, se bem-sucedida, a uma erosão genética das mesmas variedades crioulas nas quais o ensaio se baseava.
Esta incompreensão se estendeu a um programa da própria AS-PTA no centro-sul do Paraná. Em alguns anos, o programa de resgate das variedades tradicionais de milho e de feijão ainda usadas pelos agricultores, criou um inventário detalhado com as características de cada uma, promovendo seu melhoramento e divulgando-as em feiras de sementes comunitárias, territoriais, municipais e microrregionais e teve um impacto gigante. Milhares de agricultores voltaram a plantar variedades crioulas, com melhorias no rendimento das culturas por sua maior adaptabilidade às condições específicas de cada propriedade. No entanto, logo nos demos conta de que estes cultivos estavam, sobretudo no caso do feijão, voltados ao consumo caseiro, no máximo com vendas de vizinhança ou comunitária. As variedades usadas para venda aos cerealistas continuavam sendo as recomendadas pela pesquisa convencional, resumindo-se a duas, uma de uma empresa de melhoramento (Agroceres?) e outra do Instituto Agronômico do Paraná. A razão indicada pelos agricultores era a exigência dos compradores, que queriam um produto uniforme para colocação nos mercados das grandes cidades.
O impasse provocado pelo funcionamento do mercado nacional nos levou a dirigir a produção das sementes crioulas para as feiras locais, de vizinhança, de comunidades e municipais. Isto ampliou o uso das sementes de variedades crioulas, mas não resolveu o problema da colocação de quantidades maiores de produto, atrelada às compras dos cerealistas.
Procuramos criar algumas misturas de sementes, juntando as que tinham o mesmo tamanho e formato dos grãos (a cor era preta para todas as variedades) e o mesmo tempo de cozimento. Testes em supermercado do Rio de Janeiro geraram interesse na compra de um desses mix, que teve a preferência dos consumidores em testes de aceitação, onde os feijões de marcas comerciais perderam sistematicamente. Mas isto não resolveu o problema. Entre as mais de 130 variedades identificadas no programa, apenas 4 ou 5 seriam privilegiadas e como a demanda era em grandes quantidades, atender estas exigências levaria ao abandono das outras.
Esta experiência nos levou a uma conclusão importante: a diversidade varietal, critério básico para a melhor performance dos sistemas agroecológicos, contrariava diretamente a lógica dos grandes mercados e confinava a produção ao tamanho diminuto das feiras locais. Como resolver este problema? A generalização das práticas da agroecologia exigiria uma profunda modificação dos sistemas de comercialização ou entraria em choque com a uniformidade imposta pelo mercado.
O programa de sementes crioulas no Paraná acabou entrando na mesma lógica do programa nacional do milho crioulo. Em um convênio com a Universidade Estadual de Londrina, UEL, perto de 10 mil agricultores passaram a fazer plantios experimentais de sementes de variedades crioulas controlados por uma matriz científica, implicando na geração de dados que permitiram aos acadêmicos realizar dezenas de cruzamentos visando a produção de super variedades de alta performance para as práticas agroecológicas.
A AS-PTA acabou se afastando desta proposta, assim como os milhares de agricultores experimentadores. Até hoje não sei o que a UEL fez com todos os dados acumulados em anos de experimentação. Todo esse processo e, na verdade, todo o programa de transição agroecológica no centro sul do Paraná foi atropelado pelas políticas de apoio à agricultura familiar adotados nos governos de Fernando Henrique Cardoso e ampliados por Lula e Dilma. Crédito facilitado e o seguro para as safras financiadas pelo PRONAF levaram os agricultores de volta para o sistema convencional, inclusive atraindo-os para a cultura de soja, no lugar do milho e do feijão. O efeito foi criar uma forte diferenciação no público de agricultores familiares, com uma minoria “enricando” e muita gente se endividando e até falindo e abandonando o campo.
Em agosto de 2000 participei de uma reunião conjunta do CGIAR (coordenação dos centros internacionais de pesquisa agropecuária) e do GFAR (fórum global de pesquisa agropecuária), este último agregando os centros nacionais de pesquisa, em Dresden, Alemanha. Como parte das atividades paralelas deste encontro visitei, na região de Brandemburgo, a mais antiga propriedade aplicando métodos da agricultura orgânica no país e, provavelmente, em toda a Europa.
Com mais de 80 anos de prática contínua de produção orgânica, esta propriedade era muito diversificada, com várias culturas e criações bem integradas. No entanto, ela tinha um limite claro no desenho do sistema produtivo: cada lote era uma monocultura, embora as rotações entre eles minimizassem este efeito.
O alemão que apresentou a propriedade, em uma longa visita a todos os lotes, mostrou também (como bom alemão) todos os dados agronômicos e econômicos compilados metodicamente ano após ano. Espantou-me a constatação de que o sistema não seria viável economicamente sem um sobrepreço de 25%, em média, para todos os produtos. Segundo ele, isto se explicava por um diferencial de produtividade em relação aos sistemas convencionais da mesma região. A propriedade orgânica tinha vantagens econômicas, menores custos de insumos e maiores de mão de obra, mas a diferença de produtividade a fazia cobrar um prêmio de qualidade para se viabilizar.
Discuti muito com o alemão sobre esta produtividade menor, buscando uma explicação, já que sistemas orgânicos nos Estados Unidos conseguiam resultados equivalentes para quase todas as culturas, de acordo com pesquisa publicada nos anais da Academia Nacional de Ciências. Depois de esgotarmos todas as hipóteses me ocorreu perguntar quais as variedades que utilizava nos seus plantios e ele me disse que eram as disponíveis no mercado. Bingo! Estas variedades convencionais eram melhoradas para otimizar o uso dos adubos químicos do método dito moderno e não eram bem adaptadas ao manejo orgânico.
Perguntei ao alemão por que não usava variedades tradicionais, desenvolvidas antes da invasão das sementes de empresas e ele me disse que elas tinham desaparecido completamente. A única alternativa que lhe restaria era acessar os bancos de sementes que conservavam estas variedades para fins de pesquisa e eventual uso em melhoramentos e ele me disse que este acesso era muito difícil. Impasse.
Hoje em dia o movimento de agricultura orgânica em toda Europa está reintroduzindo sementes de variedades tradicionais e exercitando processos de melhoramento por parte dos produtores. É um processo lento e cheio de problemas com o mercado, já que as empresas processadoras cobram características bem específicas nas suas demandas aos produtores, em particular no caso do trigo. O movimento já está sendo empurrado para a criação de empresas processadoras especializadas no uso de variedades tradicionais.
No passado, havia uma padaria em cada esquina e as diferenças nas variedades de trigo não tinham maior importância. A medida em que processos industriais foram aumentando a escala da fabricação do pão este processamento semiartesanal foi desaparecendo. Mas uma megaindústria panificadora necessita grãos muito homogêneos e com características voltadas para o máximo lucro no processamento. Variedades com maior conteúdo proteico passaram a ser privilegiadas, não por seu valor nutricional, mas por renderem mais pão com menos trigo. Na verdade, este processamento industrial exige maior uso de levedo, oxidantes químicos, gordura, sal, enzimas e emulsificadores ao mesmo tempo que destrói ou retira fibras, sais minerais, vitaminas, óleos naturais e outros componentes. A vantagem está na possibilidade de se cozinhar uma enorme quantidade de pão em 30 minutos, com poucos trabalhadores. Não há como compatibilizar trigo agroecológico com este processo industrial.
Além do choque entre o uso de sementes de variedades crioulas com o sistema agroalimentar, descrito acima, a promoção da agroecologia esbarrou com o paradigma convencional da agricultura no momento do acesso a políticas públicas, como o crédito e o seguro agrícola.
Na segunda metade dos anos noventa o programa da AS-PTA no Paraná andava de vento em popa. Milhares de agricultores aderiram à proposta que buscava (inicialmente) substituir os insumos químicos e as sementes melhoradas por biofertilizantes, bioinseticidas e sementes crioulas.
A equipe da AS-PTA na região centro-sul do estado formulou um biofertilizante, apelidado pelos agricultores de “adubo da independência”, orientando os camponeses a produzi-lo de forma caseira ou, em alguns casos, em quantidades maiores produzidas e distribuídas pelos sindicatos de trabalhadores rurais. Da mesma forma foram divulgadas várias formulações biológicas de controle de pragas e doenças, também produzidas pelos próprios agricultores. Finalmente, praticamente cessaram as compras de sementes convencionais de milho e diminuíram as de feijão, substituídas pelas crioulas. Nada disso foi feito com o uso de créditos do Pronaf, já que os investimentos eram bastante módicos e assumidos pelos agricultores com mais recursos. Entretanto, o sindicato e a secretaria de agricultura de ——– decidiram fazer uma operação de aceleração da produção descentralizada de insumos e formularam, com a colaboração da Emater do município, cerca de dois mil projetos de crédito, com um valor padrão de 1,5 mil reais. Isto facilitaria a compra de pequenos equipamentos, alguns insumos como o bokashi e outros e sementes crioulas.
O impasse aconteceu na agência local do Banco do Brasil. O gerente recusou todas as propostas por não estarem conformes às orientações da Embrapa para a produção de arroz e feijão na região. A AS-PTA discutiu com o gerente, que cobrou provas de que os insumos agroecológicos eram confiáveis para garantir as safras e o pagamento dos empréstimos. Fomos obrigados a levar amostras do “adubo da independência” para exame laboratorial e apresentar laudos comprovando a excelência do fertilizante. Isso foi feito também com as sementes, com laudos comprobatórios do seu poder germinativo. Apesar de tudo isso, o gerente só liberou os empréstimos quando a AS-PTA apelou para um supervisor regional do Banco do Brasil, que deu ordens para ir adiante.
O exemplo mostra como, mesmo com projetos simples de substituição de insumos, o sistema de crédito era muito refratário às propostas técnicas que fugissem das orientações convencionais da Embrapa. Nem chegamos a testar projetos mais complexos de transição agroecológica.
Com o advento dos governos populares de Lula e de Dilma, o crédito Pronaf foi facilitado e ampliado, permitindo que milhões de agricultores o acessassem em todo o país. Foi criada uma linha de crédito especial para projetos de transição agroecológica, mas o modelo era totalmente inapropriado e poucos agricultores o acessaram. No centro-sul do Paraná, os milhares de participantes do projeto da AS-PTA formularam demandas de crédito do tipo Pronaf C. Houve resistências de gerentes, idênticas às descritas acima (ocorridas no governo de FHC), mas pressões de níveis superiores do Banco do Brasil ou do próprio MDA permitiram superar os problemas e rolou crédito para milhares em 2003.
Tudo parecia ir às mil maravilhas, mas o clima não ajudou e um veranico mais pesado levou a quebras de safra na região. Os produtores usando insumos agroecológicos tiveram quebras bem menores do que os convencionais, mas tiveram uma amarga surpresa no momento que foram solicitar o seguro por perdas de safra e receberam uma negativa do BB.
O argumento do banco estava baseado nas regras do seguro rural, total e rigidamente vinculadas ao emprego do modelo convencional de produção. O seguro só era pago se o agricultor apresentasse recibos das sementes certificadas compradas, assim como os dos fertilizantes químicos e dos agrotóxicos. O baque no programa foi gigante e levou a imensa maioria dos participantes de regresso ao sistema convencional. Todos estavam conscientes de que teriam custos maiores em comparação com o modelo agroecológico e riscos maiores do ponto de vista ambiental, mas a segurança do seguro convencional levou a melhor no balanço de prós e contras.
Em nome da AS-PTA eu negociei com o MDA a superação deste problema. Conseguimos fazer com que a Embrapa aceitasse reorientar os protocolos dirigidos aos gerentes dos bancos de forma a que os insumos agroecológicos fossem aceitos como válidos tanto para a aprovação dos projetos de crédito como para o pagamento do seguro, mas no que concerne o uso de sementes crioulas tudo travou.
Segundo o povo da Embrapa só é aceito como semente “válida”, aquela que é registrada em catálogo, sob responsabilidade do melhorista que a desenvolveu, individuo ou empresa, pública ou privada. Tudo mais é chamado de “grão” e considerado sem valor como insumo.
Depois de inúmeros debates conceituais e práticos logramos que fosse admitido o uso de sementes crioulas, mas foi exigido que se fizesse algum tipo de certificação de modo a distingui-las dos grãos propriamente ditos. Mas como certificar uma semente crioula? Os indicadores que definem e que permitem distinguir uma semente convencional de outra cobram, em primeiro lugar, uma grande uniformidade nas plantas nascidas dessas sementes. Desde logo, as sementes crioulas não têm esta uniformidade e isto é uma de suas vantagens, do ponto de vista da resistência a diferentes tipos de estresses, de temperaturas, altas ou baixas, a ataques de pragas, de secas a excesso de chuvas.
Meus interlocutores do Cenargen e do programa de seguros do MDA propuseram que se criasse um catálogo de sementes crioulas, aceitando que usássemos outros indicadores do que os que distinguem as variedades convencionais. Formei um grupo de agricultores no projeto da AS-PTA no Paraná para responder a uma pergunta simples, mas de difícil resposta: “como reconhecer uma determinada variedade crioula?”. Este grupo era composto por agricultores muito experimentados no programa de resgate, melhoramento e multiplicação de sementes crioulas e eu já tinha visto alguns deles discutindo se uma dada semente, recém identificada na lavoura de um agricultor, era realmente “nova”, ou seja, nunca tinha sido identificada na região, ou era apenas uma igual a outras, mas com um nome diferente. Com este grupo criamos um conjunto de descritores que permitiam diferenciar as sementes crioulas e montar um catálogo que orientasse os gerentes de banco para aceitar projetos agroecológicos com este tipo de insumo.
Para minha surpresa os técnicos do Cenargen toparam a proposta e o MDA aceitou financiar um esforço de criação do catálogo, inscrevendo todas as sementes crioulas conhecidas e incorporando outras à medida que fossem sendo identificadas e descritas. Tudo parecia estar sendo resolvido, depois de um par de anos de idas e vindas, quando chegamos a outro tipo de impasse.
Pela legislação brasileira e internacional que define o que é semente e o que é variedade de uma planta, existe sempre a figura do “detentor”, ou seja, quem desenvolveu e/ou registrou a semente. No caso das crioulas, este detentor não é, geralmente, um indivíduo, mas um coletivo inorgânico. Na experiência do Paraná, onde foram identificadas centenas de variedades de milho e de feijão (além de outras, em menor escala), uma variedade crioula pode ter sido encontrada nas lavouras de um a dezenas de agricultores. Quem seria o “detentor”? Mesmo se inscrevêssemos todos os que identificamos como plantadores da variedade em questão, sempre poderiam aparecer outros que não tinham sido identificados anteriormente. Por outro lado, a solução de se fazer o registro no nome dos sindicatos ou da própria AS-PTA, (desde que todo o público aceitasse essa “propriedade simbólica”), esbarrou em uma questão político ideológica: o sentimento de “propriedade” dos agricultores que se preocuparam em conservar suas variedades tradicionais. Todo mundo estava disposto a aceitar que o acesso a estas sementes seria livre, mas muitos reivindicavam que elas levassem o seu nome ou o nome pelo qual eles a conheciam, herdado de pais e avós.
Depois de mais uns anos de discussões chegamos a uma fórmula insatisfatória, um quebra galho institucional: o MDA faria uma lista de entidades que seriam reconhecidas como capazes de comprovar, para os bancos, que tal ou qual variedade crioula inscrita em algum projeto era mesmo o que dizia ser e não um mero “grão”. Isto foi feito, mas naquela altura, lá pelo fim dos anos 2000, a maioria das ONGs de promoção da agroecologia tinha se afastado do crédito PRONAF enquanto a orientação deste foi se voltando, sempre mais, para financiar o emprego de técnicas convencionais.
Depois destas frustrantes experiências, a questão do crédito e do seguro e sua aceitação do uso de variedade crioulas, continua em aberto e este governo vem fazendo mais do mesmo, prolongando os impasses do passado.
Para quem se surpreendeu com a minha ignorância em relação à importância da agrobiodiversidade ao longo destas historinhas do passado, lembro que por longo tempo estivemos navegando no escuro, procurando por algo que era muito pouco conhecido e estudado. O próprio termo agroecologia e o seu conteúdo só passam a ser vulgarizados com o livro de Miguel Altieri, que a AS-PTA traduziu e editou no final dos anos 80. E mesmo hoje em dia, é muito comum a confusão entre orgânico e agroecológico.
Apesar dos protestos dos produtores orgânicos, por muito tempo houve uma diferença entre uma proposta e a outra. Orgânico era (e ainda é em muitos lugares, em particular nos Estados Unidos) um produto sem uso de químicos e com restrições ao uso de sementes transgênicas. Neste sistema a produção é em monoculturas, sobretudo para permitir a mecanização das colheitas.
Com o passar dos anos os orgânicos foram incorporando os conceitos mais aprofundados da agroecologia e alterando suas práticas para adotar desenhos produtivos mais diversificados e complexos. Por outro lado, muitos produtores agroecológicos passaram a adotar a denominação de orgânicos por uma razão de mercado, já que este termo é mais conhecido dos consumidores. Não existe um selo agroecológico formalizado, mas os selos orgânicos estão inscritos até em leis. Para concluir, um produto agroecológico é, necessariamente, orgânico, enquanto um produto orgânico não é, necessariamente, agroecológico.
A agrobiodiversidade é um componente essencial de um sistema agroecológico de produção, tanto pela diversidade de plantas cultivadas como pela diversidade das variedades destas plantas. No entanto, a aplicação integral dos princípios da agroecologia entra em conflito com o funcionamento do mercado, em particular da indústria de transformação de alimentos. O futuro vai exigir, se quisermos generalizar o uso da agroecologia no conjunto da agricultura, que se alterem profundamente as outras etapas do sistema agroalimentar, com a descentralização e territorialização das indústrias de processamento e a adoção de métodos adequados para lidar com a diversidade da matéria prima e a preservação do seu conteúdo nutricional.
Por outro lado, generalizar a agroecologia vai exigir que se defina um sistema de financiamento da transição e de seguros que sejam adaptados às características deste sistema. Estamos, infelizmente, longe disso.
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Navegando nas águas da agrobiodiversidade. Artigo de Jean Marc von der Weid - Instituto Humanitas Unisinos - IHU