23 Fevereiro 2024
"A denúncia de Bonhoeffer, na escuridão mais sombria da Alemanha nazista, torna-se pungente: “Os segredos do camareiro - para usar uma expressão tosca - isto é, a esfera do íntimo (da oração à sexualidade) - tornam-se o território de caça dos modernos diretores de consciência”. O Deus bíblico não poderia ser traído mais gravemente", escreve Sergio Massironi, filósofo e padre italiano, em artigo publicado por L'Osservatore Romano, 19-02-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
“Se eu abençoar um empresário que explora pessoas, ninguém se escandaliza”: é a primeira parte, pouco considerada, de uma afirmação do Papa Francisco que causou muito barulho nos últimos dias.
Sinaliza uma desconexão que já os grandes profetas de Israel criticavam ao povo, introduzindo aquela representação de Deus que permanece nova e perturba muitos até hoje. “Num alto e santo lugar habito; como também com o contrito e abatido de espírito, para vivificar o espírito dos abatidos, e para vivificar o coração dos contritos” (Isaías 57,15). Existe, portanto um escândalo que o Altíssimo sente na sua empatia para com o baixíssimo. A Bíblia não cala sobre isso: “Passais vosso jejum em disputas e altercações, ferindo com o punho o pobre. Não é jejuando assim que fareis chegar lá em cima vossa voz". Temos de admitir que levamos essa indignação menos a sério do que aqueles escândalos que despertam a nossa imaginação sobre a intimidade alheia.
Exposto mais conscientemente do que os seus contemporâneos à "grande mascarada do Mal", trancado na prisão aguardando a morte, o pastor Dietrich Bonhoeffer intensificou sua lucidez deixando-nos um epistolário que poderá nos orientar ainda por muito tempo. Desde 8 de julho de 1944 é essa intuição publicada postumamente em Resistência e Submissão: “A expulsão de Deus do mundo, da esfera pública da vida humana, levou à tentativa de ainda reservar para ele, no mínimo, a esfera pessoal, íntima, privada. E como todo homem, em algum lugar, sempre tem uma esfera privada, é considerado naquele ponto mais facilmente vulnerável".
Valerá a pena voltar ao primeiro tema: a exclusão de Deus. Note-se imediatamente, no entanto, a indicação daquela estranha atração pela fraqueza alheia, sobre o ponto onde atingi-la. A denúncia de Bonhoeffer, na escuridão mais sombria da Alemanha nazista, torna-se pungente: “Os segredos do camareiro - para usar uma expressão tosca - isto é, a esfera do íntimo (da oração à sexualidade) - tornam-se o território de caça dos modernos diretores de consciência”. O Deus bíblico não poderia ser traído mais gravemente.
A secularização não representa algo a menos para este mártir do século XX: Bonhoeffer vê na expulsão de Deus da esfera pública muito mais do que uma expulsão. Todo bom Pai sabe retirar-se para dar espaço aos filhos. “Deus nos faz saber que devemos viver como homens que vivem sem Deus (...) e assim e só assim fica conosco e nos ajuda”.
O problema é entre os filhos. É irmão que bate no irmão. A vulnerabilidade do outro torna-se “território de caça”. Bonhoeffer pensa no clero, ele que dedicou anos à formação dos jovens no seminário. Contudo, “a atitude que chamamos de clerical, aquele farejar-o-rastro-dos-pecados-humanos, para poder pegar em flagrante a humanidade", tem uma raiz mais profunda e extensa: "Trata-se de uma revolução de baixo, uma revolta da mediocridade. Como a opinião mais rasa consegue exorcizar uma personalidade elevada apenas imaginando-a na banheira ou em qualquer outra situação grotesca, o mesmo acontece aqui”. O ponto crucial é compreendido: neutralizar aqueles que emergem, os diferentes, atingir no coração - ou melhor, pelas costas - aquilo que escapa à mediocridade. É antecipada uma dinâmica que as redes sociais fizeram explodir neste início de milênio: “Tudo o que está vestido, velado, puro e casto é considerado a priori enganoso, disfarçado, impuro, nada mais demonstrando, dessa maneira, do que a própria impureza”.
O aspecto mais lúcido, porém, na análise de Bonhoeffer, é ter identificado aqui um déficit de fraternidade e mais precisamente de vínculos: “Quanto menos um homem está ligado, mais ele escorrega nessa atitude. Mesmo no clero encontra-se essa ausência de vínculos”.
Deus, por outro lado, liga-se e nos liga: assim nos liberta. Por exemplo, “a Bíblia não conhece a nossa distinção entre exterior e interior. E por que deveria? O objeto de seu constante interesse é o antropos teleios, o homem completo, mesmo onde, como no Sermão da Montanha, o decálogo é internalizado”. O vínculo encontrado entre exterioridade e interioridade redesenha necessariamente os vínculos interpessoais: “Mas como a vida humana se move tanto do interior para o exterior como do exterior para o interior é aberrante pensar que não se pode compreender a sua essência exceto sondando o substrato íntimo da sua alma”. E assim, contra a atitude dos religiosos de se colocarem “no mesmo plano dos piores jornalistas de escândalos", Bonhoeffer volta a centrar biblicamente a questão da fé: "Não são os pecados da fraqueza que importam, mas aqueles da força. Não é necessário de jeito nenhum sair espionando. A Bíblia nunca faz isso”.
O grande teólogo abre então um parêntese, quase como para anotar algumas hipóteses: “(Pecados fortes: para o gênio a arrogância, para o camponês a violação da ordem estabelecida - o Decálogo não seria uma espécie de ética camponesa? —, para o burguês o medo da livre responsabilidade. É justo?)".
Esta última pergunta - “É justo?” — revela o desejo de compreender mais, de interpretar hoje à luz de uma Palavra que é voz a ser ouvida, de viver essa busca com o outro.
Ao escalar os muros da prisão com uma carta, levando uma pergunta ao irmão, a testemunha avança com a Igreja até na hora de suprema solidão. Liga-se. E chama pecado uma miríade de laços quebrados.
O que devemos a Dietrich Bonhoeffer, entre um sínodo e outro e num mundo que parece voltar a ser tão escuro quanto o dele? Reconhecer Deus no centro da vida. Justamente o Deus que aparentemente foi embora e ordena que não seja nomeado em vão ou colocado como um objeto aqui e ali: “Ele está além, no meio da nossa vida”. Devemos a cada mártir assumir o seu testemunho: uma vida e palavras já pronunciadas, já presentes na Igreja, já disponíveis para as reformas necessárias. “Em suma – escreve-nos Bonhoeffer – pretendo que Deus não seja posto de contrabando em algum receptáculo extremo e secreto, que tomemos simplesmente nota da maior idade do mundo e do homem, que o homem não seja truncado em seu mundanismo, mas seja posto em confronto com Deus nas suas posições mais fortes”. É o humano na plenitude da sua vida e no centro das suas atividades que Deus reivindica e transforma. Faz isso em Cristo, que viveu para os outros, diante dos olhos de todos.
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Para preencher o déficit de fraternidade. Artigo de Sergio Massironi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU