21 Outubro 2023
"Sou muito grato à vida por me ter concedido a oportunidade de viver ao lado de Dom Mauro Morelli, por 8 anos. Estar ao lado desse profeta dos pobres e descartados foi a maior faculdade de teologia que já participei", escreve Dênis C. da Silva, presbítero da Diocese de Luz, em Minas Gerais, e mestrando em teologia sistemática pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia - FAJE.
No dia 09/10/2023 Dom Mauro Morelli, bispo fundador da Diocese de Duque de Caxias e São João do Meriti, na baixada fluminense fez a sua páscoa, falecendo no Hospital Mater Dei em Belo Horizonte, na capital mineira. Uma vida eclesial, social e humanitária, inalcançável para a maioria de nós, toda ela dedicada aos mais pobres e vulneráveis de nossa sociedade.
Algumas perguntas podem surgir já nos primeiros parágrafos desse texto. Dom Mauro Morelli, bispo fundador da Diocese de Duque de Caxias e São João de Meriti, morre na capital mineira e tem um texto escrito por um padre da Diocese de Luz - MG, mestrando em teologia sistemática pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia? Acredito que é necessária uma contextualização.
No ano de 2014, Dom Mauro Morelli visitou a Diocese de Luz - MG e estreitou laços com esta Igreja particular. Após a visita, buscou identificar e conhecer as riquezas e os desafios presentes nessa região diocesana, principalmente, àqueles ligados à Casa Comum, e às causas socioambientais. No ano de 2015, tendo tomado conhecimento da situação dos Canastreiros (moradores da região da Serra da Canastra, no Município de São Roque de Minas e Vargem Bonita-MG), numa atitude de solidariedade e serviço, em diálogo com Dom José Aristeu, passa a residir na Paróquia de São Roque, em São Roque de Minas/MG, auxiliando-me nos trabalhos pastorais, e dedicando-se mais intensamente, à defesa dos direitos daqueles que residiam na região do Parque Nacional da Serra da Canastra e que estavam na iminência de perderem um direito que lhes era natural, fundamental e anterior à constituição do Parque. Fruto de muita escuta, estudos, parcerias e diálogo com as devidas instâncias, alcançamos grande êxito nesta causa, obtendo o reconhecimento do Estado acerca do direito de permanência dos moradores nativos em suas propriedades que, de acordo com o projeto que tramitava na justiça até o momento, os mesmos deveriam ser retirados em vista da reapropriação e ampliação da área de preservação. Provando, portanto, que os canastreiros e sua agricultura familiar naquelas terras, a mais de quatro gerações, e o modo como viviam e se organizavam, continuava a ser o meio mais eficaz de proteção e preservação daquele bioma.
Terminada a missão canastra, Dom Mauro Morelli me acompanhou em mudança para Belo Horizonte, onde iniciaria os estudos de mestrado em teologia sistemática na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia. No auge da pandemia, Dom Mauro visitava os aglomerados em Belo Horizonte, fazendo diversas campanhas de arrecadação de alimentos para sustentar uma infinidade de famílias carentes. Não seria uma pandemia que iria desinquietar Dom Mauro Morelli.
Apesar de toda força evangélica em prol das inúmeras causas humanitárias, Dom Mauro era um homem de saúde muito fragilizada e em meados de dezembro de 2022, começava a sua primeira internação por pneumonia. De dezembro de 2022 até o seu falecimento em 09 de outubro de 2023, foram várias internações, mas todas vividas com profunda serenidade e amor ao Cristo servo e sofredor. Em nenhum momento eu vi Dom Mauro se desesperar ou reclamar daquela situação que a vida lhe impunha. Estive ao seu lado todos os dias em todas as internações e também no CTI. O segundo capítulo de minha dissertação de mestrado, foi todo escrito ao lado de seu leito, no Hospital Mater Dei, numa internação de 33 dias. No último momento, novamente no Hospital Mater Dei, eu segurava a sua mão e acompanhava a sua partida com profunda dor no coração, mas também com alívio, pelo fim de seu sofrimento. Vivemos nós dois uma única via crucis.
Dom Mauro Morelli. (Foto: Reprodução | CNBB)
Ao longo dessa via crucis, muitas pessoas foram se afastando e as visitas foram se tornando cada vez mais raras e esporádicas. Dom Mauro Morelli, passava semanas sem receber nenhuma visita. Ninguém mais convidava Dom Mauro Morelli para alguma reunião ou evento, sobretudo, onde se pudessem fotografar a sua presença. O caminho se tornou solitário e pesado. Parece que muitos nos matam, antes mesmo de morrermos realmente.
Chama-me atenção nesses últimos longos meses de internação, e esse é o motivo do texto, a ausência da Igreja no sofrimento de Dom Mauro e falo com conhecimento de fato. Como disse acima, estive ao lado de Dom Mauro Morelli em todas as suas internações e ao lado dele nas três casas em que ele foi acolhido. Se você muda de casa três vezes, é porque, provavelmente, não está sendo muito acolhido.
Dom Mauro praticamente não recebia visita de seus “irmãos” bispos, e nem de padres, a não ser um ou outro. Tendo acesso às mensagens de WhatsApp contidas em seu celular, eu pude ver a quantidade de mensagens que Dom Mauro enviava aos bispos e aos padres, pedindo inclusive ajuda financeira, que sequer foram lidas, ou que sequer foram respondidas. Alguns inclusive o bloquearam.
Obviamente, o interesse aqui não é realizar nenhuma caça às bruxas, mas chamar atenção para aquilo que temos ouvido insistentemente na boca do Papa Francisco, que levanta a sua voz contra uma “cultura do descarte”. Várias vezes, Dom Mauro Morelli me dizia que, “nós os eméritos, não existimos para a CNBB, não temos voz e nem vez”. A 'emeritude', se torna, por vezes, sinônimo de inutilidade. Quando você perde a utilidade você acaba perdendo o significado. E é nesse momento que você descobre quem realmente vai estar ao seu lado.
Dom Mauro Morelli, realmente tinha razão. Um grande número de bispos e padres eméritos e tantos outros em atividade estão sofrendo e não são vistos pela Igreja. O sofrimento é algo que não se fala em nosso meio eclesial. Quantos bispos eméritos estão por aí, às vezes, amparados também por suas irmãs idosas, em casas não preparadas para os receberem? Algum sortudo, tem um amigo padre que se disponha a celebrar a eucaristia em seu leito ou o convide para concelebrar em alguma comunidade. Quantos padres cometeram suicídio nos últimos anos e nós estamos simplesmente fingindo que isso não está acontecendo, que não nos diz respeito. A Igreja tem se tornado, sem generalizar obviamente, um lugar indiferente ao sofrimento a tantos que doaram a sua vida em prol da mesma. É como se o bispo, ou o padre idoso, se tornasse um peso. Tudo é contabilizado na base de quanto teremos que gastar? Plano de saúde, remédios, fraldas, cuidadoras etc. Qual o valor para a Igreja de um bispo ou um padre idoso que tanta vida injetou nessa Igreja?
Vivemos tempos de indiferentismo, mas também tempos de Francisco, que nos convida a sermos uma Igreja, samaritana, misericordiosa, compassiva, como hospital de campanha. Mas na prática o que vemos é justamente o contrário. Vemos uma Igreja, novamente insisto, sem generalizar, indiferente a dor dos seus mais fragilizados. Cortando o caminho. Como uma Igreja que se afirma como Igreja samaritana, pode ser indiferente ao sofrimento e a dor?
Sou muito grato à vida por me ter concedido a oportunidade de viver ao lado de Dom Mauro Morelli, por 8 anos. Estar ao lado desse profeta dos pobres e descartados foi a maior faculdade de teologia que já participei. As maiores aulas de cristologia eu tive, estando ao seu lado em seu leito de morte. Vivo esses dias de luto, com a mesma esperança que Carpinejar, escreve em seu livro, Manual do luto, “uma pessoa jamais desaparece em vão: ela deixa um legado de inspiração”, tal como o legado de Dom Mauro Morelli e a sua esperança no “amanhecer do novo”. Apesar de tanta indiferença no mundo e por vezes na própria Igreja, é preciso transformar o luto em luta. Dom Mauro Morelli, presente!
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“Senhor, aquele que tu amas está doente” (Jo 11, 3). E daí? A indiferença eclesial - Instituto Humanitas Unisinos - IHU