28 Outubro 2023
"Tragédias como a seca na Amazônia e a Pandemia do Coronavírus são resultados de uma gestão estreita e setorizada da sociedade e dos recursos ambientais, incapaz de projetar uma visão do todo", escreve Sandoval Alves Rocha, em artigo enviado diretamente ao Instituto Humanitas Unisinos — IHU.
Sandoval Alves Rocha é doutor em Ciências Sociais pela PUC-Rio, mestre em Ciências Sociais pela Unisinos/RS, bacharel em Teologia e bacharel em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE, MG), membro da Companhia de Jesus (jesuíta), trabalha no Serviço Amazônico de Ação, Reflexão e Educação Socioambiental (Sares), em Manaus.
A Amazônia passa por uma das mais severas secas das últimas décadas, afetando territórios, populações e o ecossistema da região. Há aldeias, comunidades e cidades isoladas no meio da Amazônia em razão do desaparecimento dos rios, que eram as únicas vias através das quais fluía o trânsito de pessoas, produtos e até a comunicação com as outras localidades. O colapso no abastecimento de água e alimentação em geral tornou a vida mais difícil nessas áreas.
Os ribeirinhos, cujas existências são fortemente influenciadas pela presença das águas e se dedicam às atividades pesqueiras, sofrem forte impacto da estiagem, sendo obrigados a alterar significativamente o seu estilo de vida. Os povos indígenas que retiram do poder das águas as inspirações e percepções que alimentam as suas culturas e visões de mundo, se entristecem, clamando aos céus o retorno das águas. O ecossistema sofre forte desidratação, impactando as dinâmicas de funcionamento da vida.
Estamos diante de uma tragédia anunciada. Muitos estudos já alertaram sobre os impactos das mudanças climáticas causadas pela ação humana. Pesquisas anunciaram o perigo da destruição dos ecossistemas e as consequências de crimes ambientais como queimadas, desmatamentos, poluição hídrica e atmosférica, mineração predatória e uso indiscriminado de agrotóxicos. Por mais dolorosos que sejam, esses sofrimentos têm sido previstos e largamente anunciados em publicações especializadas e meios de comunicações em geral.
Também anunciada, a tragédia da pandemia da Covid-19 assolou o mundo causando mais de 177 milhões de casos e 2,8 milhões de mortes. Somente no Brasil, quase 39 milhões de casos foram detectados e mais de 700 mil mortes registradas. A gestão ineficiente da saúde, associada ao negacionismo instalado nas estruturas do Estado, agravaram a tragédia e colaboraram para que nossas famílias fossem vitimadas. Impactados por tanto sofrimento, chegamos a afirmar que no futuro seríamos mais cuidadosos com os semelhantes e com a natureza.
Estávamos enganados! A natureza continua sendo devastada e a nossa convivência cada vez mais agressiva. A seca que vivemos na Amazônia não pode ser atribuída ao acaso nem aos movimentos insondáveis da natureza. Trata-se de uma dinâmica percebida e prevista há décadas, sendo confirmada a cada ano pela progressiva elevação das temperaturas, a intensificação de tragédias socioambientais e a ocorrência de estiagens cada vez mais prolongadas. A natureza clamava constantemente, mas nossa atenção estava mais focada no crescimento econômico em detrimento do cuidado das pessoas e do planeta.
Pautados por uma mentalidade reducionista e economicista ignoramos os apelos da natureza e nos fechamos aos clamores da vida que exigem olhares mais holísticos e abrangentes. A vida humana não acontece de forma isolada, mas a partir de inter-relações e interdependências com o meio que a envolve. A vida se realiza a partir de uma teia sustentada por dinâmicas e energias que se expressam de variadas formas. Tragédias como a seca na Amazônia e a Pandemia do Coronavírus são resultados de uma gestão estreita e setorizada da sociedade e dos recursos ambientais, incapaz de projetar uma visão do todo.
A seca na Amazônia nos apresenta mais uma oportunidade de aprender que somos gerados no mesmo dinamismo que mantém a vida humana, animal e ecossistêmica. Quando aprendermos essa lição, seremos menos egoístas, valorizaremos o milagre da vida, criaremos menos divisões, setorizações e privatizações, trabalharemos mais pelo bem comum.
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Amazônia vive tragédia anunciada. Artigo de Sandoval Alves Rocha - Instituto Humanitas Unisinos - IHU