O primeiro documento publicado pelo Concílio Vaticano II – que leva seu mesmo nome – completa 60 anos. A Rivista di Pastorale Liturgica (5/2023) dedica um número à avaliação do fenômeno que surgiu a partir daquele documento, a Reforma Litúrgica. A edição leva o título: “A reforma litúrgica rumo à ‘terceira idade’”.
O teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, publicou em seu blog Come Se Non, 04-12-2023, um trecho de um artigo de sua autoria que compõe esse número da revista. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A pergunta com que o título é formulado nos ajuda a entrar em sintonia com um tema complexo e no qual a polarização excessiva, embora compreensível, não ajuda a entender o fenômeno de que estamos a falar. Eis, então, uma primeira advertência necessária. Entender em que sentido a Reforma litúrgica é e deve permanecer um ponto firme, mas compreender ao mesmo tempo que o “estilo” que ela adota vem de antes dela e vai muito além dela continuam sendo uma tarefa difícil para a Igreja contemporânea. Ela deve aprender uma narração diferente da Reforma litúrgica: só assim poderá compreender o passado e projetar o presente e o futuro.
Para tentar entrar corretamente na pergunta proposta pelo título, proponho proceder da forma mais ordenada possível. Para iniciar do início, tento reconhecer que a Reforma litúrgica é a resposta a uma “questão litúrgica” que nasce na primeira metade do século XIX (§.1). A partir dessa questão, surge o Movimento Litúrgico, cujo andamento prepara e depois realiza a Reforma Litúrgica (§.2). Tal movimento não é isolado, mas cresce junto com os outros três movimentos que preparam o Concílio Vaticano II (§.3). Assim, a Reforma litúrgica torna-se a passagem para uma nova concepção da ação ritual, de uma cerimônia clerical a uma ação comum de todo o povo de Deus junto com seu Senhor (§.4). A vertente eclesiológica da Reforma litúrgica, inicialmente não muito bem definida, desencadeou resistências progressivas, que assumiram a forma de uma série de documentos entre o fim dos anos 1990 e o início da segunda década do novo milênio (§.5). A coragem do Papa Francisco abriu uma fase nova, recuperando sobretudo a intenção original do Vaticano II: no entanto, trata-se de passar da Reforma à Formação (§.6): mesmo que não faltem mal-entendidos, a estrada de releitura e de valorização da Reforma está marcada (§.7).
Como às vezes acontece não só aos jornalistas, mas também a bons teólogos, a Reforma litúrgica se presta a ser lida “ao contrário”: não como a resposta a uma crise, mas como a causa da crise. Confundir a causa com o efeito não é o fruto de uma grande teologia, mas surge de um julgamento emocional, de afetos perturbados e de nostalgias crescentes.
Se pensarmos que Guéranger já lamentava a irrelevância da liturgia em 1830, que nos mesmos anos Rosmini via no exercício do culto a “chaga da mão esquerda” da Igreja, e que Festugière, no início do século XX, lamentava a perda de toda competência celebrativa no mundo católico, como é possível dizer hoje que é culpa da Reforma litúrgica e dos liturgistas que há uma desafeição em relação à liturgia? E que não se deve falar de liturgia, mas sim celebrá-la?
Essas ingenuidades, que às vezes se transformam em insolências, dependem de uma memória curta. Há cerca de 200 anos, vivemos uma longa transição para uma nova compreensão da ação ritual em relação à fé. Também faz parte dessa transição o ato de reforma dos ritos, que assume uma importância maior a partir do pontificado de Pio XII e depois se torna uma preocupação do Concílio Vaticano II e de sua posterior implementação, entre os anos 1960 e 1970. Tenta-se responder à questão litúrgica “reformando os ritos”. Como veremos, trata-se de uma passagem necessária, mas não suficiente.
Com a descoberta da “questão litúrgica”, isto é, do problema de refundar teologicamente aquilo que a tradição medieval e moderna tendia a compreender como “cerimônias sagradas”, nasceu aquilo que será chamado de “movimento litúrgico” (=ML).
Nasce uma série de formulações teóricas e de experiências práticas, ligadas principalmente, mas não exclusivamente, ao mundo monástico beneditino, que tentavam redescobrir a “liturgia” como “fonte e ápice” de toda a ação da Igreja.
É comum o costume, por comodidade, pensar o Movimento Litúrgico como a “preparação da reforma litúrgica”. Essa visão é simplista. O Movimento Litúrgico deve ser dividido em pelo menos três grandes momentos, que “contêm” a Reforma Litúrgica dentro de si, mas não se esgotam nela. Por brevidade, podemos subdividir essa visão articulada do Movimento Litúrgico da seguinte forma:
a) Em primeiro lugar, há uma fase inicial, que começa já com grandes premissas do século XIX e que se estrutura a partir do papado de Pio X, até chegar à encíclica Mediator Dei (1947). Essa fase se concentra principalmente em uma nova leitura da liturgia na economia da salvação;
b) Uma segunda fase, que inicia imediatamente após a Mediator Dei, sob Pio XII, e que se conclui com a primeira fase do papado de João Paulo II, e que se caracteriza pela “reforma litúrgica” como tom dominante. A Igreja reforma seus próprios ritos, de forma integral.
c) Uma terceira fase, que convencionalmente pode ser iniciada em 1988 (25 anos depois da Sacrosanctum Concilium) e que deveria se caracterizar pela recepção da Reforma litúrgica, com a experiência, consequente da reforma, mas diferente dela, de uma Igreja que se deixa transformar a partir dos próprios ritos (reformados).
Nessa reconstrução, uma coisa é evidente: a Reforma litúrgica não é o ponto de chegada, mas sim um necessário ponto de passagem: é uma passagem para outra coisa. Por outro lado, não há nenhuma necessidade de “novos movimentos litúrgicos”, porque o Movimento Litúrgico necessariamente continua mesmo depois da reforma litúrgica.
[…]
O ponto firme da reforma dos ritos e o estilo de formação litúrgica não estão em contradição. Essa me parece ser a questão central hoje, para oferecer uma lição equilibrada do que aconteceu nesses 60 anos.
O ponto firme a afirmar, e que nenhuma nostalgia ou elucubração pode pôr em questão, é que o Vaticano II, primeiro, e a sua recepção na primeira década, depois, consideraram a reforma do rito romano uma necessidade para a Igreja.
Essa afirmação, que não pode justificar nenhuma idealização do passado, deve, porém, ser combinada com uma segunda afirmação, em alguns aspectos mais difícil. O princípio de reforma não se justifica por si só, mas apenas se fundamenta uma experiência de fé e uma forma eclesial com um “estilo” de comunhão e de participação, que não se gera simplesmente “defendendo a reforma”.
Pelo contrário, o único modo de defender a reforma é permitir que ela seja um “instrumento para outra coisa”, para uma “forma ecclesiae” mais rica e mais profunda. O fato de a liturgia tridentina ter sabido “formar” durante séculos a experiência de fé poderia fazer com que ela aparecesse como uma passagem obrigatória e, assim, alimentar “nostalgias rubricistas”. Mas esse caminho está fechado.
Por sua vez, permanece aberta a provocação de um “saber prático e corpóreo”, que a rubrica moderna muitas vezes reduziu a normativa clerical, mas que, em vez disso, indica uma transgressão do verbal para uma não verbalidade mais original e mais rica. Trata-se de aprender o estilo de formação a partir do ponto firme da reforma. Só assim será possível sair do constrangimento e caminhar de acordo com o que o Concílio antecipou, como era possível fazer na época, há já 60 anos.
No momento de maior polarização, favorecida paradoxalmente por um ato que queria ser de “reconciliação”, a perspectiva magisterialmente dominante no Summorum Pontificum sustentava esta teoria: se voltássemos a celebrar também com o rito pré-conciliar, encontraríamos um equilíbrio para a influência recíproca que o Novus Ordo exerceria sobre o Vetus Ordo, e o Vetus Ordo sobre o Novus Ordo.
A realidade desmentiu clamorosamente essa hipótese, que se assemelhava cada vez mais a um sofisma. O desafio, que surgiu imediatamente após o motu proprio Traditionis Custodes (2021), e que vimos claramente delineado na Desiderio desideravi (2022), consiste em recalibrar adequadamente a relação entre Reforma e Formação.
Se é verdade, de fato, que a Reforma dos ritos foi um ato necessário e um ponto firme do qual não se pode fugir, é igualmente verdade que não se trata de um fim, mas de um meio. A reforma litúrgica é o instrumento com o qual a Igreja, reformando seus próprios ritos segundo a ciência e a consciência, concede aos ritos a possibilidade de ser reformada.
Voltarei aqui, em conclusão, a uma ideia que o colega Roberto Tagliaferri formulou há alguns anos e que me parece muito adequada. A expressão “reforma litúrgica” significa duas coisas diferentes: a reforma que a Igreja faz dos ritos e a reforma que os ritos fazem da Igreja. A polarização do pós-Concílio deriva do fato de ter oposto essas duas perspectivas.
Com sua carta Desiderio desideravi, o Papa Francisco recorda a necessária integração de uma “formação/iniciação” ao lado da defesa da reforma. Os ritos reformados são o terreno comum e único para todos, sobre o qual as diferentes sensibilidades eclesiais são chamadas a se defrontar, para crescer a partir dos novos ritos: deixando-lhes a palavra, na forma específica com que as ações rituais exercem sua autoridade e, assim, falando não só ao homem adulto, mas também à criança, ao primitivo, ao louco e ao animal que está em nós. Quase uma “ecologia integral” da reforma litúrgica.