Por: Cesar Sanson | 18 Abril 2014
"Dizem que um clássico é aquele autor que consegue ter vigência e sentido para leitores de muitas culturas e de muitas idades distintas. Por isso demora até que se saiba que alguém é um clássico, pois é preciso não só cativar gente de muitas tradições culturais, mas também de muitos séculos .Não sabemos ainda o que dirá o futuro, mas, graças às características desta época, García Márquez demonstrou sua capacidade de cativar gente de muitas culturas". O comentário é de William Ospina, escritor colombiano, em artigo publicado pelo jornal El País, 17-04-2014.
Eis o artigo.
Era meia-noite quando se abriu a porta do apartamento de Bogotá onde celebrávamos a estreia da peça Diatribe de Amor Contra um Homem Sentado, e García Márquez apareceu com uma notícia nos lábios: “Acabam de matar Luis Donaldo Colosio!”. Luz Marina Rodas, a gerente do teatro, havia me convidado naquela tarde para a estreia, acrescentando com incerteza que talvez tivéssemos a presença do autor.
O autor não se havia deixado ver no teatro, embora alguém contasse depois que, apagadas as luzes, sua silhueta se instalou na última fila. Os convidados saímos depois para a casa da festa, com Laura García, a protagonista do monólogo, o diretor, Ricardo Camacho, e outros amigos. Já nos havíamos conformado com a ideia de não vê-lo quando García Márquez chegou com a notícia. Vinha tarde porque havia ficado falando ao telefone com Carlos Fuentes e outros amigos do México.
Eu o havia lido desde os meus quinze anos, mas não o contava entre os humanos aos quais fosse possível conhecer, a sim entre os clássicos da literatura; para mim, pertencia mais à lenda que ao mundo físico. Cem Anos de Solidão havia causado uma comoção nas nossas letras e iniciara várias gerações na literatura. Exceto por Jorge Isaacs, Vargas Vila, José Asunción Silva e José Eustasio Rivera, os escritores colombianos eram até então glórias locais; mas Gabo tinha triunfado no mundo inteiro: não era lido só em inglês e em francês, era lido em húngaro, em mandarim, em lituano, em tâmil, em japonês, em árabe. E quando em 1982 lhe chegou o Prêmio Nobel, fazia muito tempo que já era um dos romancistas mais famosos do mundo.
Eu inclusive sentia que a fama presente de Gabo era maior que a de todos os seus congêneres. Em vida, Shakespeare só foi conhecido pelos londrinos que frequentavam o teatro; Voltaire e Goethe tiveram em seu tempo uma fama escassamente europeia; Cervantes demorou séculos até chegar à Alemanha e à Rússia, embora acabasse por fascinar Heine, Tolstói, Thomas Mann, Dostoiévski e Kafka.
Naquela noite, tive o privilégio de conhecer a maior lenda da nossa literatura, mas o que mais me surpreendeu foram sua simplicidade e sua proximidade. Quando nos sentamos à mesa frente a frente, contei-lhe que por acaso havia relido Cem Anos de Solidão dias atrás, e que um episódio me tinha impressionado especialmente. Quis saber qual, e lhe falei do momento em que o coronel Aureliano Buendía volta derrotado a Macondo e, doente, em uma cela, recebe a visita da sua mãe.
Comoveu-me que ela permanecesse por um momento visitando-o em completo silêncio, enquanto ele jazia em sua cama de armar, com os braços estendidos para trás pela dor das axilas inflamadas. Esse silêncio entre dois seres que tinham tanto a se dizer e que tanto se assemelhavam em sua vontade obstinada e em sua capacidade de colocar os outros para girarem ao seu redor me parecia muito eloquente.
Nesse episódio, quando Úrsula vai se retirar, lhe diz bruscamente: “Trouxe um revólver para você”. “Não vai me servir de nada – responde o coronel –, mas deixe-o, porque vão solicitá-lo na saída.” Gabo ia repetindo os diálogos à medida que eu os recordava, e passei à cena seguinte, quando os soldados tiram Aureliano da sua cela para conduzi-lo ao paredão, pelo caminho do cemitério. De repente se abre a janela da casa onde seu irmão vive com Rebeca Buendía; José Arcadio sai com um rifle, mira os homens do pelotão de fuzilamento, que na verdade sentem alívio, pois não querem matar o coronel, e salva o seu irmão no último instante.
Gabo então me fez uma revelação: “Observe que nos meus planos o coronel ia morrer fuzilado, e era ali onde o executavam. Por isso o romance começa com o momento em que o coronel, diante do pelotão de fuzilamento, recorda aquele episódio da sua infância em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Mas, quando estava contando como os soldados o levavam para o cemitério, recordei que nessa rua vivia José Arcadio, e ocorreu algo que eu não havia previsto: o irmão tomou o fuzil, saiu da casa e salvou o coronel”.
Aquela confidência literária marcou o começo de minha amizade com García Márquez, mas ao mesmo tempo começou a modificar a ideia que eu tinha sobre a sua literatura. Para mim, Gabo era um autor hábil e fascinante, com um domínio extraordinário da arte de contar e um controle absoluto dos seus argumentos; ali compreendi que sua aventura criadora seguia outro curso, que o escritor estava sempre disposto a se deixar surpreender por seus personagens e não sabia previamente como terminaria seu relato.
No Panamá, Jorge Ritter se encontrou um dia com García Márquez e lhe perguntou pelo romance que estava trabalhando. “Já está pronto”, respondeu-lhe Gabo, “só falta escrevê-lo”. Parece uma frase travessa, mas está cheia de sentido. Dasso Saldívar e Gerald Martin contaram como García Márquez trabalhou por anos nos rascunhos de Cem Anos de Solidão, esse romance que originalmente iria se chamar A Casa. Seria fascinante encontrar esses rascunhos onde Gabo sem dúvida definiu os personagens, os episódios, a atmosfera do povoado, a planta da casa, as histórias da companhia bananeira, a lembrança dos ciganos, as damas francesas, as chuvas eternas e os aparelhos de música de um moço italiano, mas eu sei que a principal surpresa seria que nesses rascunhos não está Cem Anos de Solidão.
Gabo podia conhecer a história que iria contar, o mundo onde essa história transcorria, os personagens e os episódios, mas ainda não tinha o principal: a entonação, o ritmo do relato, o modo como o fio sairia da meada para transformar essa disparatada realidade que havia em sua memória, esse universo caribenho de personagens desatinados, acontecimentos insólitos e climas delirantes, na árvore das raças e na loucura de relógios que fizeram de Macondo uma das comarcas mais memoráveis da imaginação literária.
É essa entonação, essa magia da linguagem, que deu a García Márquez seu perfil inconfundível entre os autores da nossa época. Os biógrafos sempre voltam a nos contar que foi ao realizar com sua mulher e com seus filhos aquela viagem a Cuernavaca que Gabo, dirigindo o automóvel, sentiu chegar a frase que desenredou a meada e lhe mostrou, como numa epifania, qual era o tom, o ritmo que iria lhe permitir contar tudo, ir do começo ao fim de sua bíblia pagã do Caribe. Deu meia volta, regressou para a casa e se fechou durante meses para escrever seu romance.
Amos Oz nos recordou que as primeiras palavras de uma obra literária são muito mais do que um começo: são uma chave, uma conjuração; são o achado mais importante, o da entonação, a decisão de quem conta a história. Marcam a pauta do ritmo da narrativa e definem a atmosfera, a perspectiva do relato, a força do seu impulso. Assim García Márquez sabe como ninguém o que aquela frase – “Já está pronto, só falta escrevê-lo” – significa: “Tenho tudo em mim, mas ainda não sei transformar isso em relato, já tenho a paixão, mas falta a música, tenho o magma primitivo que formará a obra, mas ainda falta a criação”.
Tempo depois daquele primeiro encontro, perguntei a Gabo como tinham sido os dias em que se encerrou para criar Cem Anos de Solidão. Atrevi-me a lhe dizer: “Em outros livros seus, sente-se o trabalho genial de um escritor, seu trabalho de pesquisa, seu esforço de criação, mas em Cem Anos de Solidão não se sente trabalho algum, o narrador é um fornecedor inesgotável e parece que os prodígios fluíram sem esforço”. “Tantas coisas me ocorriam sem parar”, me respondeu, “que se eu tivesse mais dinheiro o romance teria durado mais duzentas páginas”. Sinto que nesse transe criador está um dos segredos da magia de García Márquez.
Dizem que um clássico é aquele autor que consegue ter vigência e sentido para leitores de muitas culturas e de muitas idades distintas. Por isso demora até que se saiba que alguém é um clássico, pois é preciso não só cativar gente de muitas tradições culturais, mas também de muitos séculos.
Não sabemos ainda o que dirá o futuro, mas, graças às características desta época, García Márquez demonstrou sua capacidade de cativar gente de muitas culturas. Não se trata somente de que seja apreciado por chineses e russos, iranianos e norte-americanos, franceses e sul-africanos, japoneses e húngaros. Trata-se de algo mais curioso: o modo como os chineses sentem que ele revela traços poderosos da sua cultura, o modo como sua tradutora para o húngaro contou que García Márquez retrata bem a vida das aldeias da Hungria e o caráter de seus habitantes. Alguém já afirmou que a literatura árabe mudou sob sua influência, e isso pode ser dito de pouquíssimos autores modernos em espanhol.
Eu gosto de lembrar que, na primeira vez que o vi, Gabo apareceu com uma notícia nos lábios, porque acredito que esse caráter de jornalista influiu positivamente em sua literatura. Há nela sempre um flanco noticioso: seu estilo sempre está nos informando algo. Seus parágrafos têm a clareza, a concisão, e frequentemente o impacto das notícias. Sua voz não parece corresponder aos meandros de uma consciência ou aos labirintos do estilo literário, e sim aos relatos populares e aos rumores de uma comunidade. Tem mais em comum com a Bíblia e com As Mil e Uma Noites do que com as obsessivas aventuras verbais de Joyce ou de Marcel Proust.
Nunca está longe dos fatos, nunca se perde em divagações teóricas, em rastreamentos psicológicos ou em longas explicações. Em geral, são os fatos que precisam se explicar a si próprios. É o leitor quem deve averiguar, caso se interesse, por que o coronel Aureliano Buendía, enfastiado de guerras, se dedica a fabricar peixinhos de ouro; por que Rebeca termina encerrada, longe do mundo. García Márquez acredita mais nos fatos do que nas explicações, e sempre foi cético quanto às interpretações dos críticos e as teorias dos acadêmicos, porque sabe que a fonte das obras é misteriosa, que o que escrevemos é menos um fruto do esforço do que um dom do desconhecido.
Isso faz com que seus personagens sejam seres de carne e osso, e não protótipos ou esquemas. Isso permite que o prefeito do povoado tenha dor de dente, que uma anciã que foi orientadora da história e proprietária dos destinos termine transformada no desvalido brinquedo dos seus netos; que um anjo decrépito tenha ruídos nos rins; que uma mulher indecifrável passe seus últimos anos tecendo sua própria mortalha; que finalmente cada personagem esteja só, vivendo sua aventura imprevisível e quase sempre inexplicável.
Esse caráter surpreendente de suas situações e dos seus personagens poderia ser uma das chaves da vitalidade da sua prosa. Quero dizer que as invenções governadas demais pelo pensamento e pela vontade terminam sendo previsíveis: a razão vive de inventos e de esquemas, cria coisas para que sirvam a determinados fins. Os inventos da intuição são mais misteriosos: vão brotando como verbenas, não obedecem a uma finalidade evidente, se bastam com seu próprio milagre e costumam ignorar o desenlace.
Diz-se que um dos segredos da Bíblia é sua estranha capacidade de aliar a simplicidade com o sublime, de dizer o mais profundo da maneira mais simples. García Márquez é um desses autores que satisfazem por igual o crítico mais exigente e os leitores que nunca leram outro livro. Tem o dom daquilo que é ao mesmo tempo claro, ameno e misterioso.
Ele mesmo disse que o que encontrou naquele dia na estrada para Cuernavaca foi o tom de voz da sua avó, a capacidade de dizer as coisas mais inverossímeis com a cara de pau de quem realmente acredita nelas. Suas obras parecem derivar da tradição oral. Como os poemas, querem ser ditas em voz alta, porque têm muito da virtude sonora da linguagem. E também o rastro do jornalismo está presente ali: a necessidade de uma linguagem que não se afaste da fala comum, que esteja em diálogo com a atualidade e com a fala cotidiana.
García Márquez é não só um autor lido, como também um autor amado. Quero recordar finalmente uma história que ele mesmo ignora. Acompanhei-o uma vez à livraria Gandhi, na Cidade do México. Gabo tinha estado doente, e as pessoas sabiam. Enquanto percorríamos as prateleiras, foi se formando silenciosamente, como sempre, uma fila de pessoas que o esperavam para que autografasse seus livros. Pediu-me que lhe avisasse quando tivesse transcorrido certo tempo. De repente vi algo comovedor. Enquanto lá, ao fundo, García Márquez autografava os livros, duas senhoras, às suas costas, e sem que ele percebesse, o benziam.
Foto: Gabriel García Márquez em Barcelona para 1972 / Rodrigo García.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O legado universal de García Márquez e o amor dos leitores - Instituto Humanitas Unisinos - IHU