09 Outubro 2023
"Outro gesto importante do Papa Francisco, sinal de uma brecha decisiva no muro do clericalismo, diz respeito à concessão do direito de voto mesmo a pessoas não distinguidas pelo múnus episcopal. Nesse Sínodo sobre a sinodalidade não estão presentes apena bispos, mas também padres e religiosos; não só padres e religiosos, mas também religiosas; não só leigos (homens), mas também leigas (mulheres)", escreve Anita Prati, professora de Letras no Instituto Estatal de Educação Superior “Francesco Gonzaga”, em Castiglione delle Stiviere, Itália, em artigo publicado por Settimana News, 02-08-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Aproxima-se a data de abertura da primeira sessão da etapa universal do Sínodo sobre a sinodalidade, que será realizado em Roma, de 4 a 29 de outubro; a segunda sessão está marcada para outubro de 2024.
O desenvolvimento da etapa final do caminho sinodal em dois momentos está em plena sintonia com o caráter procedimental que o Papa Francisco quis conferir à Assembleia dos Bispos através da constituição apostólica Episcopalis communio de setembro de 2018, que formalizou a articulação do Sínodo em três fases (fase preparatória, fase celebrativa e fase de realização).
A distensão ao longo de períodos de tempo significativos marca de forma decisiva a passagem de uma ideia de Sínodo como evento para a ideia de Sínodo como processo, isto é, como estilo de ser Igreja. E justamente assim é a ideação de sinodalidade.
Outro gesto importante do Papa Francisco, sinal de uma brecha decisiva no muro do clericalismo, diz respeito à concessão do direito de voto mesmo a pessoas não distinguidas pelo múnus episcopal. Nesse Sínodo sobre a sinodalidade não estão presentes apena bispos, mas também padres e religiosos; não só padres e religiosos, mas também religiosas; não só leigos (homens), mas também leigas (mulheres).
O passo amadureceu em meio a hesitações e titubeações de não poucos cardeais para os quais permitir que as mulheres votem em questões eclesiais, ou talvez não apenas em tais questões, desperta perplexidades dignas de um patriarca bíblico. Mas, em qualquer caso, há agora cinquenta e quatro mulheres na Assembleia Sinodal que poderão votar. E, por mais cauteloso e imposto por cima que seja, o passo dado pelo Papa configura-se como um precedente significativo e de peso, em relação ao qual será difícil aos seus sucessores desvencilhar-se mediante retrocessos tortuosos e fingidamente inocentes.
O Instrumentum laboris para a primeira sessão da etapa universal foi elaborado com base em todo o material recolhido durante a fase preparatória e, em particular, a partir dos sete Documentos finais das Assembleias Continentais (Oriente Médio, Europa, Ásia, América do Norte, América Latina e Caribe, África e Madagascar, Oceania).
O texto do Instrumentum laboris está dividido em duas partes: a parte A relê o caminho percorrido identificando as linhas estruturantes de uma Igreja sinodal, a parte B questiona-se sobre as três questões prioritárias de Comunhão (B1), Missão (B2) e Participação (B3). Seguem-se quinze fichas de trabalho, divididas segundo os três pontos B1, B2, B3 e estruturadas através de linhas de reflexão, perguntas para o discernimento e sugestões para a oração e a reflexão.
O tema “Igreja e mulher” é abordado de modo direto na terceira ficha de trabalho do ponto B2 (Missão), por esta pergunta: B2.3 Como pode a Igreja do nosso tempo cumprir melhor a sua missão por meio de um maior reconhecimento e promoção da dignidade batismal das mulheres?
A pergunta, aparentemente portadora de uma abertura significativa em relação ao tema de referência, revela, quando aplicada uma leitura não superficial, toda uma rede de implicações que mantêm o pensamento enjaulado dentro do costume asfixiante de prepotentes estereótipos.
Vamos tomar em consideração, em primeiro lugar, a palavra melhor.
Melhor é o grau comparativo do advérbio bem; o seu significado é ‘mais bem’. O uso do grau comparativo normalmente pressupõe um termo de comparação, que pode ser explicitado ou dado como implícito. Considerando que, na nossa frase, o elemento de comparação não está presente, está implícito que existe uma implicação.
Primeira observação: perguntar-se como a Igreja possa realizar melhor a sua missão, implica que quem formulou a pergunta acredita que, tal como a cumpriu até agora ou a está cumprindo agora, já a esteja cumprindo bem.
Nessa perspectiva, portanto, o reconhecimento e a promoção da dignidade batismal das mulheres tornam-se um “adicional” funcional para o melhor, mas em função do bem. Isso significa que reconhecer e promover a dignidade batismal das mulheres é visto como uma espécie de dado acessório que permite à Igreja realizar melhor, ‘mais bem’ a sua missão, um dado funcional para a melhoria de situações e de resultados, e não o elemento imprescindível e irrenunciável que, se desconsiderado, acaba desnaturando a própria raiz da fé cristã.
Porque todos sois filhos de Deus pela fé em Cristo Jesus. Porque todos quantos fostes batizados em Cristo já vos revestistes de Cristo. Nisto não há judeu nem grego; não há servo nem livre; não há macho nem fêmea; porque todos vós sois um em Cristo Jesus. (Gal 3,26-28)
A raiz, ou seja, o bem, está na filiação em Deus através da fé em Cristo Jesus. No batismo, as distinções étnicas e culturais, as distinções sociais, as distinções de gênero são superadas e derrotadas. A igual dignidade batismal de homens e mulheres, declarada clara e firmemente em Gálatas 3,26-28, não é uma ideia adocicada e politicamente correta de promoção feminina, mas é o fundamento da fé em Jesus - um ideal evangélico subversivo, arrasador e extraordinariamente repleto de futuro.
O efeito desestabilizador e subversivo do cristianismo em comparação com as outras religiões do mundo antigo é bem reconhecível em nível cultural e antropológico: o fato de o rito de iniciação na fé não ser diferenciado com base no gênero, de o batismo ser o mesmo para os homens e as mulheres, marcou imediatamente uma distinção semântica incontestável e revolucionária em relação aos caminhos da opressão machista, da qual Jesus havia se dissociado radicalmente durante a sua vida, com as suas palavras e ainda mais com os seus gestos.
Num momento em que a Igreja se pergunta como realizar melhor a sua missão promovendo a dignidade batismal das mulheres, declara implicitamente que durante dois milênios não atendeu o mandato de Jesus, declara que considerou que o seu agir bem pudesse prescindir do reconhecimento da dignidade batismal das mulheres como parte, pelo contrário, essencial desse mesmo bem. Declara isso implicitamente, por subentendido, mas não assume abertamente a responsabilidade por isso. Aliás, pelo contrário.
Aliás, um segundo comparativo compromete a aparente inocência da frase interrogativa que estamos analisando. Maior é o adjetivo de grau comparativo do adjetivo grande; seu significado é ‘mais grande’. As considerações anteriormente expressas sobre o termo de comparação – não explícito e, portanto, subentendido – aplicam-se aqui também.
Segue-se, portanto, uma segunda observação: perguntar-se como a Igreja possa desempenhar melhor a sua missão através de um ‘mais grande’ reconhecimento da dignidade batismal das mulheres, implica a crença de que na Igreja o nível de reconhecimento e promoção da dignidade batismal das mulheres é grande.
Usar o adjetivo comparativo significa minimizar o profundo desconforto e sofrimento padecidos por muitas mulheres por causa da Igreja, não assumir plenamente a responsabilidade ou a corresponsabilidade em relação a situações de discriminação de gênero que se desenrolam ao longo da história ou entrelaçadas com a atualidade, fingir que palavras não foram ditas, que abusos não foram denunciados.
O Documento de Praga, assinado no final da fase continental europeia do Sínodo em fevereiro passado, traz explicitamente no ponto 2.6 (Prestar especial atenção às famílias, às mulheres e aos jovens) estas palavras:
Muitas mulheres comunicaram a sua dor pela negação da sua participação na vida da Igreja e falaram de sentimentos de exclusão e discriminação. As mulheres desempenham um papel crucial na vida da Igreja, mas muitos homens e mulheres falaram de uma Igreja que “exclui” a plenitude dos dons das mulheres.
Quatro linhas. Não muito, pode-se dizer. Mas, num texto que visa sintetizar milhares e milhares de documentos, essas quatro linhas pesam como pedras e chamam com força a Igreja à responsabilidade de repensar a si mesma e às suas ações.
As palavras que usamos dizem quem somos. As nossas escolhas linguísticas nunca são neutras. Usar ou não usar uma palavra, escolher uma palavra em vez de outra, deixa marcas vivas no mundo. Com as palavras transmitimos pensamentos, os nossos pensamentos são condicionados pelas palavras – as palavras que nós usamos e aquelas que são postas em circulação nos locais onde vivemos.
Vigiar a linguagem é um dever, além de uma oportunidade, preciosa como poucas, para ampliar os nossos espaços mentais e interiores. Que o “Caros irmãos” se torne cada vez mais “Caros irmãos e irmãs” já é um pequeno sinal de atenção e de conscientização em relação ao horizonte sobre o qual repousa o nosso olhar, um horizonte que não podemos continuar a empacotar de forma anódina num genérico masculino superestendido.
Basta pouco para começar a mudar o olhar. Começa-se por desmantelar o estereótipo dos formulários, introduzindo expressões timidamente inclusivas. E depois se continua caminhando no trilho de uma conscientização cada vez mais fina, atenta e libertadora.
Basta pouco. Basta retirar dois comparativos inúteis e enganosos, que transmitem quase imperceptivelmente presunção e arrogância, para libertar de pensamentos dissimulados e restituir toda a honestidade de um questionamento realmente passível de ser posto em discussão.
Eu removo o melhor, e declaro que não pode haver uma escala de valores no seguimento do caminho de Jesus – uma Igreja que não assume plenamente a dignidade batismal das mulheres não é uma Igreja do Evangelho. Eu removo o maior, e reconheço o atraso bimilenar em relação ao Mestre.
Não se trata de fazer operações de remodelação ou promoção social para se sentir em sintonia com os tempos. Trata-se de tomar consciência e assumir, integral e inteiramente, a responsabilidade de que, como na opção pelos pobres, também na opção pelas mulheres está em jogo toda a fidelidade da Igreja a Cristo.
Como pode a Igreja do nosso tempo cumprir a sua missão através do reconhecimento e da promoção da dignidade batismal das mulheres?
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Mulheres e o Sínodo: se o melhor é inimigo do bem. Artigo de Anita Prati - Instituto Humanitas Unisinos - IHU