28 Fevereiro 2024
"Assim como o governo sionista de Netanyahu, a elite brasileira que vocifera contra Lula por denunciar o genocídio cometido por Israel também acredita, no fundo, que os palestinos são verdadeiramente 'animais humanos'".
O artigo é de Zainer Pimentel, jurista brasileiro, em artigo publicado por El Salto, 27-02-2024.
Após o histórico processo da África do Sul contra Israel na Corte Internacional de Justiça de Haia, foi o Brasil quem elevou o tom das críticas ao genocídio, durante a assembleia da União Africana (UA), em 17 de fevereiro, em Adis Abeba. Ao explicar a disposição do Brasil para aumentar sua contribuição para a UNRWA, o presidente brasileiro criticou a falta de solidariedade dos países que suspenderam os fundos para a Agência da ONU. Lula aproveitou o momento para fazer uma digressão, afirmando que em Gaza não há uma guerra entre soldados de dois lados, mas sim um massacre perpetrado por um exército altamente preparado contra mulheres e crianças, lembrando também as semelhanças entre os métodos praticados por Hitler e o que está acontecendo atualmente com os palestinos em Gaza.
A reflexão do presidente brasileiro, que é comum para muitos judeus fora de Israel, enfureceu Netanyahu, que afirmou que seu homólogo brasileiro havia ultrapassado uma linha vermelha e orientou seu ministro das Relações Exteriores, Israel Katz, a convocar o embaixador brasileiro para comunicar que declarava o presidente do Brasil, até que pedisse desculpas, pessoa non grata. O ministro Katz agiu rapidamente. Ignorando os cuidadosos rituais diplomáticos, no dia 19 de fevereiro, convocou uma coletiva de imprensa no Museu do Holocausto em Jerusalém e repreendeu publicamente o embaixador do Brasil, Frederico Meyer. Tanto o conteúdo quanto a forma deram a entender ao Ministério das Relações Exteriores do Brasil (Itamaraty) que a mensagem era uma clara encenação de propaganda de guerra híbrida, com o duplo objetivo de desacreditar o presidente do Brasil e humilhar seu representante diplomático.
🚨 Crise diplomática entre Brasil e Israel
— Karina Michelin (@karinamichelin) February 18, 2024
Lula, disse hoje em Adis Abeba, na Etiópia, que “o que está acontecendo na Faixa de Gaza não é uma guerra, mas um genocídio” e comparou às ações de Netanyahu à Adolf Hitler contra os judeus.
“O que está acontecendo com o povo… pic.twitter.com/FzAKQqrpFn
O Brasil não apenas não retificou sua posição, como exigiam as autoridades israelenses, mas na mesma tarde o Itamaraty anunciou duas medidas recíprocas. Por um lado, chamou a Brasília seu embaixador para consultas. Por outro, solicitou a Daniel Zohar Sonshine, embaixador do Estado sionista, que comparecesse à sede do Itamaraty no Rio de Janeiro para explicar a grave medida de seu governo, onde o Ministro Mauro Viera estava presente devido à preparação da reunião do G20 que ocorreria naquela cidade entre os dias 20 e 21 de fevereiro.
No Brasil, logo após a chegada da comitiva vinda da Etiópia, o pronunciamento do presidente também começou a colher uma cascata de críticas, tão ou mais raivosas do que as do governo sionista. Em 19 de fevereiro, Merval Pereira, colunista do influente jornal O Globo, afirmou que Lula é um defensor do Hamas, apesar de o presidente sempre ter condenado veementemente os ataques de 7 de outubro; Hélio Schwartsman, da Folha de São Paulo, declarou que a política externa brasileira não é séria; o jornal conservador O Estado de São Paulo falou em vandalismo diplomático; e Guga Chacra, especialista em política internacional da TV Globo News, foi ainda mais longe ao acusar o presidente brasileiro de antissemitismo.
No mundo político, as reações foram igualmente furiosas: o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, solicitou ao governo que se retratasse; o governador do estado do Paraná, Carlos Massa, convidou o embaixador de Israel a visitar seu estado em demonstração de solidariedade com Israel; enquanto o governador do estado de Goiás, Ronaldo Caiado, afirmou que não é aceitável cercear o direito de Israel se defender (ou seja, talvez com "se defender", ele se referia a eliminar o povo palestino de Gaza). Até agora, mais de 90 deputados já apoiaram a iniciativa das deputadas bolsonaristas Carla Zambelli e Bia Kicis (do Partido Liberal) de solicitar o impeachment do presidente na Câmara dos Deputados, um território hostil ao Executivo.
Por sua vez, o poderoso lobby sionista no Brasil, aliado à extrema direita, acionou a máquina propagandista antigoverno, com o objetivo de fazer o presidente se retratar. A Confederação Israelita Brasileira (Conib), conhecida por perseguir jornalistas críticos aos crimes do exército israelense em Gaza, como é o caso do judeu Bruno Altman, aproveitou a oportunidade para emitir imediatamente um comunicado acusando o presidente de distorcer a realidade.
O governo brasileiro está ciente de ter colocado contra si as poderosas forças pró-sionistas no campo doméstico, mas não cedeu em seu apoio à causa palestina. Pelo contrário, confirmou sua posição e endureceu a resposta diplomática diante do desprezo das autoridades de Israel, através do chefe do Itamaraty Mauro Vieira e do ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha.
Dentro do país, as reações de condenação à posição do governo brasileiro em relação ao genocídio na Palestina são coerentes com os dois fatores que guiam a elite dirigente brasileira. Por um lado, fundamentam-se no complexo de inferioridade e na dependência de nossas elites políticas, econômicas e culturais, que assumem os interesses do Ocidente, mesmo que sejam comprovadamente espúrios, como no assunto em questão. Para a classe dominante brasileira, defender as barbaridades do estado colonial de Israel faz parte da lógica hegemônica mundial vigente, na qual o Brasil tem o papel de fiel serviçal. Por isso, o país é parte periférica do mundo ocidental e, portanto, a potência militar israelense é um exemplo a seguir ou, no mínimo, deve ser respeitada e temida. Apesar de todas as evidências do genocídio em curso e dos alertas da ONU sobre o drama humanitário vivido na Faixa de Gaza, as elites brasileiras, por mais que se considerem civilizadas, defendem o direito de Israel a se vingar contra a população civil para restabelecer sua hegemonia política e militar. Todos os abusos diplomáticos cometidos pelos EUA, Europa e seus aliados são apoiados como mecanismos de defesa para a manutenção da segurança mundial. Afinal, são o farol do mundo livre, e qualquer povo dissidente deve ser tratado como párea ou como inimigo da civilização ocidental.
Por outro lado, o racismo secular impregnado nas elites do país permite que justifiquem qualquer barbárie, desde que seja dirigida contra as classes baixas. Assim como o executivo sionista de Netanyahu, a classe dirigente brasileira, que vocifera contra os fatos constatados por Lula, também acredita, em essência, que os palestinos são realmente "animais humanos". Estão convencidos de que se houver tantas mortes de crianças é porque "os milhares de terroristas palestinos" colocam seus filhos como escudos humanos para se protegerem dos bombardeios do exército israelense. Da mesma forma, sempre consideraram cidadãos de segunda classe os pobres das periferias das grandes metrópoles nacionais, as vítimas inocentes das incursões assassinas da polícia militar nas favelas seriam meros danos colaterais da guerra contra o crime.
Embora Lula esteja em seu terceiro mandato, essa mesma elite jamais aceitará ser representada nos fóruns internacionais por um líder que vem das classes populares. Eles o toleram a contragosto. O que ele diz será distorcido com argumentos falsos para manipular e controlar a narrativa para o consumo interno. Não perdoam a proximidade do presidente da República com aqueles que consideram de segunda classe: sejam os pobres do Brasil ou o povo palestino. Acham vulgar, por exemplo, que a cada ano, Lula celebre o Natal com os catadores de materiais recicláveis da cidade de São Paulo. Na verdade, as elites ricas do Centro e Sul do país não votaram no candidato do PT e continuam flertando com o autoritarismo, de qualquer lugar de onde venha. A elite brasileira putrefata nunca esconde sua preferência por personagens sinistros como Netanyahu ou seu amigo Bolsonaro.
Às vésperas da incursão do exército de Israel em Rafah, com seu governo já preparando a maquinaria de guerra para esmagar a população civil de Gaza e aprofundar ainda mais a terrível crise humanitária, Lula escolheu o momento exato para exercer máxima pressão sobre os genocidas. Assim como Hannah Arendt ou Albert Einstein, que assinaram a carta publicada em 2 de dezembro de 1948 no New York Times, comparando o partido do então primeiro-ministro israelense Menachem Begin aos fascistas, Lula teve a coragem de romper o pacto de silêncio entre os líderes ocidentais dizendo o que até mesmo muitos judeus já denunciaram: que o governo assassino de Netanyahu usa os terríveis métodos de limpeza étnica que os nazistas usaram contra os judeus no Holocausto; e que, além disso, os usa se escudando nos mesmos crimes que foram cometidos contra seus antepassados. O mundo sabe que na Palestina está ocorrendo um genocídio, embora seja proibido dizer; sabe que os crimes do governo de Israel cheiram aos cometidos pela Alemanha nazista contra os judeus.
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O apoio de Lula à Palestina tem um custo elevado. Artigo de Zainer Pimentel - Instituto Humanitas Unisinos - IHU