17 Outubro 2023
- O cardeal Müller baseia uma boa parte de sua carta recorrendo a uma expressão inexistente na referida Constituição Dogmática e estranha no mundo dogmático, jurídico e teológico (o "assentimento religioso da inteligência e da vontade").
- Ele parece desconhecer que tal Responsum é um texto da Congregação, aprovado in forma communi, não in forma specifica.
- Recorrendo a essa artimanha, ele ignora a clara e nítida diferenciação estabelecida pela Constituição Dogmática Lumen Gentium entre assentimento de fé e religiosa submissão (n. 25).
- Esse modelo de organização eclesial é comum entre os defensores da teologia "papolátrica" e pré-conciliar, já que leem e interpretam o Vaticano II à luz do Vaticano I, algo evidente tanto na carta do cardeal Müller quanto em seus "dúbios" companheiros de viagem, mesmo que sejam cardeais.
O artigo é de Jesús Martínez Gordo, teólogo espanhol, publicado por Religión Digital, 15-10-2023.
Eis o artigo.
A verdade é que, lendo a crítica do cardeal Müller em sua Carta Aberta ao também cardeal Duka sobre a resposta dada em 25 de setembro pelo também cardeal Víctor Manuel Fernández, novo prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, a uma série de perguntas feitas por Duka sobre a comunhão eucarística para divorciados que se casaram novamente, tive que revisar, em latim, o número 25 da Constituição Dogmática sobre a Igreja, Lumen Gentium, porque parecia que o cardeal Müller não estava considerando devidamente – na primeira das argumentações que ele apresenta – a diferença estabelecida nesta Constituição Dogmática entre submissão religiosa (obsequium religiosum) e o assentimento da fé (assensus fidei).
E, depois de revisar a Lumen Gentium, descubro que o cardeal Müller baseia uma parte significativa de sua Carta em uma expressão inexistente nessa Constituição Dogmática e estranha no mundo dogmático, jurídico e teológico ("assentimento religioso da inteligência e da vontade"). Essa expressão foi usada pela primeira vez no famoso Responsum de 28-09-1995 da Congregação para a Doutrina da Fé sobre a autoridade da Carta Apostólica Ordinatio Sacerdotalis (1994). Isso ocorreu durante o período em que essa congregação era presidida pelo então cardeal J. Ratzinger.
E, de forma picuinha e até mesmo ressentida, como ele faz ao longo de uma parte considerável de sua Carta, também percebo que o cardeal Müller parece desconhecer – ou, pelo menos, não considerar devidamente – que esse Responsum é um texto da Congregação, aprovado in forma communi, não in forma specifica, ou seja, a autoria é responsabilidade da congregação e o papa limita-se a autorizar sua publicação. Até aí se estende toda a autoridade jurídica, teológica e dogmática do "assentimento religioso da inteligência e da vontade" com base no qual ele fundamenta grande parte de sua argumentação.
Devo salientar que, recorrendo a essa artimanha, ele deixa de lado a clara e distinta diferenciação estabelecida pela Constituição Dogmática Lumen Gentium (n, 25), entre "assentimento de fé" e "submissão religiosa". E também devo observar que ele está submetendo essa diferenciação conciliar à opinião aparente da Congregação para a Doutrina da Fé, embora esta estivesse sob a presidência de J. Ratzinger quando se tentou introduzir tal artifício conceitual.
Ao contrário do que afirma o cardeal Müller (e com ele a maioria dos cardeais que têm dúvidas aparentemente, talvez – insisto nisso – por prestar mais atenção ao Responsum de 1995 da Congregação para a Doutrina da Fé do que à Constituição Lumen Gentium), o Vaticano II estabelece essa diferenciação entre assentimento de fé e submissão religiosa para proclamar que o assentimento de fé é o que é requerido dos católicos quando uma doutrina é considerada infalível e irreformável, enquanto a submissão religiosa é solicitada pelo magistério falível ou, na melhor das hipóteses, inerrante ou indefectível, ou seja, histórico.
Se neste último tipo de verdades se pede submissão religiosa (obsequium religiosum) porque o que está em jogo é a santidade pessoal, com as verdades infalíveis e irreformáveis se exige o assentimento de fé (assensus fidei) porque o que está em jogo são a fé e a pertença eclesial.
E caso alguém tenha dificuldade em diferenciar um tipo de magistério do outro, é importante lembrar que, para que uma doutrina proclamada por meio de um julgamento solene seja inequivocamente reconhecida como infalível e irreformável, e, portanto, para que seja aceita com assentimento de fé, deve atender a quatro critérios à luz do Vaticano I e do Vaticano II: deve ser uma verdade revelada por Deus; deve ser proclamada por meio de um julgamento solene; deve exigir uma resposta irrevogável de fé e deve excluir a proposição contrária como herética.
É evidente que quase todo o magistério da Igreja relacionado com a moral sexual e com o matrimônio – para não dizer tudo – é autêntico e, portanto, falível. Para mais detalhes, remeto aos interessados ao que detalhadamente exponho a respeito em meu livro Estuve divorciado y me acogisteis. Para comprender Amoris Laetitia (PPC, 2016).
Com base nos dados apresentados, acredito que a conclusão que se impõe é difícil de ser questionada: quando, no início de sua carta, o cardeal Müller recorre – apoiado no mencionado Responsum de 1995 – ao artifício conceitual do "assentimento religioso da inteligência e da vontade", ele está usando uma expressão estranha ao Vaticano II e compreensível apenas no contexto de uma mentalidade infalibilista que estende – como ocorreu durante o pontificado de João Paulo II – o assentimento de fé, próprio de uma doutrina infalível e irreformável, a outro tipo de magistério falível ou, como mencionei, na melhor das hipóteses, inerrante ou indefectível e, portanto, histórico.
É outra maneira, sutil e intelectualmente elaborada, de tentar minar a recepção conciliar do Vaticano II com base no que foi aprovado nesta assembleia e ratificado por Paulo VI, a fim de defender, e quando necessário, gerenciar, um modelo de Igreja congelado.
A inconsistente carta, tanto do ponto de vista dogmático quanto do ponto de vista teológico e jurídico, além do pastoral e as dúvidas (dubia) de seus companheiros de viagem se baseiam em uma interpretação do Vaticano II a partir da inacabada Constituição Dogmática Pastor Aeternus (1870), que só foi devidamente recebida em 1964, quando os padres conciliares aprovaram a doutrina sobre a colegialidade episcopal, tanto no governo quanto no magistério eclesial, e Paulo VI a ratificou. E, com essa doutrina, a da infalibilidade de todo o povo de Deus. E igualmente, quando aprovaram e ratificaram a doutrina sobre a catolicidade como comunhão de Igrejas locais, uma verdade dogmática, teológica e jurídica que tem pouco a ver com o modelo de Igreja e unidade compreendidos e vividos como uma multinacional com delegados do presidente (neste caso, o Papa em exercício) ou seus vigários em todo o mundo. Esse modelo de organização eclesial é muito comum entre os defensores da teologia "papolátrica" e pré-conciliar, pois leem e interpretam o Vaticano II à luz do Vaticano I, algo evidente tanto na carta do cardeal Müller quanto em seus dúbios companheiros de viagem, mesmo sendo cardeais.
Se à diferenciação conciliar entre o assentimento de fé e o submissão religiosa, e à proclamação, igualmente conciliar, da catolicidade como "comunhão de igrejas locais" acrescentarmos as contribuições dos Sínodos de 2014 e 2015 e a carta pós-sinodal Amoris Laetitia (2016) sobre a necessidade de conciliar – em fidelidade à tradição católica, quando supera a heresia novaciana – a verdade com a misericórdia, podemos concluir que nos deparamos novamente com o eterno retorno pré-conciliar com o qual o cardeal Müller e seus colegas tentam cercar o Papa Francisco, um papa que, vindo do fim do mundo, estaria sendo, em nome de um inaceitável pastoralismo, não apenas um leigo em teologia e jurisprudência, mas também suspeito do ponto de vista dogmático.
Se não me engano, isso é o que o cardeal Müller e seus colegas cardeais estão tentando dizer com suas dubia, não sei se plenamente conscientes do novacianismo (defesa da verdade sem misericórdia) com o qual, pelo que parece, estão flertando. Mas não serei eu a acusá-los disso. Por isso, digo que parece que eles estão flertando. Por enquanto, me contento em expressar a dúvida – que também tenho – quando os leio, embora não a envie – nem tenha a intenção de fazê-lo – ao Dicastério para a Doutrina da Fé para que a esclareçam. Basta-me formulá-la a eles. E, a verdade é que gostaria de ouvir a resposta deles.
Por fim, devo dizer, em meio a este diálogo teológico em liberdade (tomara que tivesse sido possível nos pontificados de João Paulo II e Bento XVI), que às vezes tenho a impressão de ver o cardeal Müller e seus colegas cardeais mergulhados em uma dúvida tão metódica, sistemática e persistente que acredito que não conseguirão superá-la (permito-me a ironia) mesmo que contassem com a inestimável ajuda de R. Descartes, o pai das verdades claras e distintas.
E ironias à parte, acima de tudo tenho que dizer que somos a maioria dos teólogos, cristãos e cristãs que, carregados de razões evangélicas, teológicas e dogmáticas, vêm pedindo, há décadas, que saiamos o mais rápido possível da dúvida sistêmica que, evidenciada mais recentemente no drama do abuso sexual na Igreja, precisa ser superada em respeito às vítimas e em coerência com o que foi aprovado no Vaticano II.
Portanto, não resta alternativa senão enfrentar essa dúvida sistêmica que assola a Igreja. E depois, se houver forças, continuar a lidar com outros detalhes da carta do cardeal Müller, com as dubia de seus colegas cardeais e com a abordagem pré-conciliar, absolutista e monárquica que, sem sucesso, têm tentado impor desde o fim do Vaticano II.
Os padres sinodais têm a palavra. Muitos de nós agradeceriam se eles não deixassem essa oportunidade passar.
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Cardeal Müller: para trás, nem para pegar impulso. Artigo de Jesús Martínez Gordo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU