25 Outubro 2023
Deus e a história. O ensaio de Brunetto Salvarani questiona se o Ocidente já deveria ser catalogado irremediavelmente como pós-cristão.
O artigo é do cardeal italiano Gianfranco Ravasi, ex-prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, publicado por Il Sole 24 Ore, 15-10-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Multiplicaram-se os títulos bastante homogêneos e talvez um pouco monótonos: a Igreja está em crise, o exílio de Deus, Deus não está mais aqui, igrejas vazias, paróquias líquidas, o cisma subterrâneo/evidente, a fuga das mulheres de quarenta anos (dos espaços eclesiais), menos sacerdotes e mais idosos, reforma da Igreja, que está em chamas, como aconteceu em Notre Dame... Até o ensaio de um observador atento e constante do fenômeno religioso como o jornalista, escritor e o teólogo Brunetto Salvarani, à primeira vista pareceria alinhar-se com o tom de queixa, pelo título de seu último ensaio: Sem Igreja e sem Deus. É, no entanto, significativo que a obra seja publicada por uma editora "laica" como a Laterza, recentemente interessada no tema, tanto que o mesmo autor já havia publicado Uma Teologia para Tempos Incertos, mais tarde acompanhada pela citada e bem-sucedida obra A Igreja está em chamas? de Andrea Riccardi.
Está em curso, sem dúvida, uma fermentação que pode ser classificada de forma otimista como em crescimento, mas também pessimistamente como em declínio: está fazendo ferver o cristianismo ocidental, tanto que alguns contrastam o empenho pela "inculturação" nas novas coordenadas sociais com um novo reconhecimento da "exculturação" do fenômeno cristão a partir do presente histórico. A pandemia contribuiu para desbotar ainda mais a figura do “praticante”; mas também aquela do "crente" está igualmente se tornando mais descorada. Multiplicam-se então as “reservas” protegidas, semelhantes a oásis sagrados habitados pelos movimentos conservadores nas teses teológicas, cultuais e culturais. Nem podem ser ignorados – muitas vezes no mesmo comprimento de onda – os chamados “despertares” carismáticos ou os sincretismos espirituais, sem falar dos fundamentalismos, tanto que, diante desses diversos fenômenos, dois jornalistas do “Economist” escreveram algum tempo atrás um texto emblemático, God is Back, para a Penguin Books.
Para trazer Deus de volta à encruzilhada da história, é claro, não bastam aparições epifânicas marianas e nem mesmo estratégias pastorais enjambradas, mas uma reflexão consciente e coerente que não desmistifique, mas também não mitifique a crise: nesse sentido adquire um significado a abordagem, não só pastoral, mas também hermenêutica global, da sinodalidade desejada pelo Papa Francisco. O ensaio de Salvarani assume essencialmente como estandarte o convite para “aproveitar a crise”, arquivando, mas não ignorando, as análises realistas sobre a evolução da cultura e da sociedade contemporâneas. As suas páginas movem-se, assim, deixando para trás as queixas (repetimos, não infundadas) e propõem uma sequência de opções que remontam ao coração pulsante da fé cristã, amputando-o da gordura acumulada ao longo do tempo que o comprime.
Vamos repetir: o Ocidente já deveria ser irremediavelmente classificado como pós-cristão? Para esse questionamento, que enreda o corpo das Igrejas e que agora já é aceito como adquirido por amplas camadas socioculturais onde a nova divindade tecnológica-informática se instalou, Salvarani (com outros estudiosos do fenômeno) responde listando uma série de antídotos, sobre o qual ele já interveio no passado em outros seus escritos. Só para exemplificar, pensemos nos desafios do pluralismo religioso com “a irrupção do Papa Francisco” que também recriou com vigor o tema do diálogo e da solidariedade. Deve-se, além disso, acertar as contas com a “transferência de Deus” em direção ao Sul do mundo, onde a semente cristã encontra solos férteis, em comparação com aqueles pedregosos do Ocidente.
Como aprecia o autor, o que é mais relevante é o retorno às fontes, por um lado a Bíblia, por outro a figura de Jesus ainda incisiva e decisiva na atmosfera nebulosa da secularização.
Da mesma forma, deve ser novamente transcrita a tríade das virtudes fé-esperança-caridade como inspiração e marca d'água da prática cristã. Com uma imagem sugestiva, Salvarani propõe a passagem de praticantes a peregrinos tanto na busca
da verdade como no diálogo ecumênico e no estar além de nacionalismos, identitarismos e pobrezas de visão étnicas. Muito mais está distribuído nos capítulos do ensaio, tudo representado por um encaixe de reflexões, experiências, citações e assim por diante, sempre de acordo com o mencionado programa geral de “aproveitar a crise”.
Ao finalizar, apontamos outro sinal do interesse da editora Laterza pelos assuntos religiosos e morais cristãos. Nos "Saggi tascabili", a conhecida e prolífica série da editora de Bari, aparece um texto apaixonante de Dom Pierluigi Di Piazza (1947-2022), fundador do Centro Balducci de Zugliano (Udine) para o acolhimento de estrangeiros e para a promoção cultural em nome daquele grande pensador e testemunha que foi o Padre Ernesto Balducci. A base de suas reflexões é o mandamento “Não matar”: no original hebraico é mais forte, “Não cometer assassinato” contra os indefesos (foi famoso o debate de 1961 em torno do filme com o mesmo título do mandamento, dirigido por Claude Autant-Lara, com a crise de consciência de um seminarista que cometeu um crime desse tipo na guerra).
Naturalmente, as notas de Dom Di Piazza apontam para o subtítulo “Por uma cultura de paz” e adquirem um significado particular no atual contexto da guerra na Ucrânia. E, em um nível mais geral, transfiguram-se num apelo a não nos resignarmos à injustiça, à violência, às estruturas opressivas, no espírito evangélico.
DI PIAZZA, Pierluigi. Non uccidere, Ed. Laterza.
SALVARANI, Brunetto. Senza Chiesa e senza Dio, Ed. Laterza.
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O fermento que anima a Igreja. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU