01 Março 2024
Bolsonaro deu o sinal na manifestação: Câmaras de Vereadores serão o alvo da sua base neste ano. Apoio de igrejas neopentecostais, capilarizadas em todo o país, pode ser determinante. Esquerda precisa sair da defensiva e oferecer novos horizontes.
O artigo é de Glauco Faria, publicado por Outras Palavras, 29-02-2024.
“Em 2024 temos agora eleições municipais. Vamos caprichar no voto, em especial, para vereadores.” A fala de Jair Bolsonaro mostra aquela que deve ser uma das prioridades da extrema-direita e do campo conservador no próximo pleito. Onde não for possível disputar com chances a prefeitura, eleger o máximo possível de candidatos à Câmara Municipal.
A estratégia de ocupar os Legislativos pelo país tem sido posta em prática há tempos, mas tomou corpo e se tornou visível em 2018, quando o segmento conseguiu expressivas bancadas na Câmara e no Senado com a onda bolsonarista, então no seu auge. Muitos achavam que se tratava de um fenômeno pontual, mas as eleições de 2022 indicaram o contrário.
Ainda que o atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva tenha vencido o primeiro turno, com mais de 5% de diferença sobre Bolsonaro, equivalente a mais de 6 milhões de votos, a vantagem não refletiu, por exemplo, na eleição do Senado. Com 27 vagas em jogo, 14 foram conquistadas ou por bolsonaristas de primeira ordem, como Damares Alves e o então vice-presidente Hamilton Mourão, ou por políticos de direita que colaram sua imagem à do líder extremista. Na Câmara, o PL também conseguiu fazer a maior bancada.
E o caminho para chegar ao Congresso Nacional muitas vezes se inicia na vereança, que pode ser um trampolim até direto, como foi o caso do ex-vereador de Belo Horizonte e influencer Nikolas Ferreira (PL-MG), que conquistou a maior votação individual para a Câmara dos Deputados no país e agora já projeta uma candidatura à prefeitura da capital mineira. O youtuber e também deputado federal Gustavo Gayer (PL-GO) foi outro que se elegeu em função de um pleito municipal. Foi candidato pela primeira vez a prefeito de Goiânia em 2020, obtendo na ocasião 8% dos votos válidos, para dois anos depois chegar à Câmara dos Deputados como o segundo parlamentar mais votado do estado.
Os dois estavam no palanque de Bolsonaro na manifestação da Paulista, no domingo (25). Além da pauta e da influência nas redes sociais, ambos são um exemplo da importância que as eleições de 2024 têm não somente para a disputa em si, mas para o futuro próximo, no pleito nacional.
Após os resultados das eleições municipais de 2020, muitas análises apontavam que o bolsonarismo havia sido derrotado. Afinal, a maioria das disputas das prefeituras têm como pauta principal as questões locais e, mesmo em grandes metrópoles, é difícil “nacionalizar” o embate.
Já nas eleições para a Câmara Municipal, diversos fatores se misturam. As lideranças locais são historicamente importantes influenciadores na decisão do voto, tanto que muitos candidatos conseguem calcular sua base de votação fechando alianças e acordos com personagens relevantes em determinadas áreas. Essa dinâmica não passou incólume pelo advento das redes sociais, mas ainda resiste em boa parte do país. Instituições que têm capilaridade tendem a se sair bem quando traçam estratégias para angariar apoios aos nomes que lançam.
Não à toa, o segmento conservador, em especial aquele ligado a igrejas neopentecostais e também a correntes católicas mais conservadoras, se preocupou em 2023 em promover a ocupação dos conselhos tutelares nas cidades, considerados importantes espaços para o surgimento de possíveis candidatos a vereador. A esquerda se mobilizou, mas tardiamente, embora tenha obtido importantes vitórias, de certa forma, contendo o que seria um desastre ainda maior.
Uma vez eleitos, os candidatos extremistas conseguem aparecer ainda mais para o seu público no cumprimento dos mandatos. Desde homenagens, concessão de títulos, nomes de rua, moções de repúdio até proposição de projetos tidos como “polêmicos” e mesmo francamente inconstitucionais, aproveitam todo espaço para reafirmar seu ideário perante sua base, buscando novos eleitores com perfil similar. Tudo serve como palco, inclusive para discursos que nada tem a ver com a realidade local, com as falas tendo o alcance amplificado nas redes sociais, onde tal segmento político está mais estruturado que o campo progressista ao menos desde 2014.
Com um protagonismo maior que o usual em outros atos do tipo, o teor religioso marcou a manifestação da Paulista. Ainda que a maioria dos presentes tenha se declarado católica, de acordo com pesquisa feita pelo Monitor do Debate Político no Meio Digital, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, as mensagens ali transmitidas, em especial a da ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro, que legitimou textualmente a mistura de religião e política, devem circular nas redes sociais para mobilizar um público engajado e que já esteve a serviço de candidatos ligados a denominações religiosas em outras eleições. “Por um bom tempo fomos negligentes ao ponto de dizer que não poderiam misturar política com religião. E o mal tomou e o mal ocupou o espaço. Chegou o momento, agora, da libertação”, convocou Michelle.
Em 2020, Durante mais de um mês, a Agência Pública realizou uma reportagem após ter recebido relatos sobre campanhas dentro de igrejas e templos de todo o Brasil. A prática é irregular, já que a Lei 9.504/97 prevê que é “vedada a veiculação de propaganda de qualquer natureza” nestes locais. Um dos exemplos citados era de uma distribuição de propaganda impressa no Templo de Salomão, da igreja Universal do Reino de Deus (Iurd), no bairro do Brás, na capital paulista, feita no próprio domingo em que seria realizado o primeiro turno da disputa municipal. A repórter Mariama Correia recebeu um santinho do candidato a vereador André Santos, do Republicanos, junto com o candidato a prefeito Celso Russomanno, da mesma legenda.
A propaganda, obviamente, não se limita aos panfletos entregues, circulando nos grupos de redes sociais dos integrantes da igreja. Russomanno não foi ao segundo turno, mas André Santos se reelegeu, obtendo 41.584 votos e entrando na lista dos dez mais votados. Em disputas pelo Executivo, muitas vezes candidatos com propostas e defesas de ideias mais radicais afastam o eleitor médio, mas, no caso do Legislativo, não é necessário convencer a maioria, e sim um contingente importante, coeso e mobilizado não necessariamente em torno da figura do político, mas dos valores que ele representa. Como a porcentagem de votos válidos na disputa da Câmara de Vereadores é geralmente maior do que na corrida pela prefeitura (em São Paulo, brancos, nulos e abstenções chegaram a quase 50% em 2020), cada voto pesa ainda mais e a capilaridade e influência de algumas denominações evangélicas se torna mais determinante.
“O crescimento do neopentecostalismo no Brasil tem sido caracterizado por um afastamento do pentecostalismo tradicional, com ênfase na rejeição de hábitos considerados mundanos e no estabelecimento de novas crenças, práticas e rituais. As bases do neopentecostalismo residem na teologia da Prosperidade e da Dominação, que enfatizam a busca por riqueza material como reflexo das bênçãos de Deus. Isso tem tido um impacto significativo na sociedade brasileira, incluindo o envolvimento das igrejas neopentecostais em eleições políticas e seu apoio ao populismo reacionário”, explicam os pesquisadores André Mendes Pini, Fábio Rodrigo Ferreira Nobre e Maria Eduarda Angeiras de Menezes, da Universidade Estadual da Paraíba, no artigo “O neopentecostalismo no Brasil e a convergência com a ultradireita no populismo reacionário de Jair Bolsonaro”.
As duas teologias citadas, da Prosperidade e a do Domínio/Dominação influenciam direta e indiretamente na visão do fiel. A primeira atribui, por exemplo, o progresso material de uma pessoa e ele mesmo ou a Deus. Ou seja, na avaliação dessa pessoa a criação de um ambiente econômico favorável por parte de um governo ou a promoção de políticas públicas não entra na conta, ainda mais se partir de uma legenda tida como não alinhada. Já a segunda, ao estabelecer que existe uma luta entre o bem e o mal, uma guerra espiritual em curso, justifica a ocupação de espaços como a política, como defendeu Michelle Bolsonaro.
Uma vez nos parlamentos e tendo ainda mais microfones à disposição, políticos ligados a estas igrejas e outros que não são, mas que comungam da mesma ideologia, tendem a travar a chamada “guerra cultural”, criando inimigos imaginários como a ameaça do comunismo, a ficção da ideologia de gênero, e combatendo qualquer avanço em termos de política de drogas, legalização do aborto, direitos LGBTQIA+, além de interferirem no funcionamento das escolas, cerceando a autonomia dos professores e os assediando em suas atividades.
Embora seja possível encontrar parlamentares combativos na esquerda que travam o combate contra pautas obscurantistas, além de serem em diversas ocasiões minoria diante do silêncio cúmplice ou da adesão ruidosa do chamado “centro político” ao extremismo de direita, a postura é geralmente defensiva. Candidatos ao Executivo ou ocupantes atuais também têm receio de partir para o embate mais direto, buscando preservar os possíveis votos do segmento.
Isso promove um círculo vicioso no qual os ideais defendidos por este grupo se consolidam não só entre eles, extrapolando também para o restante da sociedade. O que vai ajudar a eleger, em nível parlamentar, novos defensores dos mesmos princípios.
Se governos têm dificuldades, em virtude de um cenário que ainda é adverso para as pautas progressistas, partidos e entidades da sociedade civil poderiam assumir uma luta com caráter mais propositivo, estimulando debates que saiam do lugar comum que, certamente, não vão promover uma mudança imediata, mas apontar para um horizonte em que ideias “fora da caixa” possam cativar não quem está irresoluto, mas aqueles que têm possibilidade de participar.
Alguns exemplos de que mudanças na opinião pública são possíveis podem ser observados, por exemplo, nos Estados Unidos. Segundo pesquisa do Instituto Gallup, nunca houve um apoio tão grande da população legalização da maconha no país: são 70% dos entrevistados favoráveis, de acordo com levantamento feito em novembro do ano passado. Em 1969, quando o o instituto fez o questionamento pela primeira vez, eram somente 12% que apoiavam a legalização. O apoio ultrapassou 50% pela primeira vez em 2013 e, hoje, o índice aponta maioria favorável mesmo entre aqueles que se denominam conservadores (52%), como entre os republicanos (55%).
No mesmo sentido, mesmo um ano após a Suprema Corte dos EUA ter decidido que o aborto não era um direito constitucional, a maioria dos estadunidenses (64%) segue apoiando a legalização da interrupção voluntária da gravidez, conforme pesquisa da AP-Norc de julho de 2023.
Ainda que os cenários e os momentos históricos sejam distintos, a defesa de valores humanitários e a proposição e discussão de pautas progressistas devem ser tema nestas e em futuras eleições, mas não apenas nesses períodos. Além disso, no Brasil, é preciso enfrentar questões fundamentais como a profunda desigualdade histórica, que se manifesta em níveis distintos, e a precarização do trabalho, por exemplo. São diversas bandeiras que poderiam oferecer um horizonte possível e que trariam ao campo da esquerda e ao próprio governo federal o poder de agenda, ainda hoje em parte nas mãos do bolsonarismo. Como disse o escritor uruguaio Eduardo Galeano, por conta da primeira vitória nacional da esquerda em seu país, em 2014, “tem um pecado que não tem redenção, que não merece perdão. É o pecado contra a esperança”. Passou da hora de voltarmos a cultivá-la.
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A ameaça da extrema-direita nas eleições de 2024. Artigo de Glauco Faria - Instituto Humanitas Unisinos - IHU