18 Outubro 2023
"Como diria Calvino, o universo é um espelho. Só podemos visualizar nele o que compreendemos de nós. Por isso essa é a tarefa de toda literatura, desde que ela existe e enquanto ela puder existir".
O comentário é de Rodrigo Petronio, publicado em sua página pessoal do Facebook, 15-10-2023.
Escritor e filósofo, Rodrigo Petronio é professor titular da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Álvares Penteado – FAAP. Desenvolve pós-doutorado no Centro de Tecnologias da Inteligência e Design Digital – TIDD/PUC-SP sobre a obra de Alfred North Whitehead e as ontologias e cosmologias contemporâneas. É também doutor em Literatura Comparada pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ. Possui dois mestrados: em Ciência da Religião, pela PUC-SP, sobre o filósofo contemporâneo Peter Sloterdijk, e em Literatura Comparada, pela UERJ, sobre literatura e filosofia na Renascença. Entre suas publicações poéticas, destacamos História natural (Gargântua, 2000), Assinatura do sol (Gêmeos R, 2005) e Pedra de luz (A Girafa, 2005). Atualmente divide com Rodrigo Maltez Novaes a coordenação editorial das Obras Completas de Vilém Flusser pela Editora É.
Pelo IHU, Petronio publicou Mesoceno. A Era dos Meios e o Antropoceno (Cadernos IHU ideias, número 339); Yuval Noah Harari: pensador das eras humanas (Cadernos IHU ideias, número 329); e Desbravar o Futuro. A antropotecnologia e os horizontes da hominização a partir do pensamento de Peter Sloterdijk (Cadernos IHU ideias, número 321).
Aproveito os cem anos de Ítalo Calvino para falar um pouco desse escritor e pensador excepcional. Calvino é um tipo de escritor humanista que se torna cada vez mais raro. Não satisfeito em ser um dos grandes ficcionistas do século XX, dispôs-se em compartilhar leituras e modos de ler, em um cânone pessoal e generoso. Em “Como ler os Clássicos”, isso é claro. Os cânones conservadores tentam definir a essência dos clássicos, ocultando a arbitrariedade dessas definições. Valorizam uma grandiloquência moral. Direcionam autores e obras para uma humanidade abstrata.
Calvino aposta em algo mais singelo e efetivo. Enfatiza o “como ler”, não o “porquê” ou “o quê” seria um clássico. Conduz nossos olhos e o afeto por uma tradição de três mil anos. E nos dá aquela linda definição: clássico é aquilo que se lê contra o fundo ruidoso do mundo. Ainda não satisfeito em construir um cânone maravilhoso, projeta a literatura para os próximos mil anos.
Analisei linha a linha “Seis propostas para o próximo milênio” nas minhas oficinas. Que obra-prima. A leveza, a velocidade, a visibilidade, a rapidez e outros valores da literatura abordados transversalmente. Desde o detalhe ao escopo mais amplo, vemos um cinema-afresco se desenhar na tela da mente. De passagem das “Metamorfoses” de Ovídio aos excessos de Folengo e Rabelais e aos delírios de Orlando-Ariosto. De Homero aos escritores fantásticos do século XIX, que Calvino antologizou magistralmente. Das “Mil e uma noites” e Cervantes aos autores do século XX. Das viagens de Luciano de Samósata à rapidez absurda da prosa de Voltaire e Cyrano de Bergerac. Da odisseia de Dante à fantasia de Guido Cavalcanti e da poesia do século XIII. Em nada disso se suspeita nem um vestígio de erudição pedante.
Calvino segue a máxima de Borges: ser sempre um leitor hedonista. E por isso uma de suas inspirações são as fábulas, que também antologizou. Herdeiro de Oulipo e dos arroubos imaginários medievais de Ramón Llull e da ars combinatoria aplicada à ficção, seguiu os fios do homo ludens de Huizinga. Como no hinduísmo, entendeu o universo e a literatura como um divino-humano jogo. As “Cidades invisíveis” continuam sendo um clássico da literatura mundial. Um livro-limite por meio do qual esse misto de Marco Polo e Kublai Khan desbravou novos continentes da escrita. “O castelo dos caminhos cruzados” é uma joia de montagem-interatividade, quando à exceção de Cortázar poucos autores ousavam essas estruturas abertas, como diria Eco. O senhor Palomar é um exercício divertido de amplificação da razão. Um personagem geômetra que lembra o senhor Teste. Calvino foi um dos autores que levou mais longe a aliança ancestral entre literatura e pensamento abstrato, reivindicada por Valéry, um de seus mestres. Como Borges e Valéry, Calvino criou um cosmos-tabuleiro onde deuses, entidades e humanos desenham sua liberdade e seu destino.
Diferente da ficção ficcional, Calvino percebeu a metaficção como possiblidade de unir literatura, cosmologia e jogo.
Como o narrador Vyasa do Mahabharata, ao narrar estamos simultaneamente dentro e fora do universo que criamos e no qual vivemos. Como diria Calvino, o universo é um espelho. Só podemos visualizar nele o que compreendemos de nós. Por isso essa é a tarefa de toda literatura, desde que ela existe e enquanto ela puder existir.
Leia mais
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Ítalo Calvino. "Clássico é aquilo que se lê contra o fundo ruidoso do mundo". Comentário de Rodrigo Petronio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU