20 Fevereiro 2024
"Jonas, depois da ordem de Deus, partiu. Não foi na direção certa, mas partiu. E aquele partir errado foi melhor do que ficar, pois será justamente ao longo daquele caminho não-reto que encontrará uma misteriosa salvação".
O texto é de Luigino Bruni, economista italiano e professor do Departamento de Jurisprudência, Economia, Política e Línguas Modernas da Universidade Lumsa, de Roma, publicado por Avvenire, 18-02-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
A nossa geração perdeu contato com a profecia. Não a reconhece, não a respeita e assim o lugar que pertencia aos profetas foi primeiro deixado vazio e depois imediatamente ocupado pelos líderes e pelos influencers; porque quando a demanda de profetas que surge das pessoas não encontra a verdadeira profecia, entra em cena aquela falsa com a sua grande eficiência e seus efeitos especiais. A Bíblia diz-nos que Deus escuta o grito do pobre, mas também nos diz que os profetas são amplificadores necessários desse grito, para que possa chegar ao céu. Sem profecia o miserável continua a gritar, mas nada acontece. Ontem, hoje, talvez sempre, mesmo que cada geração tenha o dever ético de criar as condições para que os filhos cresçam num mundo onde se possa esperar que, finalmente, um profeta ou alguém realmente escutará o grito dos pobres, e os console.
A Bíblia não é o único lugar onde se pode aprender a profecia, mas certamente é um ambiente privilegiada pela qualidade e quantidade das palavras dos seus profetas. De todos os profetas, mesmo daqueles livros “proféticos” que não foram escritos por profetas, como o de Daniel. Ou como aquele de Jonas, sobre o qual hoje iniciamos um comentário que nos acompanhará nos próximos domingos. “E veio a palavra do Senhor a Jonas, filho de Amitai, dizendo: Levanta-te, vai à grande cidade de Nínive, e clama contra ela, porque a sua malícia subiu até à minha presença.” (Jonas 1,1-2). Entre aqueles que comentaram Jonas, poucos procuraram nesse livro um ensinamento sobre a profecia, muito menos os elementos para uma gramática profética. O próprio livro não chama Jonas de “profeta”, embora na única referência histórica associada ao seu nome na Bíblia é chamado de profeta: “O profeta Jonas, filho de Amitai” (2 Reis 14,25). Um profeta do Norte, na época do rei Jeroboão II, portanto do século VIII. Um profeta nacionalista porque, diz o texto, aquele rei perverso (2 Reis 14,24) reconquistou territórios de Israel, do Líbano até à Arábia, e o fez "segundo a palavra do Senhor falada por intermédio de seu servo Jonas, o profeta" (2 Reis 14,25).
Quando lemos na Bíblia que algo aconteceu “segundo a palavra do Senhor”, sabemos que aqueles fatos ou vitórias foram interpretados como uma consequência de uma palavra-vontade de YHWH. E é, portanto, provável que aquele antigo profeta fosse um expoente da tradição nacionalista, ao qual se opunha outro profeta, Amós, que não se pode excluir que direcionasse a Jonas as suas críticas às ambições e ilusões militares de Israel - sempre existiram “profetas” que apoiam as guerras e outros profetas que as combatem. Talvez, então, o Jonas do II livro dos Reis foi um profeta não tão marginal; e quem sabe se o Livro de Jonas não foi escrito para corrigir, séculos depois, o nacionalismo daquele antigo primeiro Jonas?!
Mas o protagonista do livro de Jonas nada tem a ver, no plano histórico, com aquele antigo profeta do Norte. No entanto, isso não significa afirmar que no Livro de Jonas não existam, no plano teológico e narrativo, alusões ao antigo profeta Jonas. O mesmo significado do nome Jonas, ou seja, Pomba, é usado por Oséias para indicar Israel - “Efraim é como uma pomba enganada” (Oséias 7,11). Os profetas do Norte, de Elias e Jeremias, são fundamentais para a compreensão da história de Jonas e da sua misteriosa vocação. A cidade de Nínive, além disso, a coprotagonista da história de Jonas, era a capital da Assíria, o centro político daquele império inimigo que no século VIII conquistou Efraim e deportou as tribos do Norte para a Mesopotâmia, e nunca mais retornaram.
Também sabemos muito pouco sobre o Livro de Jonas. Nada sobre seu autor, nada certo sobre quando foi escrito: as hipóteses vão do século VIII ao II a.C. Não há consenso nem mesmo sobre a mensagem teológica principal do livro nem sobre as colaterais. A complexidade e a ambivalência da história de Jonas já as encontramos no famoso “sinal de Jonas”, ao qual Lucas (11,29) dá uma interpretação diferente de Mateus (12,39). As leituras cristológicas e alegóricas dos Padres enriqueceram e complicaram ainda mais a compreensão. Mas, como às vezes acontece, as controversas e misteriosas mensagens de Jonas o tornaram muito generativo ao longo dos séculos, especialmente na arte e na literatura, de Ariosto a Camus, até o Mestre dos Mares (o filme de P. Weir).
Decidi retomar meus comentários bíblicos no "Avvenire" com Jonas porque em primeiro lugar e uma história muito bonita, uma verdadeira joia narrativa, curta, intensa e muito saborosa. No passado havia adiado a empreitada, ciente que Jonas era um texto que exigia uma certa familiaridade com os profetas bíblicos e com os livros históricos, úteis e talvez necessários para tentar acompanhar Jonas na sua viagem ao ventre da palavra. É também difícil compreender Jonas sem Jó (as duas histórias não são entrelaçadas apenas em Moby-Dick), e talvez sem Saul.
É o único livro bíblico que termina com uma pergunta, um final aberto que lembra aquele da parábola do filho pródigo - e nos perguntamos se o filho mais velho participou do banquete, e se Jonas, ou Deus?, realmente se converteu. Mas em Jonas também há presenças bíblicas improváveis e geralmente não vistas. O nome “pomba” é um nome feminino. De fato, existem vestígios das mulheres da Bíblia, da sua relação livre, dialética e criativa com a palavra de Deus, uma obediência mais semelhante àquela das filhas que àquela das servas. Da obediência desobediente de Rute, de Ester, da sunamita, da siro-fenícia do evangelho, das parteiras do Egito, de Tamar, de Mical, de Maria.
A história de Jonas é cheia de reviravoltas rápidas. Encontramos a primeira logo no início. Jonas deve para partir, deve ir até a grande cidade assíria de Nínive, às margens do Tigre, uma cidade antiquíssima - existem vestígios dela a partir do VI milênio a.C. Ele tem que ir lá para desempenhar uma missão de embaixador de Deus: o profeta também é isso, mas muitas vezes torna-se a mensagem que deve anunciar.
Ele deve levar uma palavra dura, revelar àquela cidade pagã que a sua maldade é grande e, portanto, "chegou" até Deus. Um cenário que nos lembra de perto Sodoma e Gomorra, cujo grito de mal “chegou até mim” (Gn 18,21). “Porém, Jonas se levantou para fugir da presença do Senhor para Társis” (1,3). A primeira decisiva virada narrativa e espiritual do livro de Jonas reside inteiramente nisso, e uma boa parte do sentido de sua história está nesse advérbio, que não é um advérbio de profecia. Depois de ler a primeira frase e a ordem de YHWH, toda a Bíblia nos sugeria apenas uma única continuação daquela primeira frase: ...e Jonas partiu como o Senhor lhe ordenara. Nenhuma outra história de profetas nos conta de fato de uma ordem divina recebida que é seguida por um porém: alguns têm incertezas (Moisés, Jeremias), alguns se sentem esmagados e atordoados (Ezequiel), outros não reconhecem imediatamente a voz (Samuel)... mas ninguém desobedece. Ninguém, exceto Jonas, que é o único profeta que conhece o porém.
Só esse advérbio inicial seria suficiente para excluí-lo da lista dos profetas, mas, em vez disso, a Bíblia inseriu-o entre Adbia e Miquéias, e ninguém jamais pensou em retirá-lo de lá. Então uma primeira tarefa que nos espera neste comentário sobre Jonas é tentar entender por que Jonas continua sendo um profeta bíblico, apesar de um começo claramente não profético, apesar de um início que o classificaria como um antiprofeta ou mesmo um falso profeta. Mas, em vez disso, como veremos, Jonas continua sendo um profeta, um verdadeiro profeta. Mas um profeta autêntico pode desobedecer à palavra que o chama e confia-lhe uma tarefa para fazer? E que papel tem a desobediência na vida dos profetas e naquela de todos aqueles - e são muitos na terra - que receberam alguma vocação, religiosa, artística ou leiga? Ou talvez a profecia só comece depois da conversão de Jonas e ainda não esteja presente nesse primeiro “porém”?
O texto, em nenhuma de suas versões (hebraica e grega), nos dá pistas do motivo pelo qual Jonas não obedece a YHWH. Também não nos explica um segundo detalhe narrativo importante: por que, além de não obedecer a Jonas inicia outra viagem à misteriosa Társis? É um nome de uma cidade ou lugar que encontramos muitas vezes na Bíblia (25 vezes), sem que se tenha chegado a uma hipótese compartilhada sobre onde se encontrasse - as muitas hipóteses vão desde a Andaluzia (que continua a ser a mais provável) até à Sardenha, desde Fenícia à Ásia Menor; o historiador judeu Flávio Josefo confunde Társis com Tarso, e Jerônimo até sugere a Índia.
De fato, poderia simplesmente não ter partido, ficado em casa e ali "fugir da presença do Senhor". Mas não, ele parte para outra longa viagem, sem um destino razoável. Talvez porque quando sabemos que a viagem certa é apenas uma e não queremos fazê-la, que o caminho certo só tem um único destino preciso que decidimos não seguir, que o Senhor está longe de onde estamos indo... quase sempre nos iludimos pensando que podemos substituir o justo destino-destinação com outro escolhido por nós, que ir longe não significa afastar-se do Senhor mas apenas de um seu primeiro rosto do qual já não gostamos mais - e realmente o pensamos, e às vezes, paradoxalmente, também é verdade.
Sabemos, acima de tudo os profetas o sabem com certeza, que ficar parados diante do chamado para a viagem seria a derrota total. Porque cada chamado é uma continuação do primeiro “vá embora” dirigido a Abraão, um vagar bom que salva e redime o vagar errante de Caim. Por isso o profeta parte, não pode deixar de partir, porque se não partir diante da Voz que o chama, simplesmente morre. Jonas diz-nos, portanto, que o erro comum dos profetas e das vocações proféticas não é ficar em casa, mas partir numa direção errada, sabendo bem que é errada, mas iludindo-se de que o gesto do caminho possa curar o seu final. Jonas, depois da ordem de Deus, partiu. Não foi na direção certa, mas partiu. E aquele partir errado foi melhor do que ficar, pois será justamente ao longo daquele caminho não-reto que encontrará uma misteriosa salvação.
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A necessidade de profecia ignorada, Jonas nos ajuda com seu “porém”. Artigo de Luigino Bruni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU