14 Março 2024
O calor implacável do aquecimento global não está alterando apenas os ciclos naturais, de seca e chuva, mas vem abalando a própria existência dos ribeirinhos da Amazônia. A pesca, fonte de vida e sustento dos povos, se tornou um desafio sem precedentes em meio à estiagem extrema. Da última vez, mal deu para a subsistência das famílias. A seca trouxe não apenas a escassez de peixes para quem vive de sua comercialização, mas também a fome e a sede que se revelaram nas centenas de comunidades do Baixo Tapajós, em torno de Santarém, no Pará. No Lago Grande, os pescadores temem pelo futuro, pela repetição de eventos climáticos como o de 2023 e por ver cenas desoladoras como a de um rio coberto por animais mortos.
A reportagem é de Isabelle Maciel, publicada por Amazônia Real, 11-03-2024.
“Será que um dia vão conhecer um pirarucu, um surubim?”, indaga, com receio de imaginar o pior, Maria Auxiliadora Batista, pescadora há mais de 15 anos e mãe de duas filhas. Liderança nas articulações da comunidade Uruari, principalmente na associação do Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) Lago Grande, ela reflete sobre o que pode acontecer com milhares de pescadores e suas famílias diante de um cenário incerto. O aquecimento global não está apenas secando rios ou enchendo-os demais, mas desequilibrando todo o ecossistema da região de várzea, onde ocorre a atividade pesqueira. As temporadas de seca e cheia já não ocorrem mais como nos anos anteriores, e quem vive da pesca já notou que algumas espécies deixaram de seguir o fluxo da piracema.
Ao olhar para o rio Lago Grande, em Santarém (PA), Maria Auxiliadora não esconde sua preocupação ao perceber que a última estiagem foi gravíssima, mas a situação só aparenta piorar de ano para ano. “Hoje estamos passando por isso e já está difícil, mas e o futuro? O futuro das crianças, será que ainda vão ver peixe? Pelo que está acontecendo a tendência é ficar extinto”, desabafa. Na sua memória e de mais de 500 famílias da comunidade de Uruari, será impossível esquecer do último 15 de novembro, um feriado nacional que remete à Proclamação da República, mas que no Baixo Tapajós será lembrado como o dia da grande mortandade de peixes.
Naquele dia, um grupo de pessoas se preparava para torrar o piracuí, uma “farinha” feita de peixe salgado seco e triturado, típico prato amazônico. A seca já havia baixado o nível dos rios e prejudicava a captura dos peixes, mas era importante não parar. A vida seguia seu ritmo normal, quando de repente um dos moradores voltou do rio assustado. “Olha, não vai ter mais piracuí, pois todos os peixes morreram.” Essa foi a frase que ele usou para anunciar o que tinha presenciado no rio Lago Grande do Curuai.
Os comunitários se assustaram e foram até o local para checar a situação. O cenário, extremamente triste, assustava: um tapete de peixes mortos recobria o rio. A primeira reação dos comunitários foi o desespero, afinal a comunidade tem na pesca a sua principal fonte de renda. A sensação de não saber o que fazer passou a tomar conta de quem estava ali em meio a tantos peixes mortos, e na tentativa de clamar por ajuda um vídeo foi gravado para mostrar a situação como um pedido de socorro.
A jovem Ádrinne Silva Batista, moradora da comunidade de Uruari São Pedro, tomou a iniciativa de gravar a cena “inacreditável”, como ela relatou à Amazônia Real. “A gente chegou lá (no Lago Grande), nós ficamos assustados, porque eu tenho 20 anos e nunca tinha visto algo daquele tipo, algo de muitos peixes mortos”, disse. “Tinha pescada, muitas pescadas, pequenas, maiores, tinha piranha, acarí, tucunaré, arraias.”
Amerildo na canoa olhando o lago que secou na comunidade São Pedro do Uruari, em Santarém. (Foto: Priscila Tapajowara | Amazônia Real)
“Aquele dia foi muito triste para nossa comunidade e outras da região”, relata Amerildo de Souza Rodrigues, presidente da associação de moradores. Nascido e criado na região do Lago Grande, casado e pai de 6 filhos, o pescador de 51 anos sabia que a tragédia ambiental era o prenúncio de um impacto muito maior. Nessa região do PAE Lago Grande, há 144 comunidades, onde vivem 35 mil pessoas, e todas foram afetadas pela seca – a maior em 28 anos.
Para gente que sobrevive do peixe, tira para nossa alimentação e também para comercializar foi um choque muito grande, muitos de nós ainda não tínhamos visto isso que aconteceu”, afirma Amerildo.
Duas semanas depois, no dia 25 de novembro, Amerildo conduziu a reportagem da agência Amazônia Real até o local da mortandade dos peixes e também para conversar com ribeirinhos impactados pelo aquecimento global. Para chegar até a comunidade de Uruari, pode-se ir de balsa pelo rio até o porto que fica na região do Arapixuna, cujo caminho é pela estrada TransLago. Indo de carro do porto até a comunidade Uruari o tempo é de uma hora.
A comunidade de Uruari fica bem próxima das margens do rio Lago Grande do Curuai. Basta andar alguns metros da casa de Amerildo para se chegar à beira do rio, onde se podia ver as rabetas paradas pela falta de atividade pesqueira. Até havia um pequeno canal, mas cuja navegação era feita com muita dificuldade até mesmo pelos pescadores e moradores mais experientes. No dia da visita, não havia mais um rio em frente à Uruari, apenas lama. No trajeto, foram avistados peixes, arraias e um jacaré. Todos mortos. Outros tentavam sobreviver à seca extrema, disputando o pouco oxigênio da água. Havia muitas embarcações encalhadas, à espera de que o rio enchesse novamente.
Adrinne Silva Batista, que filmou as imagens dos peixes mortos, lembra que por volta das 9 horas da manhã daquele 15 de novembro se deparou com um rio de nível muito baixo, uma quentura nas águas acima do normal e poluição a perder de vista. “Estava um dia muito fumacento e tudo isso são impactos das queimadas. Não só a seca, não só os peixes mortos, mas também a fumaça é algo que eu nunca tinha visto.”
Peixe morto por falta de oxigênio na água Comunidade São Pedro do Uruari. (Foto: Priscila Tapajowara | Amazônia Real)
A região do Baixo Tapajós viu inúmeras comunidades ficarem isoladas durante a grande seca. O que seus pescadores notaram é que a rotina mudou de forma drástica. “Quando está muito cheio fica difícil de capturar o peixe e quando está muito seco, o acesso para ir buscar aquele pescado, também se torna muito difícil”, afirma um pescador de Tapará, na comunidade Santana, em depoimento para a equipe técnica da Sociedade para a Pesquisa e Proteção do Meio Ambiente (Sapopema) com o apoio do Movimento dos Pescadores do Baixo Amazonas (Mopebam) e da Colônia de Pescadores Z-20.
O valioso levantamento coletou a opinião de coordenadores de núcleos bases de comunidades das regiões de Arapixuna, Aritapera, Ituqui, Urucurituba, Tapará, Maicá, Lago Grande, Arapiuns, Tapajós e Santarém, no Pará, que representam 33.508 pescadores filiados. A experiência amazônica deles faz prever um cenário catastrófico: “Como pescadores, nós passamos a sentir na pele que o habitat dos peixes, onde eles se refugiam já começa a sentir esse impacto por que vai surgindo a seca. Vão indo para outros lugares e com isso, por causa do desmatamento, começam as grandes erosões, o solo se torna infértil, tudo isso vai pra dentro das cabeceiras dos rios, e se torna inabitável para os peixes”, descreve a coordenadora da comunidade São José do Arapixuna.
Os ribeirinhos amazônicos vivem da extração dos recursos naturais. O pescado das comunidades de várzea, aquelas inundadas por água branca, são fartas e por décadas vêm abastecendo os mercados local, regional e estadual. No ano passado, a pesca artesanal sofreu com a maior seca na região amazônica, impactando não só o comércio, mas até a própria subsistência.
Quando os rios secaram, os ribeirinhos se viram obrigados a comprar comidas fora de seus hábitos alimentares, o que trouxe consequências imediatas. “Estamos tendo que comprar frango. A carne está difícil, e compramos também mais enlatados como sardinha e salsicha em conserva. Muita gente não está acostumada a comer essas coisas, faz mal pro intestino”, explica Amerildo.
Com baixa assistência de saúde, a comunidade ficou sem saber se os casos de pessoas com quadros de vômito, diarreia e outras infecções intestinais eram por causa da péssima qualidade da água ou pela mudança da alimentação. Muitos relataram doenças de pele, como coceiras provocadas pelo capim mais exposto, como na comunidade Santa Terezinha, em Aritapera. Esse relato de como a população amazônica teve de procurar alternativas alimentares expõe um impacto direto das mudanças no clima sobre os costumes tradicionais.
Na ocasião da visita da reportagem, os pescadores disseram se sentir abandonados. “A única ajuda que recebemos é de Deus, que não está deixando a gente passar fome e sede. Mas de governo municipal, estadual ou federal a gente não conseguiu nada, nem de organizações. O governo prometeu um benefício de 2.600 reais para cada pescador, mas até agora nada”, adiciona o presidente da associação de moradores de Lago Grande.
O coordenador da comunidade Piracaoera de Baixo, em Urucurituba, informou que até a agricultura, que poderia ser uma opção para enfrentar a estiagem, estava prejudicada: “A quentura está afetando os nossos plantios, as terras estão fracas. Muita quentura que transforma a nossa produção muito fraca”.
A associação Mopebam produziu um levantamento mais detalhado em 74 comunidades em torno da cidade de Santarém, representando em torno de 6.250 famílias. Pescar (22,2%) foi a maior das dificuldades enfrentadas, seguida dos problemas em conseguir ter o que comer (20,5%). Mas um terceiro ponto agravou um problema histórico, o acesso à água (16,7%). A região Norte possui o pior saneamento do Brasil, com menos de 60% dos domicílios conectados a uma rede de distribuição de água. Santarém possui o 4º pior índice de saneamento brasileiro, segundo o Instituto Trata Brasil. “É urgente a inclusão das comunidades ribeirinhas nas políticas públicas básicas, como acesso a água e energia, pois as populações desses locais são extremamente impactadas pelas consequências das mudanças climáticas”, clama o estudo Panorama da Seca em Santarém, no Baixo Amazonas, Pará.
Os pesquisadores Flávia Costa, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, e José Marengo, do Cemaden, na Declaração sobre a Seca Amazônica, no início de dezembro, projetam que o fenômeno climático El Niño continue presente nos primeiros meses deste ano, e com o Atlântico Norte Tropical mais quente, “é muito provável que a estação chuvosa da Amazônia seja mais fraca que o normal e os níveis dos rios sejam mais baixos que o normal”. Para eles, a seca do ano passado tem potencial para representar um “novo normal” se não forem tomadas medidas para frear mudanças climáticas.
De acordo com a World Weather Attribution (WWA), a crise climática foi a principal responsável pela gravidade da seca na Amazônia, e que o fenômeno El Niño potencializou os efeitos. “A forte tendência de seca deveu-se quase inteiramente ao aumento das temperaturas globais, assim a gravidade da seca atualmente vivida é em grande parte impulsionada pelas alterações climáticas”, afirmou a entidade.
O aquecimento global, que tem alterado radicalmente os ciclos naturais da Amazônia, faz com que as comunidades temam pelo futuro das novas gerações. Não é possível prever o que está por vir. “Sempre converso para que meus filhos, por favor, estudem”, confidencia Amerildo. “A pescaria hoje não é mais para comercializar, não tem mais como trabalhar com pesca e sobreviver disso, apenas subsistir. Por isso digo para eles estudarem, para não passarem pela mesma situação que a gente está passando hoje. ”Quem também se preocupa muito com o futuro é Ana Neide Gomes, agricultora familiar de 47 anos. Nascida e criada em Uruari, ela se dedica ao trabalho doméstico, e possui seis filhos. Sua preocupação não é só com sua família, mas também com as novas gerações. “Diante de toda essa situação fico pedindo a Deus pelos meus netos e filhos, fico pensando que se continuar desse jeito a gente não vai conseguir sobreviver”, diz.
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O dia mais triste em Santarém - Instituto Humanitas Unisinos - IHU