18 Dezembro 2015
Adélia Prado, que completa 80 anos neste domingo (13), celebra seus 40 anos de carreira literária com a reunião de sua poesia pela Record. Quebrando o silêncio que se impõe diante do vozerio da atualidade, a poeta respondeu a questões sobre sua trajetória e sobre o momento que vive o país.
A reportagem é de Juliana Cunha, publicada por Folha de S. Paulo, 13-12-2015.
Um poema inédito
Vigília
Embaciada de gordura e pó
minha oração é turva.
Só porque está escrito "pedi e recebereis",
até hoje rogo por casa, sobriedade, milagres.
Na madrugada alta me reviro insone,
sem coragem para o que faria de pronto
um escolar saudável.
Ah! Deixar meu noivo e aceitar por marido
o namorado da roça que sempre teria à mão?
A períodos regulares como estações do ano,
lavo as alfaias do meu casamento, releio as cartas:
"O Pai te ama, pequenina ovelha, pedi e recebereis".
Ninguém me ordena, mas obedeço e espero.
Assim que descer da cruz nos casaremos.
Ela esperou quatro décadas para ser um sucesso instantâneo. Quando a professora de Divinópolis, interior de Minas Gerais, surgiu na cena literária, veio com cinco filhos, marido e 40 anos de idade. O nome de seu primeiro livro: "Bagagem" (Imago).
No lançamento, em 1976, estavam Antônio Houaiss, Raquel Jardim, Clarice Lispector, Juscelino Kubitschek, Affonso Romano de Sant'Anna, Nélida Piñon e Carlos Drummond de Andrade, que foi quem recomendou a publicação da novata e a encheu de elogios no "Jornal do Brasil".
"Adélia é lírica, bíblica, existencial, faz poesia como faz bom tempo", escreveu Drummond.
Dois anos depois, ela levaria um Jabuti por "O Coração Disparado" (Nova Fronteira), mas era como se não fizesse falta: já era considerada uma das grandes.
"Velhice não dá a escritor nenhum o direito da platitude. Não quero ficar espaçosa só porque fiquei velha", diz a escritora em entrevista à Folha.
"Depois dos 80 anos, o corpo alquebrado ou mesmo doente de um poeta certamente mudará a casuística de sua escrita, mas não pode alterar sua qualidade", diz ela, que completa 80 neste domingo (13) e ganha nova antologia de sua obra poética na edição de luxo "Poesia Reunida" (Record), com cerca de 300 poemas de seus oito livros do gênero.
A comemoração, segundo ela, será "em silêncio, como pede esse momento de barulho da televisão, do Congresso Nacional e das igrejas com propósitos diferentes dos do evangelho de Jesus Cristo".
Adélia, que sempre foi vista pelo viés da poeta que chegou pronta, agora iguala os períodos da vida: tem tantos anos na gaveta quanto fora do armário onde trabalhou, solitária, os seus poemas.
Quermesse
Ana Martins Marques, mineira como Adélia, tem um poema recente chamado "Poemas Reunidos" em que diz: "Sempre gostei dos livros/ chamados poemas reunidos/ pela ideia de festa ou de quermesse/ como se os poemas se encontrassem/ como parentes distantes/ um pouco entediados/ em volta de uma mesa/ como ex-colegas de colégio".
Da primeira vez que viu seus poemas reunidos, em 1991, pela extinta editora Siciliano, Adélia não gostou; comparou-a a uma "homenagem póstuma", imaginou os poemas reunidos num velório. Desta vez, está mais contente com o encontro. "Acho que meus poemas se encontram matando saudades, como numa boa reunião de amigos ou família", diz.
Há 15 anos, quando foi tema de um dos "Cadernos de Literatura Brasileira" do Instituto Moreira Salles, Adélia disse, em entrevista à "Ilustrada", que "toda pessoa deveria receber uma homenagem em vida". "Poucas coisas são tão incômodas, mas nada melhor para ver o próprio tamanho."
No posfácio do livro, o crítico Augusto Massi tenta medir esse tamanho. Situa a obra de Adélia como "um último desdobramento do modernismo, cujas linhas de força convergem para a retomada do cotidiano, da oralidade, da cultura popular e para o desejo de encurtar o caminho até o leitor, trazendo a linguagem poética para o centro da vida".
Massi localiza um cruzamento entre a formação franciscana da poeta —seu irmão, frei Antônio Prado, foi o primeiro franciscano de Divinópolis, e a própria Adélia pertenceu à Ordem Terceira— e certa herança modernista. Essa conexão se explicitaria em seu "despojamento como antídoto ao ornamental". Adélia diz que nunca buscou ser despojada: "A poesia se obriga a isto. De outra forma, farei apenas retórica. Ornamento em poesia é pecado", diz.
Os temas da escritora, em sua própria definição, são "a morte, o amor e Deus". Católica das praticantes, surpreende desavisados pelo erotismo e força. "Irado polvo cego é meu carinho", diz no poema "Senha". Quem desdenha da sexualidade das professorinhas casadas não deve ter lido Adélia Prado.
A condição de senhora católica também já a colocou sob suspeição em uma época em que a posição esperada do artista era a de intelectual público, engajado. Mas Adélia não tem medo algum de se comprometer —nem foge de perguntas políticas. "Nossos representantes se comportam como adolescentes boçais. Não se encontra no quadro político atual um discurso adulto, um estadista que nos provoque adesão e confiança", diz ela, quando questionada sobre o clima de impeachment.
"As intriguinhas da corte, as birras, as caras, os dedos em riste, as poses são uma canseira, uma tristeza só. A luta entre governo e oposição se iguala pela ausência de princípios. Nem a luz do dia respeitam mais. Barganhas são feitas à vista de todos, enquanto as honrosas exceções pregam no deserto", conclui.
Seu desalento diante da situação atual, no entanto, ela não leva para a poesia. Ao menos não diretamente. Ainda que diga que "posicionar-se politicamente é um direito e um dever de todo cidadão —e o poeta, supostamente aquele que vê antes, deve ser o primeiro da fila", Adélia frisa que "a casuística de um poema pode ser qualquer uma, política, religiosa, cotidiana, filosófica, espiritual".
"O que importa no poema é a forma, seu estatuto íntimo, a beleza. Se ele mexe com as pessoas e as influencia, esta decorrência não pode ser um fim para o autor."
Na opinião da poeta, ninguém suportaria um livro de poemas que pretendesse fazer do leitor um "militante para a salvação do planeta". "Ainda que o mundo arda, haverá sempre um poeta para falar da beleza das chamas. Isto, sim, pode nos dar mais consciência ecológica do que as políticas egoístas e hipócritas das conferências sobre salvação do planeta. Belos discursos, mas país nenhum quer ser o primeiro a apagar a fumaça das chaminés."
Preocupada com as as vítimas do desastre ambiental em Mariana, a duas horas de Divinópolis, ela queixa-se da demora "em decidir se vão indenizar ou não as vítimas com casa, comida, escola e saúde". "Dizem que o dinheiro sumiu. Os processos legais andam como tartarugas doentes. Com a avalanche de doações, percebemos que, de novo, os pobres é que ajudam os pobres", diz Adélia, a franciscana.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
As letras da franciscana Adélia Prado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU