Por: André Langer | 04 Outubro 2023
As atitudes características da modernidade (exterioridade, superioridade e instrumentalidade) nos “tornam radicalmente diferentes de Francisco de Assis”. Este, ao contrário, vive relações marcadas por outras atitudes. Ele, antes de mais nada, “se reconhece numa relação de pertença. Ele é criatura entre criaturas”. Por isso, “ele se considera menor, dependente”, justamente para não colocar em risco as demais criaturas. O que, por sua vez, faz com que assuma uma “atitude de cuidado”. Aí reside “a radical diferença entre nós e Francisco”. É assim que o Frei Sinivaldo, OFM, traça uma linha demarcatória entre Francisco de Assis e nós hoje.
Essa é, no entanto, uma generalização, pois “no mundo em que vivemos hoje, há também sinais de esperança, há experiências que são alternativas, há muitos gestos franciscanos na prática dos povos originários, dos pobres periféricos, dos povos do campo, que muitas vezes são invisibilizados, mas que existem”. Há, entre nós hoje, práticas que resgatam aquilo que Sinivaldo chama de “espírito genuinamente de Francisco”.
Frei Sinivaldo fez estas reflexões durante a live Francisco de Assis: espiritualidade da Paz na Terra e com a Terra, que marcou o segundo momento do ano de Rezar com os Místicos, realizado no contexto do Tempo da Criação.
Sinivaldo Silva Tavares possui doutorado em Teologia Sistemática pela Pontifícia Università Antonianum e é professor na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia - FAJE. Durante treze anos, foi professor de Teologia Fundamental e de Teologia Sistemática na Faculdade de Teologia do Instituto Teológico Franciscano de Petrópolis RJ. Foi ainda coordenador do Curso de pós-Graduação lato sensu Espiritualidade, Ecologia e Educação: uma abordagem transdisciplinar; coordenador do Master em Evangelização Cenários Contemporâneos: interpelações e perspectivas.
É autor de, entre outros livros, Ecologia e decolonialidade: implicações mútuas, editado pelas Paulinas.
Sinivaldo Tavares, da FAJE, na atividade "Francisco de Assis: espiritualidade da Paz com a Terra e na Terra"
A iniciativa Rezar com os Místicos, do Cepat, conta com a parceria e o apoio das seguintes instituições: Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá – UEM e Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida – OLMA.
Sinivaldo inicia sua reflexão com a leitura de um texto de uma das hagiografias mais antigas de São Francisco de Assis, do frade Tomás de Celano. Diz o seguinte:
“Abraça todas as coisas criadas com o afeto de inaudita devoção, falando com elas sobre o Senhor e exortando-as a louvá-lo. Anda com reverência sobre a pedra em consideração daquele que é chamado de pedra. Proíbe os irmãos que cortam lenha de cortar pelo pé toda árvore, para que tenha esperança de brotar de novo. E manda que o hortelão deixe sem cavar a faixa de terra ao redor da horta, para que, a seu tempo, o verdor das ervas e a beleza das flores apregoem que é belo o Pai de todas as coisas. Manda traçar inclusive um canteiro na horta para as ervas aromáticas e que produzem flores, para que elas evoquem os que as contemplam à recordação da suavidade eterna. Recolhe do caminho até os vermezinhos, para que não sejam pisados, e manda que sejam servidos mel e ótimos vinhos às abelhas, para que elas não morram por falta de alimento no rigoroso frio do inverno. Chama com o nome de irmão todos os animais, conquanto entre todas as espécies de animais prefira os mansos. Quem seria capaz de narrar tudo? Na verdade, toda aquela verdade fontal, que há de ser tudo em todos, já se manifestava a este santo como tudo em todos”.
Para começo de conversa, Sinivaldo nos convida a estabelecer com Francisco de Assis “uma relação de estranhamento. Francisco não é nosso contemporâneo, pois a atitude que ele assume diante das coisas é radicalmente diferente da nossa”. E a partir deste “estranhamento”, convida para procurar eventuais pontos de contato: “em que podemos nos tornar mais semelhantes a ele?”
Um primeiro aspecto. Nós falamos de modo geral em “natureza, em criação, no abstrato”. Francisco, por sua vez, “é concreto. Ele fala de criaturas e Criador”. Quando falamos no abstrato, nos pegamos falando “sobre as coisas”. E falar “sobre” é falar como sendo “exteriores, de for, dos seres dos quais estamos falando, como não fazendo parte”.
Francisco nunca cai na tentação dos discursos abstratos. “Ele sempre se reconhece já pertencente a uma trama em que há criaturas e Criador”. Francisco “abraça todas as coisas com ‘devoção’ (no sentido de inclinar-se para)”. Esta atitude faz com que Francisco se sinta pertencente a este universo das criaturas. Ele não se concebe como exterior. Por isso ele não fala “sobre a natureza”. E “essa pertença faz com que se sinta irmão de todas as criaturas”.
Nossa relação com as criaturas, de acordo com Sinivaldo, está caracterizada por três atitudes: a exterioridade, a superioridade e a instrumentalidade. “Nós nos consideramos externos a todos os outros seres que compõem a trama da criação e, portanto, afirmamos a nossa superioridade sobre eles. Isso fica claro nesta cosmovisão de que tudo quanto existe é para nós que existe. Nós nos consideramos superiores por nos considerarmos seres autoconscientes, isto é, fazemos da nossa singularidade motivo de superioridade. E, portanto, assumimos atitude de instrumentalidade para com os outros seres”. Citando livremente Pascal, diz: “Nós não somos os únicos animais que pensam, mas somos os únicos que pensamos que não somos animais”.
Essas atitudes nos tornam “violentos para com a natureza e também em relação às outras pessoas”. E assim nos tornamos “seres de fratura” não apenas entre humanos e não humanos, mas também entre os próprios humanos. Por isso, na Fratelli Tutti, Francisco vai ligar esta questão com o que havia falado na Laudato Si’. “Acabamos nos tornando violentos conosco mesmos e criamos uma espécie de esquizofrenia entre mente e corpo. Não nos tornamos seres integrados. Não convivemos bem com esta natureza que somos nós. Não conseguimos superar esta fratura que se manifesta em atitudes de violência”.
Estas três atitudes nos “tornam radicalmente diferentes de Francisco”. Francisco, ao contrário, vive relações marcadas por outras atitudes. Francisco, antes de mais nada, “se reconhece numa relação de pertença. Ele é criatura entre criaturas”. Por isso, “ele se considera menor, dependente”, justamente para não colocar em risco as demais criaturas. Finalmente, assume uma “atitude de cuidado”. Aí reside “a radical diferença entre nós e Francisco”, pontua Sinivaldo.
As coisas estão “intrinsicamente ligadas”. Aqui Frei Sinivaldo recorda o trecho de uma poesia da Adélia Prado: “De vez em quando Deus me tira a poesia. Olho pedra, vejo pedra mesmo”. E pondera que “nós somos seres sem poesia. Nós insistimos em que as coisas sejam meras coisas. Nós as desencantamos. Nós perdemos a poesia. Perdemos aquela atitude contemplativa”.
Francisco, ao contrário, dizia que “cada criatura traz dentro de si traços, vestígios do Criador. Portanto, há uma realidade mistérica que habita o coração da matéria”, pois, como dizia Teilhard de Chardin: “Toda matéria é espírito”. E arremata dizendo: “As coisas não são nunca meras coisas. Nós insistimos em reduzi-las a coisas por conta destas três atitudes da modernidade”.
O Papa Francisco, na Laudato Si’, prossegue Sinivaldo em sua reflexão/meditação, diz que “cada criatura é irrepetível; Deus não se repete. E por isso há uma responsabilidade nossa para que não haja extinção de espécies”. Porque cada criatura tem algo de próprio, de singular, a contribuir para este “mosaico da criação”. Nenhuma criatura pode substituir a outra. Todas são diferentes entre si.
E “a diferença não pode se tornar motivo de superioridade, nem pode justificar nenhum tipo de exterioridade ou de exclusão”. Pelo contrário, as diferenças deveriam nos aproximar, fazer com que nos tornemos corresponsáveis com essa solidariedade fontal de todas as criaturas do planeta gozam, com a solidariedade universal. As nossas diferenças não podem justificar relações de superioridade.
“O que está na base da atitude de Francisco de estar com as coisas e entre as coisas, e não sobre as coisas e instrumentalizando as coisas?”, pergunta-se Sinivaldo. Nós consideramos as coisas como “mero cenário no qual nós humanos somos os únicos atores”. Nós humanos exclusivamente conduzimos a trama da vida; todo o resto é cenário.
Em vez de protagonismo humano, trata-se de “conspiração vital. Nós só existimos porque há outros seres que existem conosco. Há uma conspiração entre todos os seres que tornam a vida possível. E a vida é fruto desta conspiração vital”. Por isso, “Francisco se torna para nós esta figura integrada, reconciliada, que não sente necessidade de se afirmar como superior. E por isso cuida”. Só cuida quem antes se sente pertencente.
André Langer, do Cepat, e Sinivaldo Tavares, da FAJE, na atividade "Francisco de Assis: espiritualidade da Paz com a Terra e na Terra"
Olhando para o tempo presente e deparando-se com um pessimismo que vige entre outras razões devido ao colapso climático, Sinivaldo diz que “cada tempo tem suas virtudes e seus defeitos. É em cada época que somos chamados a discernir as possibilidades que nos são dadas”. E pede para sermos “críticos e olhar para o nosso mundo com ‘olhos abertos’”, como já dizia o teólogo alemão Johann B. Metz.
Nosso tempo pede de nós que enxerguemos profundamente “quais são as fraturas, os grandes problemas, quais são as causas estruturais destes problemas. Não podemos ficar na superfície e nos contentar com leituras rasas que não vão às raízes dos problemas”. E nos previne: “E quanto mais vamos às raízes dos problemas, mais angustiados ficamos, até porque a consciência da sua complexidade vai nos deixando impotentes para enfrentar estes problemas tão complexos”.
Entretanto, “não podemos nos dar ao luxo de ser pessimistas”. E aqui cita o Frei Betto, que, segundo Sinivaldo, costuma dizer: “deixemos o pessimismo para dias melhores”. “Quanto mais a gente olha para a realidade e a vê nas suas fraturas profundas, mais a gente precisa assumir com a maior serenidade possível, mas com a maior intensidade também, a nossa responsabilidade. Não podemos postergar aquelas atitudes, mentalidades, iniciativas, que são nossas”.
E recorrendo à imagem bíblica da semeadura, diz: “Há um tempo para preparar o terreno, há um tempo da semeadura, há o tempo do cultivo e há o tempo da colheita. E, na maioria das vezes, a gente não escolhe o tempo que nos cabe viver. Evidentemente, gostaríamos de escolher o tempo da colheita. Mas há momentos em que é preciso assumir a tarefa mais árdua de preparar o solo e cultivar na esperança de que outros colherão, o que faz parte da experiência de pertença e de solidariedade. Talvez nos caiba hoje a tarefa mais árdua de preparar o terreno”, provoca.
Sinivaldo também vê que ainda hoje há seguidores do Francisco de Assis e que nem tudo está perdido. Pelo contrário, “no mundo em que vivemos hoje, há também sinais de esperança, há experiências que são alternativas, há muitos gestos franciscanos na prática dos povos originários, dos pobres periféricos, dos povos do campo, que muitas vezes são invisibilizados, mas existem”. Nosso esforço, diz, deve consistir no “exercício da sensibilidade de percebê-las”. E como sabemos, o novo sempre começa muito pequeno, muito frágil.
Estas são experiências que resgatam “o espírito genuinamente de Francisco” para hoje. Há pessoas, coletivos, sujeitos, que são para nós hoje “presença concreta dessa maneira de ser de Francisco estar com as coisas e entre as coisas”, conclui.
Abaixo, disponibilizamos a íntegra da exposição e debate.
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Sinivaldo Silva Tavares: “A atitude que Francisco de Assis assume diante das coisas é radicalmente diferente da nossa” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU