19 Outubro 2023
Como reação ao artigo de Andrea Grillo sobre o cardeal Muller, o Prof. Z. Carra oferece uma interessante contribuição ao debate aberto pelas “dubia” apresentadas pelo Cardeal Duka e pela reação do Cardeal Mueller ao responsum do Dicastério para a Doutrina da Fé.
O artigo de Zeno Carra, teólogo, padre da Diocese de Verona e professor do Studio Teologico San Zeno, na Itália, é publicado por Come se non, o blog de Andrea Grillo, 17-10-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Prezado professor,
Agradecendo-lhe a aguda análise dos debates atuais na Igreja e por nos ajudar a não nos confiar em simplificações tendenciosas, como muitas vezes estamos acostumados a fazer hoje em dia, tomo a liberdade de intervir com uma consideração à margem das questões.
À leitura dos textos envolvidos, ou seja, a resposta oficial da CDF ao cardeal Duka [1] e a carta do cardeal Müller, [2] não pude deixar de me debruçar sobre um aspecto formal que, na minha opinião, não é secundário: o prefeito da CDF, com o apoio da autoridade da Amoris laetitia e da sua interpretação argentina, oficialmente assumida como autêntica pelo Pontífice, invoca “o obséquio da inteligência e da vontade” que todo fiel é chamado a dar ao magistério papal. Essa fórmula é encontrada em Lumen gentium 25 e no cân. 752 do CIC, sobre a qual a carta apostólica de João Paulo II Ad tuendam fidem de 1998, e cuja importância é detalhadamente ilustrada em um documento de 1998 da própria CDF, na época presidida pelo cardeal J. Ratzinger. [3]
Creio que não é historicamente exagerado afirmar que os referidos documentos de 1998 entendessem “disciplinar” uma certa tendência à pluralidade por parte da teologia, tentando recompactar a consciência pensante da Igreja numa visão tão unívoca e uniforme quanto possível. O fato que muitas vezes uma determinada teologia tenha sido concebida como uma exegese dos textos do magistério, embora talvez não explicitamente desejado, pode ser visto como resultado de um “aperto” daqueles anos e das disposições daquele documento. Concentrar o pensamento do corpo eclesial no ponto único e central da mens do Romano Pontífice pode ser uma tentativa de salvaguardar a nota da unidade da Igreja, mas certamente não pode deixar de ser à custa da escuta do que provém das vidas reais dos crentes, das condições da história presente, do trabalho de pesquisa teológica, das vozes externas à Igreja com as quais o Espírito do Ressuscitado quer falar à sua esposa.
Ora, justamente a Amoris laetitia, nas suas páginas iniciais, pareceria minar indiretamente aquela abordagem, pois no n. 3 diz:
Recordando que o tempo é superior ao espaço, quero reiterar que nem todas as discussões doutrinais, morais ou pastorais devem ser resolvidas através de intervenções magisteriais. Naturalmente, na Igreja, é necessária uma unidade de doutrina e práxis, mas isso não impede que existam maneiras diferentes de interpretar alguns aspectos da doutrina ou algumas consequências que decorrem dela. Assim há de acontecer até que o Espírito nos conduza à verdade completa (cf. Jo 16,13), isto é, quando nos introduzir perfeitamente no mistério de Cristo e pudermos ver tudo com o seu olhar. Além disso, em cada país ou região, é possível buscar soluções mais inculturadas, atentas às tradições e aos desafios locais. De fato, “as culturas são muito diferentes entre si e cada princípio geral (...), se quiser ser observado e aplicado, precisa de ser inculturado”.
O Papa faz aqui uma profissão solene e explícita de parcialidade, recordando que nem em todos os campos da vida de crentes se deve esperar dele as necessárias instruções e/ou permissão para agir. Não se trata de uma desativação direta do que está estabelecido nos documentos acima mencionados, mas certamente uma limitação do campo para o qual o crente é chamado a conformar-se com obséquio de pensamento e de vontade ao pensamento do Papa.
Por essa razão, não posso deixar de pressentir um risco de "curto-circuito" formal onde, precisamente em apoio à Amoris laetitia, se apele ao princípio do “obséquio da inteligência e da vontade”, enquadrando-a assim numa perspectiva que, creio, não lhe pertence. Se a Amoris laetitia abre espaços de possibilidade à consciência dos crentes, fazendo desta o sujeito teológico que, em diálogo sincero com os vários loci de autoridade (o Evangelho, as indicações do magistério, o conselho dos pastores e dos irmãos...), é chamada a assumir as suas responsabilidades diante de Deus e dos homens, parece um pouco estranho colocar esse documento naquela posição formal diferente para que, em última análise, o magistério papal é a autoridade suprema sobre a vida dos crentes. E talvez exponha a autoridade “diferente” da Amoris laetitia de ter que se defender numa batalha travada num campo que não é seu. Não é por acaso, de fato, que o cardeal Müller começa a refutar a resposta da CDF apelando precisamente ao princípio formal do obséquio e tenta a partir dele desativar o alcance diferente da exortação de 2014, reconduzindo-a à linha formal dos documentos anteriores.
Se, além disso, entrarmos nos conteúdos materiais da resposta da CDF, é evidente como as soluções nela indicadas sejam plenamente compatíveis com aquela mens da Amoris laetitia que dá uma palavra de autoridade à realidade das vidas e das situações contingentes para decidir concretamente o que fazer. Não há o que dizer sobre isso. Só me parece um pouco fora de tom aquele apelo inicial, formalmente não homogêneo com a operação que a exortação e os documentos a ela explicativos pretendem abrir. Isto é, não se pode tentar afrouxar aquele papel único e total que o magistério papal assumiu nos últimos dois séculos recorrendo formalmente justamente a ele. Talvez, mas certamente os objetores não a teriam aceitado, uma ilustração mais ampla do papel diferente que o magistério quer assumir, em linha com AL 3, teria sido mais coerente.
[1] Ver aqui.
[2] Ver aqui.
[3] Tanto a carta do Papa como o documento da CDF de 1998 podem ser lidos aqui. A nossa fórmula está explicada no número 10 do documento. A terceira proposição da Professio fidei afirma: “Adiro ainda, com religioso obséquio da vontade e da inteligência, aos ensinamentos que o Romano Pontífice ou o Colégio Episcopal propõem quando exercem o Magistério autêntico, ainda que não entendam proclamá-los com um ato definitivo”. A esse parágrafo pertencem todos aqueles ensinamentos - em matéria de fé ou moral - apresentados como verdadeiros ou pelo menos como garantidos, ainda que não tenham sido definidos com juízo solene nem propostos como definitivos pelo magistério ordinário e universal. Tais ensinamentos são, no entanto, uma expressão autêntica do magistério ordinário do Romano Pontífice ou do Colégio dos Bispos e requerem, portanto, o obséquio religioso da vontade e do intelecto. São propostos para alcançar uma compreensão mais profunda da revelação, ou seja, para ressaltar a conformidade de um ensinamento com as verdades da fé, ou, finalmente, para alertar contra concepções incompatíveis com essas mesmas verdades ou contra opiniões perigosas que possam levar ao erro. A proposição contrária a tais doutrinas pode ser respectivamente qualificada como errônea ou, no caso dos ensinamentos de ordem prudencial, como temerária ou perigosa e, portanto, "tuto doceri non potest”.
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Sobre as dubia e o magistério católico. Artigo de Zeno Carra - Instituto Humanitas Unisinos - IHU