31 Outubro 2023
Profissionais de aplicativos são mais controlados, ganham menos do que os não plataformizados e trabalham mais horas por semana, diz estudo.
A reportagem é de César Fraga e Marcelo Menna Barreto, publicada por Extra Classe, 30-10-2023.
Pesquisa feita pelo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em cooperação técnica com a Unicamp e com o Ministério Público do Trabalho (MPT) mostra dados inéditos sobre a precarização enfrentada por trabalhadores que buscam seu sustento via plataformas digitais ou aplicativos. O estudo não só expõe como confirma a precarização do trabalho. Além disso, mostra existir mecanismos de controle das empresas dos setores de transporte e entrega de mercadorias sobre os funcionários informais por meio de punições e bônus.
Conforme a pesquisa intitulada Teletrabalho e trabalho por meio de plataformas digitais 2022 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua, o Brasil registrou 1,5 milhão de pessoas que trabalham via plataformas digitais e aplicativos de serviços até o 4º trimestre de 2022.
Ricardo Antunes, fundador e coordenador do Grupo de Pesquisa Mundo do Trabalho e suas Metamorfoses (GPMT), sediado no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp é autoridade mundial nas discussões sobre os efeitos da chamada Indústria 4.0, Antunes entende que a extensa jornada dos trabalhadores por aplicativo acentua um traço que as pesquisas científicas feitas no mundo acadêmico vêm demonstrando.
Para ele, a pesquisa do MPT/Unicamp/IBGE oferece um panorama ampliado e “suas primeiras percepções já são muito expressivas”.
Uma delas é que “as jornadas de trabalho, a aparência de uma flexibilidade, de uma autonomia, é condição para que as jornadas sejam extenuantes e ilimitadas. Ou seja, os trabalhadores e as trabalhadoras em aplicativos, em particular entregadores e motoristas, trabalham até atingir a sua meta; se a sua meta o obriga a trabalhar 16, 18 horas ou até mais por dia como há depoimentos que mostram disso em nossas pesquisas, isto é feito”, diz.
Assim, ressalta, “cai por terra uma bandeira histórica da classe trabalhadora que é a jornada de oito horas e, quando excede a jornada de oito horas”.
Outro ponto que o professor registra é que nem sempre fica claro para esses trabalhadores o quanto custa esse trabalho que, em um primeiro momento, pode dar a aparência de um pagamento maior.
São trabalhadores ainda com um nível maior de informalidade, diz, “quanto comparado ao conjunto dos demais assalariados”.
“Confirma as pesquisas que nós vimos fazendo. A realidade do trabalhador ‘uberizado’ é de uma intensa exploração e espoliação do seu trabalho. Eles dependem, ficam dependentes do sistema financeiro para tudo que compram ou alugam, carros, motos, etc. Ao mesmo tempo sofrem jornadas de trabalho extenuantes. Este é o ponto mais duro e que obriga a que o governo, que foi eleito com a votação majoritária de trabalhadores e de trabalhadoras mais empobrecida, que só consegue encontrar o trabalho na informalidade e dentro dos parâmetros de precarização, buscar uma solução. Inventar uma terceira categoria de trabalhadores é inaceitável, porque a CLT permite a flexibilização da jornada de trabalho desde que os direitos sejam mantidos, haja limite, haja recebimento de décimo terceiro e de férias”, conclui.
As conclusões do estudo são confirmadas por quem sente na pele o dia a dia do trabalho nos aplicativos. É o caso de Julio César Ribeiro, 55. Ele trabalha todos os dias 11 horas pedalando sua bicicleta para fazer entregas na cidade do Rio de Janeiro (RJ).
Dois anos de desemprego o levaram para o trabalho em delivery. Seus ganhos ficam entre R$ 80 e R$ 100 diários que variam conforme sua avaliação no aplicativo. Ele diz que continua procurando um emprego de carteira assinada para ter mais estabilidade.
“A gente fica muito vulnerável. Se cair e quebrar a perna e tiver que ficar dois meses sem trabalhar, não ganha nada. E é muito sacrifício. Não tem hora de comer, de beber água. Para ir ao banheiro é uma loucura. A gente ganha por entrega, se você não entregar, não ganha”, explica.
A pesquisa escancara a precarização do trabalho de trabalhadores dito “plataformizados”, e o controle exercido pelas empresas dos setores de transporte e entrega de mercadorias sobre eles.
O estudo também comparou a remuneração e a jornada de trabalho entre profissionais dos mesmos segmentos econômicos, mas que desempenham suas atividades sem o intermédio das plataformas, chamados no estudo de “não plataformizados”.
Para a procuradora Clarissa Ribeiro Schinestsck, responsável pela cooperação, o ineditismo da pesquisa representa um importante passo para subsidiar o debate envolvendo o trabalho em plataformas digitais.
Para ela, a pesquisa contribui sobremaneira para fomentar o debate público em torno da regulação do trabalho em plataformas digitais, inclusive do ponto de vista previdenciário, o que só é possível através de dados oficiais.
“Além disso, as estatísticas abrem a possibilidade para a criação de políticas públicas efetivas e para o planejamento da atuação dos órgãos de defesa do trabalho decente, ao mesmo tempo que demonstram claramente a informalidade nesse tipo de trabalho, a forte dependência dos trabalhadores em relação às plataformas, jornadas mais elevadas e rendimento menor do que os trabalhadores não plataformizados do setor privado”, aponta a procuradora.
O diretor de pesquisas da Pnad Contínua do IBGE, Cimar Azeredo, ressaltou a importância da parceria interinstitucional. “Considero fundamental a parceria do IBGE com o MPT e a Unicamp, que proporcionou a inclusão do módulo de trabalho realizado por meio de plataformas digitais, inserido na PNAD Contínua no final do ano passado”.
Segundo Azeredo, os resultados revelam uma categoria de trabalhadores com larga dependência das plataformas, trazendo à tona uma forma de inserção para além do trabalho por conta própria, desvendando ainda um mundo do trabalho majoritariamente informal.
“As estatísticas produzidas com base nesse módulo cumprem o objetivo de fornecer informações baseadas em evidências para elaboração de leis e para implementação de políticas públicas, melhorando a vida de milhões de trabalhadores”, afirma.
Segundo a pesquisa, os trabalhadores de aplicativos que exerceram a atividade de transporte de passageiro receberam, em média, R$ 11,80 por hora trabalhada, enquanto os mesmos profissionais “não plataformizados” receberam R$ 13,60 por hora, representando uma diferença de 15,25%. A pesquisa também revelou diferença de 7 horas semanais na jornada de trabalho, sendo a média de 47,9 para os “plataformizados” e 40,9 horas para os demais.
Os indicadores são mais dramáticos quando se analisa os dados do trabalho dos entregadores de mercadorias e delivery. Os “plataformizados” receberam uma remuneração média de R$ 8,70 por hora trabalhada, enquanto os “não plataformizados’”receberam R$ 11,90, uma diferença de 36,78%. Assim como os(as) motoristas, a jornada de trabalho também é superior. Enquanto o primeiro grupo trabalhou, em média, 47,6 horas por semana, o segundo atuou em 42,8 horas.
Para o procurador-geral do Trabalho, José de Lima Ramos Pereira, a pesquisa da PNAD Contínua demonstra, a partir de um levantamento estatístico nacional, a precarização do trabalho em plataformas digitais, um tema que vem sendo abordado pelo MPT em atuações judiciais e extrajudiciais, com a finalidade de garantir os direitos trabalhistas desses profissionais.
“Ninguém quer impedir o avanço tecnológico nem as novas formas de contratação via aplicativo, mas isso precisa ser feito respeitando o patamar mínimo civilizatório conquistado ao longo de muitos anos de luta da classe trabalhadora. Entregadores e motoristas que não trabalham via aplicativo trabalham menos e recebem mais, além de representarem quase o dobro do total d trabalhadores por aplicativo que contribuem com a Previdência. Ou seja, estamos criando uma subcategoria, com subempregos, sob uma falsa premissa de modernização. Esses trabalhadores precisam ser respeitados e terem seus direitos assegurados”.
A pesquisa também revelou o controle exercido pelas plataformas digitais em relação aos(às) trabalhadores(as), analisando o nível de dependência quanto à definição dos valores para realizar as tarefas; os clientes a serem atendidos; o prazo para realização da atividade; a forma de recebimento do pagamento; e a jornada de trabalho.
O transporte por passageiro alcançou 97,3% de dependência em relação ao estabelecimento do preço pela corrida, enquanto os(as) entregadores(as) são 84,3% dependentes das plataformas nesse quesito. Ambos também apresentaram taxa semelhante em relação aos clientes: 87,2% dos clientes são determinados pelas plataformas no caso dos motoristas e 85,3% no caso dos entregadores.
A influência dos aplicativos para determinar a jornada de trabalho foi outro item do levantamento que merece destaque: 63,2% dos entrevistados afirmam que os dias, horários e duração do trabalho são influenciados pelos bônus e incentivos oferecidos pelas plataformas e 42,3% pela possibilidade de punição e bloqueios. Mesmo apontando que as plataformas ditam as regras para determinar a jornada de trabalho, 83,8% dos motoristas disseram à pesquisa que possuem possibilidade de escolha de dias e horários de forma independente.
Em relação aos aplicativos de entrega, 54,5% afirmaram que são influenciados pelos bônus e incentivos que mudam os preços e 32,8% pelas ameaças de punições e bloqueios realizados pelas plataformas. 70,8% acreditam que possuem liberdade de escolha de dias e horários.
Para o procurador-geral do Trabalho, os dados objetivos deixam claro a forte dependência e controle das plataformas, e revelam igualmente a percepção dos trabalhadores no sentido de possuírem uma suposta liberdade de escolha e flexibilidade de jornada. Segundo ele, é uma falsa ideia de liberdade e flexibilidade, já que estes mesmos trabalhadores são obrigados a cumprir jornadas de trabalho conforme determinado pelas plataformas, sob pena de menores recebimentos ou punições por recusas.
“Olhando com atenção particular o trabalho em plataformas, essa pesquisa poderá nos dizer o que de fato é esse trabalho, e não aquilo que as empresas vendem como o paraíso da autonomia, do empreendedorismo e elementos desse tipo que contraditam com a dura realidade em que sofrimento, morte, adoecimento, péssima alimentação e ausência de direitos são o que caracterizam a sua atividade”, afirma o sociólogo Ricardo Antunes.
Carina Trindade, presidente do Sindicato dos Motoristas de Transporte Individual por Aplicativo do Rio Grande do Sul (Simtrapali) afirma que o IBGE mostra que outra pesquisa recente patrocinada pelas plataformas de aplicativos estão incorretas.
“Elas (as plataformas) estavam dizendo que o trabalhador trabalhava quatro horas semanais e que ele ganhava em torno de R$ 4.900 por mês. A pesquisa do IBGE mostra que o trabalhador ganha menos da metade desse valor e trabalha em torno de 46 horas semanais. Ou seja, em torno de R$11,80 por hora logada. Esse valor do IBGE mostra que é um ganho bruto por hora logada. Então, só mostra que a pesquisa das plataformas é uma pesquisa totalmente comprada e fake e que a gente está no caminho certo de regulamentar realmente essa profissão, onde o trabalhador vem sendo totalmente explorado”, declara a sindicalista.
Segundo a pesquisa, 60,8% das pessoas ocupadas no setor privado contribuem para a previdência no Brasil. Entretanto, quando a amostra é feita em relação aos motoristas e entregadores, esse número despenca. Os motoristas “não plataformizados” que contribuem para a previdência representam 43,9%, enquanto os entregadores somam 39,8%. E se o índice já é bastante inferior às demais profissões, o número é ainda menor quando o olhar se direciona aos trabalhadores que prestam serviços por aplicativos. Apenas 23,6% dos motoristas profissionais “plataformizados” contribuem para a previdência e somente 22,3% dos entregadores o fazem.
A pesquisa também revelou o perfil sociodemográfico dos trabalhadores. No total, 2,1 milhões de pessoas trabalharam por meio de aplicativos de serviço. 61,3% dos profissionais possuíam ensino médio completo ou superior incompleto, sendo que 47,2% eram trabalhadores de transporte particular de passageiro; 39,5% de aplicativo de entrega de comida ou produtos, 13,9% de aplicativos de táxi; e 13,2% de aplicativos de prestação de serviços gerais ou profissionais .
Em relação à ocupação, 77,1% afirmaram que trabalhavam por conta própria, 6,6% eram compostos pelos empregadores e 15,2% por pessoas com outros empregos no setor privado, em sua maioria que não possuíam carteira assinada (9,3%).
No Brasil, cerca de 9,5 milhões de pessoas realizaram o trabalho remoto no período de referência de 30 dias da pesquisa. A pesquisa traz dados relevantes para entender a modalidade, potencializada no mundo pós-pandemia.
Desse total de trabalhadores, 69,1% possuem ensino superior completo e 39,6% são empregados do setor privado com carteira de trabalho assinada. Além disso, os principais segmentos de atuação na modalidade telepresencial são os da informação, comunicação e atividades financeiras, imobiliárias, profissionais e administrativas, que representam 40,6% do total.
“De todos os teletrabalhadores, quase 70% tinham nível superior. A proporção também era muito maior entre os profissionais das ciências e intelectuais, grupo que inclui, por exemplo, engenheiros, advogados, economistas, professores e diversos profissionais da área de TI, e entre as pessoas em cargos gerenciais e de direção. Esses tipos de ocupação tendem a ser mais favoráveis ao teletrabalho”, explica Gustavo Fontes, analista da pesquisa.
Outro dado que chama a atenção é a distribuição de pessoas segundo a cor ou raça e a idade. As pessoas de cor branca representam 63,3%, enquanto as pretas alcançam 7,7% e as pardas 27,1%. No grupo de idades, 49,6% estão na faixa de 25 a 39 anos, e outros 35,4% na faixa de 40 a 59 anos. As pessoas com 60 anos ou mais somam 6%.
Confira os principais tópicos da pesquisa:
Os dados são do inédito módulo Teletrabalho e Trabalho por Meio de Plataformas Digitais da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua). As estatísticas são experimentais, ou seja, estão em fase de teste e sob avaliação.
Assista a coletiva de lançamento da pesquisa:
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Brasil tem 1,5 milhão de trabalhadores de aplicativos em situação precária - Instituto Humanitas Unisinos - IHU