30 Outubro 2023
A pretensão da sociologia clássica de incluir a experiência dos indivíduos no funcionamento do sistema estava exposta a que o peso deste a esmagasse ou demonstrasse que o sujeito nunca escapa do sistema, para o bem e para o mal. Há anos, o sociólogo francês François Dubet, ex-diretor de estudos da École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, interessa-se pela forma como as pessoas vivenciam as desigualdades sociais e os seus sentimentos de injustiça.
Dubet acredita que esta experiência não é um simples reflexo das desigualdades “objetivas”, mas que tem um impacto direto nos movimentos sociais e na vida política. Em seu último livro, El nuevo régimen de las desigualdades solitarias. Qué hacer cuando la injusticia social se sufre como un problema individual (Siglo XXI), tenta oferecer uma visão global das transformações das desigualdades, que mudam profundamente conforme saímos da sociedade industrial.
A questão central do texto gira em torno do modo como as novas experiências de desigualdade podem se expressar politicamente, em uma sociedade democrática, no momento populista e autoritário que atravessamos. Mais uma vez, e em um texto mais duro que os anteriores, Dubet retorna às suas preocupações sociológicas.
A entrevista é de Bibiana Ruiz, publicada por Clarín-Revista Ñ, 27-10-2023. A tradução é do Cepat.
Qual é a razão da mutação social básica (a transformação do regime de desigualdades) que você descreve no livro?
Na França, Europa Ocidental e América do Norte, a causa fundamental da mudança nas desigualdades é o surgimento, a partir da sociedade industrial, de um sistema de classes sociais que opõe a classe operária às burguesias nacionais. O mundo do trabalho se transformou profundamente, o capitalismo nacional se globalizou e o consumo de massa substituiu as barreiras de classe por uma infinidade de níveis que distinguem os indivíduos.
Para além das mudanças no capitalismo, a própria imagem do que costumávamos chamar de sociedade está mudando, porque as sociedades industriais costumavam ver a si mesmas como sociedades nacionais, mais ou menos homogêneas, com um Estado soberano. No entanto, hoje, vivemos em sociedades multiculturais, com múltiplas identidades, o que dá lugar a profundos sentimentos de crise e conflitos que já não são verdadeiramente conflitos de classe.
Por que tendemos às assimetrias?
Em geral, estamos muito apegados à igualdade. Contudo, no capitalismo atual, geralmente competimos e preferimos as desigualdades, não em nossas ideias, mas em nossas práticas. Esta preferência pela desigualdade é especialmente visível no campo da educação. Na medida em que sabemos que o desempenho escolar de nossos filhos é decisivo para o seu futuro social, todas as famílias que podem pagar, escolhem a melhor escola, a melhor formação, aulas particulares... Preferem as desigualdades, mesmo que isso signifique condenar as desigualdades sociais em geral.
Esta contradição se manifesta em todas as esferas da vida, da moradia e as atividades de lazer às amizades. Assim, produzimos desigualdades que também condenamos. Enquanto na sociedade de classes a redução das desigualdades era considerada um projeto coletivo, no novo sistema de desigualdades, cada pessoa precisa lutar por sua própria igualdade, mesmo que isso signifique aumentar a desigualdade dos outros. Reduzir esta contradição é um desafio político essencial.
Por que a justiça social é encarada como um problema individual?
No sistema de classes sociais, todas as desigualdades convergem em torno do trabalho: determina a renda, o estilo de vida, a cultura, o voto, a escolaridade, a religião etc. A classe social é a consciência de classe e uma identidade coletiva.
Hoje, cada um de nós se percebe como igual ou desigual em uma infinidade de dimensões. Somos mais ou menos iguais ou desiguais de acordo com o nosso trabalho, claro, mas também de acordo com o nosso sexo, sexualidade, saúde, idade, local de residência, origens...
Então, cada um de nós se sente desigual de uma forma singular. Dizemos que “nós” somos desiguais, menos que “eu” sou desigual. Nas palavras dos sociólogos, somos todos “interseccionais” e cada um de nós pode se sentir discriminado, invisível ou desvalorizado.
Até que ponto é possível atribuir a culpa ao crescimento indefinido e à concentração de riqueza?
A concentração da riqueza é um problema social e econômico fundamental. Esta riqueza não é apenas um escândalo moral, os muito ricos escapam do controle governamental, dos impostos e manipulam a opinião pública controlando certos meios de comunicação. No entanto, a sociedade não confronta o 1% ou o 0,1% mais rico com o restante de nós. As desigualdades que importam para os indivíduos são as desigualdades “menores”, aquelas que estão mais próximas de casa.
As próprias classes médias são muito desiguais e também existem grandes desigualdades entre os trabalhadores qualificados e os pobres e desempregados. Portanto, é preciso lutar contra as grandes riquezas, mas não parar aí. Para conseguir uma autêntica redistribuição social da riqueza, não basta fazer os muito ricos pagarem. Os 10% ou 20% mais ricos também devem contribuir para a redistribuição. E é aí que começam as dificuldades, porque a igualdade social envolve muitos outros sacrifícios. É necessário fazer os muito ricos pagarem, mas a demagogia consiste em dizer que isto seria o suficiente.
Você fala dos sentimentos gerados por um mundo desigual. O futuro se vê cada vez pior. Qual é o ideal de sociedade hoje? Como alcançar uma sociedade melhor e igualitária? Ou de agora em diante devemos só pensar que tudo que é bom ou melhor é utopia?
As sociedades industriais deram origem a utopias otimistas: a confiança no progresso, o comunismo, o socialismo social-democrata. Hoje, essas utopias estão mortas. A confiança no progresso enfrenta a crise climática. O comunismo foi um totalitarismo economicamente ineficaz, e a maioria das antigas sociedades comunistas tem regimes autoritários. As social-democracias que reduziram muito as desigualdades vão mal. No entanto, o desejo de igualdade continua sendo forte como sempre, ainda que já não tenhamos uma utopia igualitária.
Ainda que sejam menos ambiciosas do que as utopias, é preciso construir políticas igualitárias para reforçar a igualdade entre grupos sociais, entre maiorias e minorias, entre sexos... É difícil, porque sem um forte crescimento – e sob a ameaça ecológica –, o chamado à solidariedade é um chamado aos sacrifícios: é preciso distribuir a riqueza, consumir menos e de uma forma diferente.
Contudo, é uma questão essencial e vejo poucas soluções além do fortalecimento da democracia, o reforço dos sindicatos e das associações de cidadãos. Devemos também lembrar que as sociedades relativamente igualitárias são melhores: são menos violentas, possuem uma saúde melhor, a tolerância é maior... Todos nós ganhamos com maior igualdade.
Se transformamos o sofrimento, as indignações e as raivas em movimentos políticos e sociais, por que não podemos fazer o mesmo com os sentimentos positivos?
São tempos de raiva. Os eleitores de Trump e de Bolsonaro estão com raiva, os britânicos que votaram pelo Brexit estão com raiva, os franceses que se manifestam estão com raiva, os argentinos que apoiam Javier Milei estão com raiva... Mas estas raivas não são suportadas pelos movimentos sociais organizados e reivindicativos. Não são “racionalizadas”, nem “esfriadas” pelos atores políticos.
É necessário lembrar, no entanto, que a democracia é um processo em que a raiva se torna parte de um sistema político. Caso contrário, a única coisa que se interpõe entre a raiva e o poder é a demagogia. Deste ponto de vista, a crise atual não é apenas econômica e social, é também, e talvez acima de tudo, democrática e política.
Os sindicatos e os partidos políticos devem ser a expressão da cólera, mas de uma cólera “negociável” e “discutível”. É necessário almejar que tenham sucesso, como os sindicatos americanos da indústria do automóvel, como os sindicatos franceses mobilizados contra a reforma das pensões e, mais além, pela igualdade de gênero e contra a discriminação. Contudo, é um trabalho que deve ser feito passo a passo, para transmitir a cólera, mas também para resisti-la.
Podemos construir outros mecanismos e outros imaginários de solidariedade?
Solidariedade significa aceitar fazer sacrifícios por pessoas que você não conhece, mas com as quais sente um vínculo. Nas sociedades industriais modernas, este sentido de solidariedade se apoia em dois pilares. O primeiro é o que Durkheim chamou de divisão do trabalho: todos os trabalhadores dependem uns dos outros e, portanto, são solidários entre si, e a sociedade deve lhes devolver parte da riqueza que produzem. A solidariedade deriva das relações de classe. O segundo pilar é a nação, o vínculo imaginário com os semelhantes, um vínculo que envolve sacrifícios através da guerra.
Hoje, com as mutações do capitalismo e das nações, estes dois tipos de vínculo estão muito fragilizados. Contudo, não vejo por que deveriam desaparecer. O trabalho continua sendo essencial e não há razão para degradá-lo e precarizá-lo. Da mesma forma, o imaginário nacional deve ser redefinido, sobretudo para que os migrantes encontrem o seu lugar nele.
Por último, parece-me que podemos desenvolver uma solidariedade prática e local, baseada nos direitos das pessoas e nos problemas comuns. Sem solidariedade, o chamado à igualdade é uma quimera. Vemos que esta questão é atualmente uma guerra ideológica entre os partidários de uma solidariedade restritiva, contra os estrangeiros, os imigrantes, os pobres, e os partidários de uma solidariedade inclusiva, aberta ao mundo e generosa.
No texto, você fala da França e diz que os eleitores de esquerda não só parecem estar diminuindo, como também que a esquerda mobiliza mais as camadas urbanas e os vencedores da meritocracia. Ao mesmo tempo, os perdedores se sentem desprezados e esquecidos. Podemos dizer o mesmo da Argentina, neste momento? A esquerda já era?
Quando as sociedades se tornam cada vez mais meritocráticas e valorizam a igualdade de oportunidades, mesmo que isso signifique não alcançá-la, conferem às escolas um monopólio virtual no momento de classificar os indivíduos e definir seus méritos. Os melhores graduados conseguem os melhores empregos e os demais, os piores. Embora este sistema reproduza as desigualdades sociais, muda o seu significado. Coloca os vencedores, que “merecem” o seu êxito, contra os perdedores, que “merecem” o seu fracasso.
Os derrotados se sentem humilhados e desprezados e deixam de votar ou votam em partidos de extrema direita que se opõem às “elites” que votam em partidos social-liberais e ambientalistas. Deste ponto de vista, a frente política que confronta a direita e a esquerda se inverteu completamente. Vale dizer que para recuperar um eleitorado popular, a esquerda deve se desprender de sua crença na meritocracia.
O mesmo está acontecendo na maioria dos antigos países industriais. Não conheço a política argentina o suficiente para saber o que acontece aí, mas tenho a impressão de que a longa decomposição do peronismo não está alheia a este processo.
Por que o modelo de igualdade de oportunidades meritocráticas tende a se impor como a concepção central da justiça social?
Nas sociedades industriais europeias, o movimento operário defendeu a igualdade de lugar: a justiça social visa reduzir as desigualdades entre as posições sociais. Contudo, quando as injustiças se individualizam, o sentido da justiça social muda. Dado que todos têm direito a ter acesso a todas as posições sociais, a justiça consiste antes de tudo em lutar contra as discriminações: racismo, machismo, obstáculos ao êxito.
A sociedade justa não é mais a da igualdade de oportunidades, mas a do acesso equitativo a posições desiguais. A luta contra a discriminação substituiu a luta pela igualdade social. Nem é preciso dizer que a igualdade de oportunidades é um princípio indiscutível de justiça e que estas lutas são legítimas.
No entanto, é preciso lembrar que a ausência de discriminação pode justificar grandes desigualdades, se a concorrência é percebida como leal. É o caso dos Estados Unidos, onde as desigualdades são mais bem toleradas porque as pessoas acreditam mais na igualdade de oportunidades.
Em segundo lugar, aqueles que não são discriminados, mas são pobres e vivem mal, sentem-se vítimas da injustiça e, muitas vezes, deslocam-se para a extrema direita. Por último, deve-se lembrar que as sociedades socialmente igualitárias discriminam menos que outras.
O fato de os movimentos feministas e decoloniais levantarem uma questão que acreditávamos ser antiga, fala-nos de um renascimento ou de novas e diferentes formas de sobrevivência?
Estes movimentos levantam velhas questões sobre as sociedades de castas e a supremacia do homem branco. No entanto, estas velhas questões são novas na medida em que, nas palavras de Tocqueville, manifestam o triunfo da igualdade.
Embora as mulheres continuem sofrendo desigualdades em relação aos homens, nunca foram tão iguais como agora: estudam mais que os homens, têm acesso a profissões masculinas, têm mais liberdade pessoal... É porque se sentem mais iguais – sentem que as desigualdades são insuportáveis – e os homens, muitas vezes, se sentem ameaçados. Trata-se de uma autêntica revolução.
Da mesma forma, é evidente que a discriminação racial existe. Mas, ao mesmo tempo, o racismo está se tornando uma opinião ilegítima e as sociedades são cada vez mais multirraciais. O relativo triunfo da igualdade também ameaça os homens brancos.
Esses novos movimentos que levantam velhas questões são revoluções antropológicas, basta voltar algumas décadas para se dar conta. Contudo, as desigualdades sexuais e raciais não são todas as desigualdades. Muitos homens brancos estão dominados e esmagados pela desigualdade. Temos que ser sensíveis à complexidade da vida social.
Por que diz que o conceito de “classes sociais” se tornou muito “frouxo”?
A tradição sociológica distinguia entre classes e estratos ou camadas sociais. Neste contexto, as classes não eram apenas grupos desiguais. Referiam-se a grupos com uma identidade e uma consciência comuns, com um sentimento de oposição às classes dominantes. Uma classe era um ator coletivo como a classe operária ou a burguesia. Todos nós éramos mais ou menos marxistas.
Hoje, a noção de classe se afrouxou porque se refere simplesmente às desigualdades sociais e econômicas. Então, falamos de classes trabalhadoras, classes médias e classes altas, utilizando categorias estatísticas em vez de grupos reais. A situação atual se caracteriza pelo fato de as classes sociais serem menos sólidas, enquanto as desigualdades continuam aumentando.
Você diz que o mundo social é ameaçador. Por acaso, não foi sempre assim?
São tempos difíceis, mas isso não é nada novo. Parece-me que a grande notícia de hoje é a crise ecológica e climática, que ameaça a própria sobrevivência da humanidade. Soma-se às crises econômicas, sociais e militares “clássicas”. Esta ameaça ecológica nos obriga a olhar para além das fronteiras nacionais, uma vez que a poluição não conhece fronteiras. E mais, esta ameaça exigirá que muitos de nós façamos sacrifícios em termos de consumo e estilo de vida.
A boa notícia é que muitas pessoas se sentem moralmente responsáveis pela situação do mundo, estão mudando seu modo de vida, solidarizam-se com os migrantes e defendem o direito dos indivíduos à sua própria singularidade. Estas aspirações devem ser incorporadas em forças políticas e sociais. É claro, as forças contra as quais lutam – nacionalismo, autoritarismo, crença nas fake news e conspirações – não são pouca coisa. Ainda assim, o pior não é necessário e a esperança é uma virtude.
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“Produzimos as desigualdades que condenamos”. Entrevista com François Dubet - Instituto Humanitas Unisinos - IHU