Aqui no Brasil, estamos lutando para nos livrar do sombrio Deus bolsonarista, o da violência, o machista por excelência, o do prazer pelas armas.
O artigo é de Juan Arias, jornalista e escritor espanhol, publicado por El País, 23-12-2023.
Eis o artigo.
Hoje sabemos como os deuses nasceram. Surgiram do medo dos fenômenos desconhecidos da natureza e para exorcizar a morte. Mais tarde, Deus era feminino, o da fecundidade e da vida. Diz-se que a história da humanidade é a história das guerras, mas também das religiões.
Não deve ser uma coincidência que, neste momento histórico em que a violência se intensifica e as guerras que poderiam ser devastadoras aumentam, os deuses voltem a ser violentos e monopolizados pela extrema-direita.
Nestes primeiros dias do ano que evocam a vida, a ternura, os desejos de paz e reconciliação familiar, causa certo desconforto ouvir o nome de Deus ser pronunciado pela extrema-direita mundial, que aposta na violência e na ruptura.
Deveríamos nos perguntar por que a chamada nova extrema-direita, que é a coisa mais antiga que existe, sente a necessidade de se abraçar a Deus como seu escudo protetor. Que Deus? Não escondo que ao ouvir Milei, o novo guerreiro da vingança, pedir em público "que Deus abençoe o país" e falar de liberdade, embora enfatizada pelo seu "carajo!", sinto uma inquietação mal disfarçada.
E na minha Espanha, na qual sofremos um catolicismo franquista onde Deus infundia pavor e emulava a vingança medieval, vejo que começa também a ressurgir com a nova extrema-direita o Deus da chamada velha guarda, o do tristemente famoso "Viva la muerte!"
Aqui no Brasil estamos lutando para nos livrar do sombrio Deus bolsonarista, o da violência, o machista por excelência, o do prazer pelas armas, o que sente medo e desdém por tudo que é feminino. O das nostalgias das torturas e das execuções sumárias.
O ex-presidente bolsonarista também fez de Deus seu escudo e sua arma. "Deus acima de tudo" era seu lema. E confessava que havia chegado ao comando do Estado porque Deus o havia recompensado depois de ter sofrido uma facada no abdômen durante sua campanha eleitoral.
Pelo menos nestes dias natalinos, nos quais crentes ou não se sentem imbuídos de sentimentos de vida e não de morte, de esperança e de perdão, esqueçamos aqueles que o Papa João XXIII, que abraçou todas as religiões, chamava de "profetas de desventuras".
Aquele papa, como hoje Francisco, apostou na vida, no amor, no abraço sem ideologias, na simplicidade franciscana em um mundo devorado por um capitalismo que nos sufoca e nos impede de desfrutar das delícias da simplicidade, do original, da natureza ainda não sufocada por um materialismo que tudo devora.
Alguém dirá que o mundo sempre foi assim, que sempre se balançou entre a vida e a morte, entre a religião como escudo e não como libertação, na vitória dos fortes sobre os fracos. É verdade. Mas hoje, através de séculos de obscurantismo político e religioso, vivemos dias de conquistas que parecem milagrosas, em um tempo em que a vida nos ensinou a distinguir entre a barbárie e a civilização. Entre a liberdade e as novas tiranias.
Neste ano, não deveríamos nos ajoelhar diante dos deuses da morte, mas sim diante do antigo e alegre presépio do Nascimento criado por Francisco de Assis, que, despojado do peso morto da alienação capitalista, soube entoar um canto à simplicidade e à alegria de viver em liberdade sem arrastar as correntes do ódio ou da falta de amor.
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