Maria da Conceição Tavares nasceu em Anadia, região centro-norte de Portugal, em 1930. Ao longo de sua infância, viveu os ecos da Guerra Civil Espanhola. Estudou e formou-se em matemática, tendo contato com comunistas do quilate de Bento Caraça. Em fevereiro de 1954, em uma terça-feira de Carnaval, veio para o Brasil com o marido, grávida da primeira filha. A identificação com o país foi instantânea. Em meio à euforia da brasilidade do fim dos anos 1950 e início dos anos 1960, ela naturaliza-se e, a partir daí, torna-se uma das brasileiras mais notórias na contribuição às ciências e à política.
A entrevista é de Luiz Felipe Osório, doutor em economia pela UFRJ e professor do programa de pós-graduação em economia política internacional e do Instituto de Relações Internacionais e Defesa da UFRJ, e Maurício Metri, professor de Relações Internacionais e do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ), publicada por Revista Margem Esquerda e reproduzida por Blog da Boitempo, 26-04-2024.
Aqui, testemunha da desigualdade nacional, ela trilha o caminho da reversão das injustiças sociais pelo estudo de economia na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Com brilhantismo e coragem, galga espaços antes somente ocupados por homens, alargando horizontes e inspirando gerações. Seu pioneirismo é marcante: foi uma das primeiras pessoas graduadas com a honraria summa cum laude na universidade; foi a primeira professora daquela escola de economia; foi a primeira pesquisadora latino-americana na Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe; fundou e conduziu os principais programas de pós-graduação em economia no Brasil, na Unicamp e na UFRJ; elaborou programas de política econômica de âmbito nacional, tendo sido referência nos debates nacionais; participou ativamente na construção do espaço das mulheres na política após a redemocratização, tendo passado por importantes partidos políticos.
Em toda sua longa trajetória, que ora completa 94 anos de vida, Tavares destacou-se não apenas pela formação de gerações de economistas, mas também pela representatividade, por escancarar os ambientes herméticos às mulheres, e, sobretudo, pela defesa intransigente do nacional-desenvolvimentismo; do crescimento econômico com distribuição de renda; de uma política externa independente; da erradicação das desigualdades sociais; de uma sociedade brasileira mais justa e igualitária. Em momento nenhum deixou-se levar pela onda tecnicista e privatista, sempre pontuando o compromisso do economista com a justiça social, com o povo e com a nação.
Maria Conceição Tavares (Foto: Instituto de Economia/ Unicamp)
Como uma cientista social, suas ideias não se limitaram ao campo heterodoxo da economia e influenciaram pensadores em outras searas, como na ciência política e nas relações internacionais. Sua perspectiva, sempre muito própria e original, esteve permanentemente voltada para o olhar internacional, sem perder a mirada a partir da condição de periferia do Brasil e da América Latina. Sua amplitude de compreensão de mundo permitiu à Conceição Tavares a perspicácia necessária para ler e interpretar os fenômenos sociais com pioneirismo e originalidade. Destacam-se aqui dois momentos. Em meio à crise do fordismo e às transformações da face do capitalismo, ela direciona o foco para além do capitalismo industrial, apontando para o capital financeiro, as finanças e a financeirização como o horizonte do capitalismo mundial. E, pouco mais tarde, quando este estava envolto na crise da hegemonia estadunidense, ela vai contra a corrente dominante até nos Estados Unidos, para reafirmar o poderio norte-americano sobre moeda, finanças e armas. Em ambos os casos, o curso da história lhe deu razão.
Sua firmeza teórica coaduna-se com a prática política, uma união desejável, mas nem sempre factível entre os intelectuais. Foi quase que conduzida ao Parlamento por um eleitorado majoritariamente feminino e insatisfeito com a dita modernização neoliberal. Todos aqueles que não se satisfazem com o conforto dos modismos estavam a seu lado, na defesa do patrimônio e da soberania nacional em meio à dilapidação empreendida pelas privatizações e pela desconstrução do Estado brasileiro. Sua atuação foi fundamental para balizar um pensamento crítico e uma prática de resistência que orienta importantes setores sociais ainda hoje.
Ao longo dessa vida de engajamento, uma de suas marcas foi a intensidade. Com a mesma força que defenestra os detratores, é capaz de acolher, de defender e de ser extremamente fiel aos amigos e alunos. Sua vida e obra foram contadas com maiores detalhes no livro Maria da Conceição Tavares: vida, ideias, teorias e política, organizado por Hildete Pereira de Melo, e publicado pelo Centro Celso Furtado em parceria com a Fundação Perseu Abramo e com a editora Expressão Popular.
Com a elegância de sempre, recebeu a Margem Esquerda em sua casa, por meio dos entrevistadores Luiz Felipe Osório e Maurício Metri, em uma tarde aprazível do Rio de Janeiro, que contou com a valiosa presença da companheira de lutas e vizinha, a economista Hildete Pereira de Melo. Sentada na poltrona, fumando um cigarro com a serenidade que a vida lhe trouxe, o sorriso inconfundível, a firmeza e a lucidez costumeiras, Maria da Conceição Tavares concedeu muito mais do que uma entrevista, mas, sim, uma verdadeira aula de história política do Brasil, que se confunde em muito com sua trajetória pessoal. Mais que isso, encheu corações e mentes de esperança para o futuro do Brasil.
Em um tempo ainda mais difícil que o atual – não que nosso presente seja fácil, muito pelo contrário, é de extrema dificuldade –, a senhora ousou romper o tom quase monocórdio da intelectualidade no Brasil, colocando-se em uma posição de destaque e de muito respeito público, à direita e, ainda mais, à esquerda. Hoje, com o privilégio de poder olhar para trás, como a senhora se vê enquanto mulher e intelectual, em um terreno tão inóspito?
Tenho o respeito da direita civilizada, eu diria. Passei, naturalmente, pelas dificuldades veladas do machismo, mas nunca por um episódio isolado marcante. Meu trato com os economistas, na universidade, como com o professor titular Octávio Gouvêa de Bulhões – um gentleman, open-minded –, de quem fui assistente e que abriu as portas para minha vida acadêmica – fui a primeira professora mulher da Escola de Economia da UFRJ –, assim como também o foi na Cepal, com Aníbal Pinto Santa Cruz, quem me apresentou para o Chile e para a América Latina, até o fim, com minha aposentadoria, e ainda hoje, sempre foi cordial e de respeito mútuo. Fui a única economista e pesquisadora feminina na Cepal, ou seja, em toda a América Latina e Caribe. Sempre consegui um amplo apoio em torno de minhas pautas mais heterodoxas lá e cá. As pós-graduações em economia no Brasil passaram, em maior ou menor medida, por minha influência. Ajudei a fundar, principalmente, as pós-graduações em Campinas, na Unicamp, e no Rio de Janeiro, na UFRJ.
A senhora afirma em muitas entrevistas que foi eleita, principalmente, pelas mulheres, que viabilizaram consideravelmente sua candidatura ao Parlamento. Como foi fazer política naquela época?
A perseguição a mim veio antes de minha carreira política, quando, durante a ditadura militar, cheguei a ir em cana. As mulheres tiveram um papel decisivo em minha eleição. Aqui em Laranjeiras obtive uma votação muito expressiva (até mesmo de pessoas à direita), ficando em primeiro lugar geral na cercania. Foi uma campanha baseada em muitas palestras em espaços públicos (universidades, institutos de pesquisa e empresas públicas), as quais sempre estavam lotadas. Foi uma eleição enraizada nos ambientes intelectuais do Rio de Janeiro. Aliás, boa parte das doações de campanha foi feita por ex-alunos e ex-alunas, tanto da UFRJ como também (e fundamentalmente) da turma da Unicamp. O pouco de recurso que a gente tinha foram eles que deram. Até hoje tenho uma camiseta da campanha.
A senhora foi, para muitos, o símbolo da redemocratização, como aparece no documentário Livre pensar: cinebiografia de Maria da Conceição Tavares, de José Mariani, o ilustrativo encontro de Dilma e Serra em seu aniversário de oitenta anos, ambos ex-alunos e pré-candidatos à presidência em 2010. Vocês três se abraçam e alguém grita “Viva a democracia!”.
A democracia para mim sempre foi de máxima importância! Eu me tornei uma figura nacional após o Plano Cruzado, quando dei muitas entrevistas e apareci constantemente na mídia. Depois disso, não podia sair na rua que todos me reconheciam. Nunca mais fui ao cinema sem ser reconhecida e abordada, sobretudo por mulheres, que sempre manifestavam alguma admiração. Até pouco tempo, por volta de 2013, 2014, quando ainda ia ao cinema, não era diferente. Na redemocratização, além dos esforços voltados à recuperação econômica, havia uma esperança e um entusiasmo político geral quanto ao futuro. Eu sou ligada à visão otimista do país, não à visão pessimista. Apesar de sempre ter sido crítica do país quanto à ditadura e quanto à desigualdade, eu sempre fui otimista.
Com o atual retorno de uma proposta de governo muito semelhante à do primeiro governo militar, de Castello Branco, e o contexto de retrocessos sociais que a acompanha, como a senhora analisa, agora retrospectivamente, o que foi o período de redemocratização e o aparente retorno às bases de 1964?
O trem da redemocratização saiu do trilho. Só há direitistas agora. Nunca tivemos um homem de direita no poder como este que está aí. Isto não tem precedente histórico, nem na ditadura. O governo Castello Branco foi muito curto. Este governo que está aí é um espanto. A desgraça é dar um recuo desses. É difícil de entender a última eleição. Haddad poderia ser ou não uma figura simpática, até era, mas não exportava o ódio. Espero que não, mas, sim, pode ser que tenhamos retornado a algumas bases de 1964. Pode ser que a redemocratização tenha sido apenas um soluço nessa dinâmica, eu espero que não. A direita voltou muito violenta.
A senhora vivenciou bem a ruptura de 1964 com o período anterior. Desde a apreensão com o suicídio de Vargas e a iminência de golpe militar até o otimismo dos anos JK, do presidente bossa nova, da afirmação da brasilidade e do apogeu do desenvolvimentismo, do nacionalismo progressista e da política externa independente.
Eu cheguei ao Brasil em 1954, em fevereiro, em pleno Carnaval, imagine só. Fiquei abismada, estupefata com a animação de rua. Em agosto, Vargas se matou, foi péssimo. Eu chegara junto com meu então marido, que era engenheiro, e já vinha com um emprego. Eu ainda era matemática, conforme minha primeira graduação, sem emprego, e estava grávida de minha primeira filha. Não arrumei emprego, prestei concurso e fui aprovada para trabalhar como matemática no INIC [Instituto Nacional de Imigração e Colonização]. Lá eu trabalhava com os dados da política agrária no Brasil. Foi assim que me entusiasmei a estudar o país, pois tomei ciência da tragédia que éramos. O momento foi muito fértil para as ciências, para as artes e para a cultura. Mesmo com as relações mercantis generalizadas, que já estavam postas desde o século XIX, com o modelo capitalista agrário-exportador, o capitalismo industrial chega ao Brasil com Vargas e desabrocha com Juscelino. Tal foi a euforia no governo JK que eu me naturalizei brasileira. Estava um clima ótimo. Em 1964, veio o golpe. Na universidade foi ruim. Na economia, apesar do interregno liberal de Castello Branco, os governos militares eram desenvolvimentistas. Politicamente é que se deu a grande ruptura. Um horror.
As análises mais detidas sobre sua obra apontam Marx, ao lado de Keynes e Kalecki, como o eixo do tripé de seu conhecimento econômico. Qual foi a medida de cada um? Especialmente, qual sua relação com Marx e com os marxismos?
É difícil falar nesses termos. Cada qual tinha sua relevância, os três complementares de alguma forma, apesar de entre eles não haver continuidade, ou melhor, uma ponte, um caminho linear. Eram bem distintos. Keynes, por exemplo, era um gênio, mas não era marxista em nenhum sentido. Kalecki usa o esquema dos três setores, era mais marxista, genial, porém, menos conhecido que Keynes. Nenhum economista teve a visibilidade de Keynes nos círculos mais tradicionais. Marx era tido como importante, mas era o maldito, sobretudo entre as classes dominantes dos governos ocidentais. Quanto aos marxismos, depende muito. Há tanta besteira por aí. Marx, sim, era um gênio. A visão histórica de Marx sobre o desenvolvimento das forças produtivas é o fio da meada do capitalismo. E a teoria do valor é imprescindível. Tanto o primeiro quanto o terceiro livro de O capital foram aqueles sobre os quais eu mais me detive nas aulas e nos estudos. O segundo eu li, mas não me aprofundei. Politicamente sempre estive alinhada com Marx em busca de uma sociedade igualitária. Eu tive muito contato desde cedo com marxistas, sobretudo com matemáticos, que foram meus professores em Portugal, como o comunista Bento Caraça. Aqui conheci pessoalmente Luiz Carlos Prestes e até cheguei a fazer um debate com ele na televisão, mas tínhamos apenas uma relação protocolar. Tive mais contato com Ignácio Rangel.
Em seu livro Da substituição de importações ao capitalismo financeiro, de 1972, a senhora aperfeiçoa a leitura sobre a periferia latino-americana e, ao mesmo tempo, rompe com as teses cepalinas mais conhecidas, inaugurando uma perspectiva própria sobre a dependência. Dentro do amplo espectro do que são as teorias da dependência, a senhora tomou um caminho diferente do de Celso Furtado e das teses cepalinas e também distinto das teorias marxistas da dependência. Como a senhora se situa nesse universo?
Esse meu livro teve várias edições, não ficou velho. Nunca fui de encaixar-me em lugar nenhum! Sempre trilhei um caminho próprio! Tenho convergências com Furtado, com os cepalinos e com os teóricos marxistas da dependência, com os quais convivi no Chile, mas também muitas divergências. Vânia Bambirra foi uma ótima e brilhante economista. Com quem não tenho convergência nenhuma é com Fernando Henrique Cardoso e com Enzo Faletto.
Não apenas em seu primeiro livro como também nas reflexões seguintes, a financeirização, as finanças e o capitalismo financeiro estiveram muito presentes em suas análises, aliás, foram traços diferenciadores de seu pensamento. No momento de crise do fordismo, enquanto modo de desenvolvimento do capitalismo mundial, a partir da década de 1970, a senhora foi uma das primeiras mentes a captar essa mudança e a indicar para onde ela nos levaria. Como a senhora discute essas transformações na face do capitalismo, ou seja, a transição do fordismo para o que se pode chamar de pós-fordismo?
Sim, é verdade, foi possível tirar a foto do carro em andamento e pegá-lo com nitidez. Ninguém falava disso à época no Brasil. A financeirização é a essência do capitalismo moderno. O momento que você aponta (a crise do fordismo) é determinante, sim, para entender o contexto atual. Eu não chamaria de pós-fordismo, mas de ascensão da globalização, ou seja, do capitalismo internacional. A financeirização está no âmago da crise do fordismo. Eu completo o raciocínio iniciado nesse momento com o meu artigo de 1984, “A retomada da hegemonia norte-americana”.
A propósito, a segunda grande originalidade de seu pensamento encontra-se nesse artigo citado. O que levou a senhora a direcionar o foco para temas não convencionais ao pensamento crítico latino-americano sem abandonar a perspectiva periférica?
Foi original mesmo, pois ninguém havia falado direito sobre isso ainda. Todo mundo dizia que a hegemonia norte-americana havia acabado, essa era a posição geral da academia, inclusive nos Estados Unidos. Lá, estavam convencidos de que havia terminado a hegemonia norte-americana. Naquela altura o Japão era cogitado para substituir os Estados Unidos. Eu até fui visitar o Japão por causa disso, e cheguei a orientar duas teses sobre o Japão, mas em nenhum momento acreditei que a mudança fosse plausível. A euforia deve ter durado pouco mais que uma década. Foi precursora da revolução microeletrônica, baseada na descoberta tecnológica. Foi efêmera. O internacional sempre foi parte de minhas preocupações, logo, de minhas análises. Aprendi isso na Cepal, era impossível ser cepalina sem ter o olhar internacional. Eu estava muito alarmada quanto ao chamado choque de juros, de 1979, o que gerou uma crise nos Estados Unidos e em todo o mundo. Esse momento me permitiu ver com mais clareza o que tinha ocorrido. Não acabou hegemonia norte-americana nenhuma, foi uma crise temporária, decorrente de uma política econômica interna desastrada. Depois do choque de juros, eles reafirmam a hegemonia, enquadrando os outros países. Mesmo assim, demorou um tempo para a economia norte-americana se recuperar.
No fim da década de 1980, a senhora retorna de Campinas e volta ao Rio de Janeiro para assumir importantes postos no Instituto de Economia da UFRJ e tocar uma inovadora e crítica agenda de pesquisa, a qual se estruturou em torno das transformações econômicas e lutas de poder. Por meio de importante colaboração do professor José Luis Fiori, livros foram publicados por toda a década de 1990 e até um projeto acadêmico de programa de pós-graduação nos anos 2000 [o de Economia Política Internacional, do Instituto de Economia da UFRJ] saiu do papel. Como foram esses anos, que mesclaram o ativismo político e o intenso engajamento acadêmico?
Fiori era cientista político, o que me ajudava a ver o outro lado. Nós nos conhecemos no Chile, no exílio, e desde então estabelecemos uma longa parceria, que dura até hoje. Na metade dos anos 1980, terminei meu período de licença em Campinas, na Unicamp, e optei por voltar ao Rio de Janeiro, para a UFRJ. Levei comigo toda uma agenda de pesquisa, a qual foi abraçada por Fiori e por alguns poucos professores mais heterodoxos do Instituto de Economia. A maioria dos docentes daquela época do Instituto de Economia estava no governo, eles faziam política econômica, mas não faziam pesquisa acadêmica. Desse movimento vem nosso primeiro ensaio, de 1993, (Des)ajuste global e modernização conservadora e, posteriormente, os três livros vermelhos, todos com a organização de Fiori: Poder e dinheiro, de 1997, Estados e moedas no desenvolvimento das nações, de 1999, e O poder americano, de 2004. Foram publicados em um contexto ainda desfavorável, sobretudo os dois primeiros, em meio à euforia das privatizações neoliberais do governo FHC. Serviram como uma injeção na veia de crítica. Eu sempre fui resistência contra o neoliberalismo. Só não estou ainda agora porque me faltam forças.
A senhora diferencia-se de outros economistas heterodoxos, pois tangencia também outras áreas de pensamento, como a ciência política e as relações internacionais. Em suas reflexões a senhora alarga seus horizontes, trazendo à baila análises sobre outros países. Como a senhora, que perpassa o tema da hegemonia, identifica o papel da China nas relações internacionais contemporâneas e sua relação imbricada com os Estados Unidos no sistema internacional?
Como disse, a China é completamente diferente do Japão. Nunca foi enquadrada por ninguém, nem pela União Soviética. A China é uma jiboia. Eu quase fui à China, mas tive um imprevisto e não consegui. Como ela tem uma política muito voltada para questões internas, nem sempre se pode conhecê-la com a clareza devida, o que faz com que ela pese menos que a Rússia hoje no cenário internacional, no tocante ao poder político e militar. A Rússia ainda usufrui muito do inventário da União Soviética e impõe-se internacionalmente até mais do que a China, como comprova o recente caso da Venezuela. Repetindo, a China é uma jiboia politicamente. É muito grande e fica recolhida, pronta para dar o bote. Tem uma postura isolacionista em muitos aspectos. Até onde os olhos podem ver, ela não sobreporá a hegemonia norte-americana, não no curto prazo. A China detém uma enorme parcela dos títulos da dívida estadunidense, o que a coloca em uma posição particular, até nebulosa. Hoje em dia, a China está até mais ativa, comprando empresas em todo o mundo, como na África e na América do Sul. Não se pode esquecer, todavia, que lá rege o capitalismo de Estado, que é do sistema capitalista, mas não é exatamente igual ao capitalismo de mercado das potências ocidentais. Lá não há nada de democracia liberal. Qualquer preponderância que a China venha a ter em um futuro distante em nada se assemelhará com o que vemos com a hegemonia norte-americana.
A senhora influenciou gerações de pensadores, economistas e políticos, sobretudo daqueles à esquerda. A senhora tem o privilégio de olhar para trás. Hoje, consegue ver traços de seu pensamento na prática política?
Eu saí do PMDB e entrei para o PT em 1994. A morte do Ulysses [Guimarães] foi fatídica para o PMDB, que virou uma choldra. No PT, ao qual ainda estou filiada, tenho concordâncias e discordâncias, o que é normal, principalmente em algumas inflexões históricas, como a Carta aos brasileiros, de 2002, com a qual nunca estive de acordo. De qualquer forma, foram feitos avanços sociais indiscutíveis. O principal deles talvez seja a política de reajustes de salários, que foram além do crescimento da economia. O aumento do poder de compra do salário-mínimo foi a grande política econômica, mais até do que as políticas sociais, como o programa Bolsa Família, muito importante, mas acessório do ponto de vista do crescimento econômico.
Como é sua vida após a aposentadoria?
Acordo com calma, venho para a sala e leio muito, leio tudo, jornais, revistas e livros. Converso muito com os amigos, com a vizinha [risos], com os familiares, curto os netos, só não vejo é televisão. A única coisa que vejo na televisão é futebol. Sou fanática pelo Vasco da Gama e acompanho tudo que posso. Ele não anda muito bem das pernas, mas não foi desclassificado da Copa do Brasil, foi por um triz! O Vasco é um time muito popular aqui no Rio. Estava combinando com minha vizinha [Hildete] de ir ao estádio de São Januário para ver algum jogo. Estamos esperando meu filho [Bruno Tavares] nos levar até lá. [Pergunto se há algum jogador histórico do Vasco que ela mais admire]. Há um jogador com um nome engraçadíssimo. [Tento complementar com a pergunta: seria o Dinamite?]. Não, é o Pikachu! Não é um nome fantástico?
Um último recado?
Apesar da idade avançada e da saúde, o importante é nunca se entregar. Não entrego nada. “Só me entrego na morte / De parabelo na mão”. Para além de lições e contribuições econômicas, o importante é deixar um sentimento de otimismo e esperança para inspirar as gerações futuras. Eu não desisto deste país. Apesar de todas as desgraças de hoje, eu continuo achando que o Brasil é o país do futuro. O Brasil tem futuro!
1 Esta entrevista contou com valiosas contribuições de Gilberto Bercovici, na elaboração das questões, e de Luiz Eduardo Brandão e de Wellington Xavier, no suporte técnico e logístico.
2 Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, organismo criado em 1948 pela ONU para promover a cooperação voltada ao desenvolvimento regional.
3 Após Conceição Tavares ter ficado em primeiro lugar no curso que Aníbal Pinto ministrou no Brasil.
4 Para a legislatura de 1995-1998, como deputada federal.
5 A socióloga Laura Tavares Soares.
6 Órgão criado em 1954, no governo Vargas, que funcionou até 1962.
7 Departamento produtor de bens de capital, departamento de bens de consumo necessários e departamento de bens de consumo de luxo.
8 De autores como André Gunder Frank, Theotônio dos Santos, Vânia Bambirra e Ruy Mauro Marini.
* Publicado na Revista de Economia Política, v. 5, n. 2, abr.-jun. 1985, disponível online. (N. E.)
9 Aqui, a autora faz alusão à capa do livro de Paul Kennedy, Ascensão e queda das grandes potências (São Paulo /Rio de Janeiro, Elsevier, 1989).
10 Episódio marcado pela elevação das taxas de juros pelo Federal Reserve (FED), durante o mandato de seu presidente à época, o economista Paul Volcker.
11 Publicado pela editora Paz e Terra em 1993.
12 Aqui, a entrevistada refere-se à coleção Zero à Esquerda, dirigida pelo filósofo Paulo Arantes e publicada pela editora Vozes.
13 No qual consta uma versão revisada e atualizada do seminal artigo de 1984.
14 Trecho da canção de cangaço “Perseguição”, de Sérgio Ricardo.