02 Dezembro 2023
Conheça a história de dois indivíduos da espécie Trichechus inunguis resgatados na Ilha do Marajó, no Pará, e reabilitados por organizações, com o apoio das comunidades. Esses animais são importantes indicadores da saúde das águas, mas, assim como os botos, podem ser afetados pelas mudanças de temperatura e pela seca da região.
A reportagem é de Vitória Mendes, publicada por InfoAmazonia, 30-11-2023.
É raro observar um peixe-boi na natureza. São animais discretos, silenciosos e, na maioria das vezes, solitários. Mas, se você for a Santarém (PA), é possível encontrar, ao mesmo tempo, 33 filhotes de peixe-boi-da-Amazônia (Trichechus inunguis). Eles estão distribuídos em seis piscinas, alguns ainda pesando doze quilos e mamando várias vezes por dia, outros já atingindo cinquenta quilos e em processo de desmame.
É difícil não perceber o óbvio: são criaturas muito amáveis. Se assustam quando um pássaro voa perto da piscina, quase não param de comer plantas, são dóceis e periodicamente sobem à superfície para abrir as narinas e respirar. Quando abrem as narinas, a respiração faz um som muito discreto. Rechonchudos, possuem manchas brancas no peito que são únicas em cada indivíduo, assim como as impressões digitais são para os humanos.
Não é comum enxergar esses mamíferos em seus habitats de águas turvas, mas foi possível observá-los porque esses filhotes estão em reabilitação e o retorno à natureza é uma jornada longa. É preciso que estejam em idade reprodutiva, ou seja, com pelo menos 8 anos de idade e já desmamados, para que tenham chances de sobrevivência. Cada fêmea da espécie gesta durante 13 meses apenas um filhote e passa pelo menos dois anos cuidando da cria. São as mães que ensinam a comer, nadar e respirar. Sem elas por perto, cabe a uma equipe de seres humanos mantê-los em condições para um retorno às águas.
Todos os animais receberam nomes que fazem referência ao rio ou localidade onde foram resgatados. Nem todos são tapajônicos: Arari e Kaluanã, ambos resgatados na ilha do Marajó (PA), estão no ZooUnama há alguns anos e passaram por verdadeiras sagas até chegar ao local. Muita gente fez, e ainda faz, de tudo para que permaneçam vivos, mas a crise climática pode afetar gravemente suas chances de viver por décadas a fio nos rios amazônicos.
“Qualquer alteração de habitat é impactante para a vida desses animais: desmatamento, assoreamento do rio, a alteração da proliferação de plantas aquáticas, despejo de mercúrio na água proveniente do garimpo, assim como a presença de barragens que isolam os animais em trechos dos rios”, explica Miriam Marmontel, oceanógrafa e líder líder do Grupo de Pesquisas em Mamíferos Aquáticos do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá.
Durante o primeiro lockdown causado pela pandemia da Covid-19 em 2020, muitas pessoas precisaram trabalhar em casa. A bióloga Rosângela Souza passou quatro meses reabilitando um peixe-boi no seu quintal.
O Instituto Bicho D’água – Conservação Socioambiental, organização da qual faz parte, havia recebido em Belém (PA) um filhote resgatado no município Cachoeira do Arari, localizado na Ilha do Marajó (PA). O animal chegou ao Parque Zoobotânico do Museu Paraense Emílio Goeldi, trazido pela prefeitura do município. Instalado no setor de veterinária do museu, o filhote foi submetido a um protocolo rígido de cuidados para garantir sua recuperação. Na época, a equipe da ONG era composta por quatorze pessoas, entre funcionários e voluntários, que se revezavam para oferecer quatro mamadeiras de leite por dia ao animal, além de realizar biometrias e exames.
Com muita lama acumulada no intestino, Arari não conseguia defecar. Peixes-boi são animais herbívoros que comem cerca de 10% do seu peso por dia e, por causa disso, defecam e urinam consideravelmente. Suas fezes e urinas realizam uma importante função ecossistêmica: a fertilização das plantas aquáticas. Arari, no entanto, passou mais de uma semana com problemas no aparelho digestivo. Diante da pandemia, o Parque Zoobotânico precisou fechar, mas sua situação não era promissora. Ele apresentava uma infecção na pele que exigia tratamento rigoroso com remédios e perdia peso, cerca de um quilo por dia.
“Ele vai ter que ir para a casa de alguém. No quintal de casa, eu tenho algum espaço para colocar uma piscina para ele e consigo dar os alimentos, realizar o monitoramento e tratar as doenças. Nós falamos com os profissionais do IBAMA e alertamos: ele está em uma curva crítica e a gente precisa de uma autorização de transferência emergencial. É isso ou ele vai morrer”, relembra Rosângela.
Com a autorização concedida, uma nova rotina com uma missão específica foi estabelecida: Arari precisava ganhar peso. Por isso, Rosângela oferecia mamadeiras com leite de soja, óleo de canola e vitaminas. Paralelamente, também ocorria o processo de introdução alimentar, composta por cenoura e acelga, principalmente. Mas Arari tinha algumas preferências: a cenoura só foi aceita após ser cortada em palitos e a aveia foi rejeitada. “O bichinho era temperamental, eu confesso”, brinca.
Além dos esforços de Rosângela, Arari também contou com o companheirismo de Marley, o cachorro da casa, que ficava de guarda ao lado da piscina e latia para alertar sobre qualquer ameaça ao bem-estar do novo amigo.
“Aos sábados, ele era tirado da piscina e nós fazíamos uma videochamada com as veterinárias do projeto. Ele era colocado em um colchão e eu pesava, media o comprimento, largura, circunferência e outras medições específicas para nós monitorarmos o crescimento dele”, explica Rosângela.
O trabalho realizado em um quintal e à distância foi uma ferramenta encontrada pelo Instituto Bicho D’água para garantir a reabilitação. A ONG existe desde 2007 e é composta atualmente por 13 membros. A presidente do instituto, a bióloga Renata Emin, justifica os esforços: “Nós trabalhamos com essa espécie não porque eles são carismáticos ou bonitos. Os peixes-bois têm várias funções e prestam serviços ecossistêmicos. Mas, independente disso, eles têm o direito de sobreviver simplesmente porque eles são seres vivos. E a gente usa esse mote para falar de conservação, não só deles”.
Embora a dedicação de Rosângela e sua família tenha sido vital para garantir a melhora da saúde do Bolota, como foi apelidado, era consenso entre os profissionais da ONG que seria necessário transferi-lo assim que possível para o projeto de reabilitação mantido pelo ZooUnama, em Santarém. E foi assim que Arari voou em um avião do Governo do Estado do Pará para chegar ao Tapajós.
Para garantir a sobrevivência de Kaluanã, foi preciso um esforço de cooperação entre a comunidade local e instituições de pesquisa: participaram profissionais do Museu Paraense Emílio Goeldi, Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e a Superintendência do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente no Pará (IBAMA/SUPES Pará). (Foto: Janine Valente | Museu Paraense Emílio Goeldi)
Peixes-boi emitem sons em frequências que, geralmente, os ouvidos humanos não captam. A vocalização é uma das ferramentas de conexão entre filhotes e mães em uma fase de total dependência e cuidado parental. Kaluanã perdeu a mãe para a caça ilegal e, assim como qualquer filhote, dependia dela para comer, respirar e aprender a se orientar nos rios. É provável que tenha vocalizado nesse momento crítico.
Um arpão foi utilizado para ferir sua testa, manobra feita para causar uma reação dos indivíduos adultos, deixando mães desorientadas para serem capturadas. Embora a caça seja a principal causa para que os peixes-boi estejam na lista de animais ameaçados de extinção, os filhotes não são interessantes para o consumo, pois há gordura demais e carne de menos.
Sozinha, sem saber o que comer e com seis ferimentos na cabeça, o pequeno bicho foi encontrado no rio Anapu por pescadores na comunidade Santo Antônio em Vila do Brabo, região da Ilha do Marajó. A situação era grave: os ferimentos haviam virado infecções e em seu intestino havia muita lama acumulada.
Após ser resgatada, os comunitários a colocaram em um igarapé no quintal e acionaram os funcionários do campus de pesquisa do Museu Emílio Goeldi na Floresta Nacional de Caxiuanã. A equipe do Museu comunicou à bióloga Renata Emin, do Instituto Bicho D’água e Doracele Tuma, do grupo de pesquisa BioMa, da Universidade Federal do Pará. As distâncias percorridas até o local são longas e precisam ser feitas de barco. Para sair de Belém e chegar até a região, Renata e Doracele levaram mais de 22 horas. Por telefone, passavam as instruções de cuidados para os cuidadores de Kaluanã.
Munidas de equipamentos para medições, leite de soja para a amamentação do filhote e uma piscina de plástico, as profissionais chegaram à comunidade e passaram cinco dias conduzindo o processo de estabilização. Kaluanã tinha dificuldades de subir à superfície para respirar e passava a maior parte do tempo no fundo da piscina.
“Nós sentíamos medo de perder o bicho a qualquer momento. Sabe quando uma pessoa faz uma cirurgia muito grave e o médico fala que as próximas 24 horas são cruciais? Era isso. A estabilização é um momento em que tudo pode acontecer”, relembra Renata.
Aos poucos, os ferimentos foram sarando e Kaluanã começou a reagir, nadando mais e aceitando os alimentos oferecidos. Com um esforço coletivo, foi possível tirar a filhote de uma situação de risco grave. Para fazer jus à sua história, recebeu esse nome que significa jovem guerreira. Mas, para chegar à fase de reabilitação, também foi preciso percorrer muitos caminhos.
Renata fez contato com o ZooUnama, que possuía a infraestrutura necessária para o seu tratamento. Entra em cena outro personagem que acompanha a filhote até hoje, o veterinário Jairo Moura. Assim como as colegas de Belém, Jairo também saiu de casa portando uma piscina infantil de plástico, suplemento vitamínico e leite. O veterinário partiu de Santarém e fez uma viagem de 36 horas de barco pelo rio Amazonas até o município de Breves, na Ilha do Marajó. Enquanto esperava Kaluanã chegar, fez amizade com a equipe do navio e pediu um espaço para armar a piscina. Instalados perto da cozinha do barco, Jairo armou sua rede ao lado de sua paciente e viajou de volta ao Tapajós com o animal.
Kaluanã despertou curiosidade em muitas pessoas. O menino Samuel gostava de passar tempo observando o mamífero. Jairo ganhou esse desenho de presente e guarda até hoje:
“Ela é desconfiada. Quando a gente vai dar a mamadeira, ela é a última a subir”, comentam os tratadores que lidam todos os dias com o bicho.
Para voltar aos rios, Arari e Kaluanã precisam passar por três fases de reabilitação. Embora sigam diretrizes comuns, cada projeto realiza testes de técnicas e métodos mais apropriados para garantir o crescimento saudável de filhotes. No Projeto Peixe-Boi, a primeira e a segunda etapas da reabilitação ocorrem na sede do zoológico e consistem em amamentar e realizar a introdução alimentar de plantas aquáticas nas dietas dos bichos. A última fase é realizada em uma base flutuante, em um ambiente mais semelhante aos rios.
De volta à natureza, a expectativa é que os mamíferos apresentem um comportamento normal diante das dinâmicas das águas. Durante a cheia, os peixes-boi vivem em áreas de várzea, procurando plantas aquáticas para comer. Já nos períodos de seca, se deslocam para lagos onde há poços profundos. Um animal adulto pode medir até 2,80 metros e pesar 420 quilos. Para chegar a esse porte sendo herbívoro, os sirênios passam boa parte do tempo comendo e sua alimentação está profundamente atrelada ao ecossistema aquático.
Distribuídos em toda a Bacia Amazônica, até a foz do Amazonas no Pará, esses animais conhecem a dinâmica das águas dos rios de águas brancas, pretas e claras, convivem com a seca e a cheia e têm capacidade de movimentação e tomada de decisões baseadas no instinto. Mas o que pode ocorrer em um contexto de crise climática?
Verões extremos causam aumento significativo de temperatura na água, ocasionando a perda de oxigênio e a inversão térmica. Juarez Pezzuti, biólogo e professor do Programa de Pós-Graduação em Ecologia Aquática da UFPA, explica que os animais que nadam mais próximos à superfície enfrentam um calor anormal em períodos secos como o que ocorreu durante o verão de 2023. No entanto, o pesquisador alerta que também é preciso olhar com cuidado para os invernos.
“A fauna aquática da Amazônia evoluiu juntamente com a Bacia Amazônica. Os ecossistemas tropicais são muito antigos. As plantas são a base dos ecossistemas e os animais evoluíram se adaptando aos padrões de escassez e fartura. Todo mundo está preocupado com a força do verão e não com a fraqueza do inverno. O inverno precisa ser forte, a floresta precisa alagar para que os animais aquáticos tenham acesso aos alimentos”, pondera.
A tragédia dos botos no Amazonas, que também são mamíferos aquáticos, acende um alerta sobre a biodiversidade diante das mudanças climáticas. “A gente nunca pensou que botos ficariam presos durante uma crise climática e aconteceu este ano. Aconteceu alguma coisa na capacidade de percepção ou de tomada de decisão deles que eles não saíram a tempo. E isso pode vir a acontecer com peixes-boi também”, alerta Miriam Marmontel, que atua há 30 anos na região com estas espécies.
Para peixes-boi, uma emergência climática como a ocorrida em Tefé (AM) pode afetar a oferta de alimentos. “Eles morrem entupidos, porque em momentos de seca não há disponibilidade de alimentos, então se alimentam da lama do fundo, o lodo. Ao ingerir muitos sedimentos, aquilo vai se acumulando no intestino e eles acabam morrendo porque o intestino está socado de barro”, descreve a pesquisadora.
Segundo informações divulgadas pela assessoria do Instituto, em setembro de 2023 foram encontrados 155 botos mortos no Lago Tefé (AM), sendo 131 vermelhos e 24 tucuxis. “A seca e a temperatura da água, que chegou a 39,1ºC às 16h do dia 28 de setembro, quando 70 indivíduos morreram, provavelmente estão relacionadas ao ocorrido”, declararam em Boletim Técnico. Embora o estado de emergência tenha se estabilizado em Tefé em outubro, mais de 20 botos-vermelhos e tucuxis foram encontrados em Coari, município vizinho.
O desafio para as próximas décadas, segundo Miriam Marmontel, é se preparar: conhecer a fundo a saúde e o padrão normal de comportamento desses animais. Dessa forma, é possível identificar as alterações diante de situações extremas. Ela avalia também que é preciso capacitar pessoas em todas as regiões da Amazônia para atender as emergências que podem voltar a acontecer.
Peixes-boi são considerados espécies guarda-chuva para projetos de conservação. Renata Emin explica que “são espécies para as quais você consegue direcionar mais facilmente as ações conservacionistas. Só que como ela depende muito do ambiente saudável, ao conservá-la, você indiretamente consegue conservar outras formas de vida no próprio ambiente.”
Profissionais do ZooUnama e do Instituto Bicho D’água concordam que a participação direta das populações locais é vital para garantir o sucesso das iniciativas. “A relação com os comunitários é essencial desde o início. O que a gente tem aprendido é que os comunitários entendem muito das relações com a natureza, melhor até do que nós. Eles são essenciais para que o trabalho seja permanente e que aconteça independente da instituição. Eles não só nos informam, também pensam junto conosco, ajudam a propor soluções para conflitos e também cuidam dos bichos”, argumenta Renata.
A última etapa da reabilitação dos filhotes ocorreu durante dois anos em uma base flutuante, na comunidade Igarapé do Costa, próxima de Santarém. O diretor do Zoológico, Hipócrates Chakildis, destaca a parceria como etapa fundamental: “Foi uma comunidade que se tornou emblemática porque eles queriam muito esse projeto. É uma comunidade parceira do projeto, mas principalmente consciente de seus deveres como cidadãos. Essa foi uma vitória, porque significa que nós podemos mudar costumes e culturas e que podemos ser corajosos em prol da conservação”, declara.
*Esta reportagem foi financiada pelo projeto Prepare-se para a COP-28, realizado pela DW Akademie e pela ONG Saúde e Alegria. A repórter agradece aos financiadores, à InfoAmazonia, aos colegas da Apply Brasil e aos amigos Lia Torres e Calil Torres.
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Arari, Kaluanã e a luta dos peixes-boi-da-Amazônia para sobreviver à crise climática - Instituto Humanitas Unisinos - IHU